O senhor Medina Carreira encontrou há já alguns anos um filão de ouro. Munido de meia dúzia de gráficos elementares, deslumbra o pagode com prenúncios de maus tempos no meio da tempestade em programas televisivos onde repete incessantemente os mesmos argumentos e os mesmos augúrios, sem aventurar saídas da borrasca. E assim ganha, certamente regaladamente bem, a sua vidinha. É um espertalhão. Razão bastante para não se perder, cá em casa, tempo a ouvir-lhe ler as sinas que impinge.
A sua cruzada contra o "Estado Social", contra os
6 milhões de dependentes do Estado (a designação e o cálculo, cit.
aqui, são dele) já vem de longe. Habituado ao assombro com que os seus programas são recebidos, em grande parte junto daqueles que são os demónios das suas afirmações repetidas
ad náusea, o vivaço continua a facturar imparavelmente o peixe repescado e a sua impetuosidade fanfarrona.
Anteontem, depreende-se
desta notícia, foi até onde ninguém, com um mínimo de pudor e respeito pelos direitos de uns e os infortúnios e os sentimentos de outros, se atreveria a chegar. Se existisse o tal
"partido do Estado" que, segundo ele, reúne 60% da população portuguesa, ou seja
toda a gente que é doente, coxa, reformada ..., o velhaco há muito tempo que teria sido obrigado a rever as suas contas. Essas, e outras.
---
* Ignóbil - //
que revela sentimentos baixos ..., segundo dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa
---
E-mail recebido a 28/10
Carta Aberta
para Judite de Sousa - Programa Olhos nos Olhos
16.10.13
OLHOS NOS OLHOS
*********************
Exma. Sra. Dra.
Judite de Sousa
O programa
Olhos nos Olhos que foi hoje para o ar (14.10.2013) ficará nos anais da
televisão como um caso de estudo, pelos piores motivos.
Foi o mais
execrável exercício de demagogia a que me foi dado assistir em toda a minha
vida num programa de televisão. O que os senhores Medina Carreira e Henrique
Raposo disseram acerca das pensões de aposentação, de reforma e de
sobrevivência é um embuste completo, como demonstrarei mais abaixo. É também um
exemplo de uma das dez estratégias clássicas de manipulação do público através
da comunicação social, aquela que se traduz no preceito: «dirigir-se ao
espectador como se fosse uma criança de menos de 12 anos ou um débil
mental».
Mas nada do que
os senhores Medina Carreira e Henrique Raposo dizem ou possam dizer pode apagar
os factos. Os factos são teimosos. Ficam aqui apenas os essenciais, para não me
alargar muito:
1. OS FUNDOS DO
SISTEMA PREVIDENCIAL da Segurança Social (Caixa Nacional de Aposentações e
Caixa Geral de Aposentações), com os quais são pagas essas pensões, NÃO
PERTENCEM AO ESTADO (muito menos a este governo, ou qualquer outro). Não há
neles um cêntimo que tenha vindo dos impostos cobrados aos portugueses
(incluindo os aposentados e reformados). PERTENCEM EXCLUSIVAMENTE AOS SEUS
ACTUAIS E FUTUROS BENEFICIÁRIOS, QUE PARA ELES CONTRIBUIRAM E CONTRIBUEM
DESCONTANDO 11% dos seus salários mensais, acrescidos de mais 23,75% (também
extraídos dos seus salários) que as entidades empregadoras, privadas e
públicas, deveriam igualmente descontar para esse efeito (o que nem sempre
fazem [voltarei a este assunto no ponto 3]).
2. As
quotizações devidas pelos trabalhadores e empregadores a este sistema
previdencial, bem como os benefícios (pensões de aposentação, de reforma e
sobrevivência; subsídios de desemprego, de doença e de parentalidade; formação
profissional) que este sistema deve proporcionar, são fixadas por cálculos
actuariais, uma técnica matemática de que o sr. Medina Carreira manifestamente
não domina e de que o sr. Henrique Raposo manifestamente nunca ouviu falar.
Esses cálculos são feitos tendo em conta, entre outras variáveis, o custo das
despesas do sistema (as que foram acima discriminadas) cujo montante depende,
por sua vez — no caso específico das pensões de aposentação, de reforma e de
sobrevivência — do salário ou vencimento da pessoa e do número de anos da sua
carreira contributiva. O montante destas pensões é uma percentagem ponderada
desses dois factores, resultante desses cálculos actuariais.
3. Este sistema
em nada contribuiu para o défice das contas públicas e para a dívida pública.
Este sistema não é insustentável (como disse repetidamente o senhor Raposo).
Este sistema esteve perfeitamente equilibrado e saudável até 2011 (ano de
entrada em funções do actual governo), e exibia grandes excedentes, apesar das
dívidas das entidades empregadoras, tanto privadas como públicas (estimadas
então em 21.940 milhões de euros) devido à evasão e à fraude contributiva por
parte destas últimas. Em 2011, último ano de resultados fechados e auditados
pelo Tribunal de Contas, o sistema previdencial teve como receitas das
quotizações 13.757 milhões de euros, pagou de pensões 10.829 milhões de euros e
1.566 milhões de euros de subsídios de desemprego, doença e parentalidade, mais
algumas despesas de outra índole. O saldo é pois largamente positivo. Mas o
sistema previdencial dispõe também de reservas, para fazer face a imprevistos,
que são geridas, em regime de capitalização, por um Instituto especializado (o
Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização da Segurança Social) do Fundo
de Estabilização Financeira da Segurança Social. Ora, este fundo detinha, no
mesmo ano de 2011, 8.872,4 milhões de euros de activos, 5,2% do PIB da
altura.
4. É o aumento
brutal do desemprego (952 mil pessoas no 1º trimestre de 2013), a emigração de
centenas de milhares de jovens e menos jovens, causados ambos pela política
recessiva e de empobrecimento deste governo, e a quebra brutal de receitas e o
aumento concomitante das despesas com o subsídio de desemprego que estes factos
acarretam, que está a pôr em perigo o regime previdencial e a Segurança Social
como um todo, não a demografia, como diz o sr. Henrique Raposo.
5. Em suma, é
falso que o sistema previdencial seja um sistema de repartição, como gosta de
repetir o sr.Medina Carreira. É, isso sim, um sistema misto, de repartição e
capitalização. Está escrito com todas as letras na lei de bases da segurança
social (artigo 8º, alínea C, da lei nº4/2007), que, pelos vistos, nem ele nem o
senhor Henrique Raposo se deram ao trabalho de ler. É falso que o sistema
previdencial faça parte das “despesas sociais” do Estado (educação e saúde) que
ele (e o governo actual) gostariam de cortar em 20 mil milhões de euros. Mais
especificamente, é falso que os seus benefícios façam parte das “prestações
sociais” que o senhor Medina Carreira gostaria de cortar. Ele confunde
deliberadamente dois subsistemas da Segurança Social: o sistema previdencial
(contributivo) e o sistema de protecção da cidadania (não contributivo). É este
último sistema (financiado pelos impostos que todos pagamos) que paga o
rendimento social de inserção, as pensões sociais (não confundir com as pensões
de aposentação e de reforma, as quais são pagas pelo sistema previdencial e
nada pesam no Orçamento de Estado), o complemento solidário de idosos (não
confundir com as pensões de sobrevivência, as quais são pagas pelo sistema
previdencial e nada pesam no Orçamento do Estado), o abono de família, os
apoios às crianças e adultos deficientes e os apoios às IPSS.
6. É falso que
o sr. Henrique Raposo (HR) esteja, como ele diz, condenado a não receber a
pensão a que terá direito quando chegar a sua vez, “porque a população está a
envelhecer”, “porque o sistema previdencial actual não pode pagar as pensões de
aposentação futuras”, “porque o sistema não é de capitalização”. O 1º ministro
polaco, disse, explicou-lhe como mudar a segurança social portuguesa para os
moldes que ele, HR, deseja para Portugal. Mas HR esqueceu-se de dizer em que
consiste essa mirífica “reforma”: transferir os fundos de pensões privados para
dentro do Estado polaco e com eles compensar um défice das contas públicas,
reduzindo nomeadamente em 1/5 a enorme dívida pública polaca. A mesma receita
que Passos Coelho, Vítor Gaspar e Paulo Portas aplicaram em Portugal aos fundos
de pensões privados dos empregados bancários! (para mais pormenores sobre o
desastre financeiro que se anuncia decorrente desta aventura polaca, ver o
artigo de Sujata Rao da Reuters, «With pension reform, Poland joins the
sell-off», 6 de Setembro de 2013, http://blogs.reuters.com/
globalinvesting/2013/09/06/with-pension-reform-poland-joins-the-sell-off-more-to-come/; e o artigo de Monika Scislowska da Associated Press, «Poland debates
controversial pension reform», 11 de Outubro de 2013, http://news.yahoo.com/poland-debates-controversial-pension-reform-092206966--finance.html). HR desconhece o que aconteceu às falências dos sistemas de capitalização
individual em países como, por exemplo, o Reino Unido. HR desconhece também as
perdas de 10, 20, 30, 40 por cento, e até superiores, que os aforradores
americanos tiveram com os fundos privados que geriam as suas pensões,
decorrentes da derrocada do banco de investimento Lehman Brothers e da crise
financeira subsequente — como relembrou, num livro recente, um jornalista
insuspeito de qualquer simpatia pelos aposentados e reformados. O único inimigo
de HR é a sua ignorância crassa sobre a segurança social.
Os senhores
Medina Carreira e Henrique Raposo, são, em minha opinião, casos perdidos. Estão
intoxicados pelas suas próprias lucubrações, irmanados no mesmo ódio ao
Tribunal Constitucional («onde não há dinheiro, não há Constituição, não há
Tribunal Constitucional, nem coisíssima nenhuma» disse Medina Carreira no
programa «Olhos nos Olhos» de 9 de Setembro último;« O Tribunal Constitucional
quer arrastar-nos para fora do euro» disse Henrique Raposo no programa de 14 de
Outubro de 2013). E logo o Tribunal Constitucional ! — última e frágil antepara
institucional aos desmandos e razias de um governo que não olha a meios para
atingir os seus fins. Estes dois homens tinham forçosamente que se encontrar um
dia, pois estão bem um para o outro: um diz “corta!”, o outro “esfola!”. Pena
foi que o encontro fosse no seu programa, e não o café da esquina.
Mas a senhora é
jornalista. Não pode informar sem estar informada. Tem a obrigação de conhecer,
pelo menos, os factos (pontos 1-6) que acima mencionei. Tem a obrigação de
estudar os assuntos de que quer tratar «Olhos nos Olhos», de não se deixar
manipular pelas declarações dos seus interlocutores. Se não se sentir capaz
disso, se achar que o dr. Medina Carreira é demasiado matreiro para que lhe
possa fazer frente, então demita-se do programa que anima, no seu próprio
interesse. Não caia no descrédito do público que a vê, não arruíne a sua
reputação. Ainda vai a tempo, mas o tempo escasseia.
José Manuel
Catarino Soares
(Professor
aposentado)
Lisboa.
15-10-2013