Thursday, May 31, 2007

A PORTELA

Telmo Correia, candidato pelo CDS/PP à câmara municipal de Lisboa, anunciou hoje que vai trazer para a discussão e votação dos lisboetas, a propósito das eleições intercalares para a câmara, a questão da deslocalização do aeroporto da Portela para um local a 50 quilómetros da capital. TC é da opinião que o encerramento do aeroporto da Portela prejudicará os interesses dos lisboetas, nomedamente quanto à perda de competitividade de Lisboa como destino turístico, de congressos e de base de negócios. António Costa já reagiu contestando que a questão do novo aeroporto seja um assunto que possa interessar a Lisboa e aos lisboetas.
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Compreende-se a situação incómoda em que Telmo Correia, com este coelho tirado inesperadamente da cartola, coloca António Costa, obrigado a subscrever as propostas do governo de que, até há bem pouco tempo, fez parte. Mas essa submissão não o obrigava a um exercício tão patético: bastava-lhe defender os argumentos que justificam a saída do aeroporto do centro da capital, incluindo os incómodos e os riscos que a actual localização representa para os seus habitantes.
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Com esta persistência do Governo e do PS em atirarem tiros para os pés, a propósito do novo aeroporto, mais tarde ou mais cedo estarão irremediavelmente coxos.

PALRA A PEGA

Assim como os travões servem para travar e destravar (subtileza que trai muita gente a tirar carta de condução), as palavras servem para as pessoas se entenderem e desentenderem. Não rararente, o desentendimento é propositado com o objectivo de obter réditos. Um dos exemplos flagrantes destes propósitos de rendimento com os jogos de desentimentos é dado pelos painéis de comentadores televisivos.
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Ontem, na Quadratura do Círculo os participantes desentenderam-se, como é hábito e em cumprimento do título do programa, por razões de linguagem.
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No caso da greve (geral ou parcial) de ontem, a discussão centrou-se na discussão do conceito de greve-geral-à-nossa-moda: (1) a greve não foi geral porque, praticamente, no sector privado ninguém fez greve (2) a greve foi geral porque em Portugal as greves gerais são assim: greves do sector público. Trocado por miúdos, a greve foi (se foi, ou quis ser) uma greve geral do sector público. E aquilo que é óbvio, levou os comentadores a andarem às voltas com o tema durante metade do programa. Pacheco Pereira aproveitou ainda para levantar mais uma vez o espantalho das perseguições políticas, sem contudo avançar com propostas que possam erradicar-lhe os receios;
Lobo Xavier disse perceber a contestação pela quebra de poder de compra que afecta muitas famílias de funcionários públicos, sem contudo ter proposto o quer que fosse para aumentar as possibilidades do orçamento geral do Estado.
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Voltaram a discutir a Ota, andando às voltas acerca do qualificativo da decisão que falta tomar: se técnica, se política. Para Pacheco Pereira a decisão é política, e discorda da proposta do PR. Mas, mais tarde, veio a invocar a desactualização dos estudos para justificar a contradição das posições do PSD acerca do assunto, quando era governo e agora na oposição. Para Jorge Coelho a decisão é política, claro, como disse o Pacheco Pereira, não discordou explicitamente da proposta do PR, mas sempre foi dizendo que no tempo de CS, enquanto primeiro-ministro, estas coisas não foram discutidas no Parlamento. Lobo Xavier disse que sim mas que também.
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Ficou sem resposta esta questão elementar: Que decisões políticas podem ser tomadas que não estejam, pelo menos parcialmente, suportadas por estudos técnicos? As que decorrem de crenças ideológicas e as tomadas por palpites. Em qualquer dos casos a discussão, política, cai na rua e os estudos técnicos cada um faz os seus.

Wednesday, May 30, 2007

IMPOSTO DE MAIS-ESPECULAÇÃO - 2

José Manuel Fernandes e Vital Moreira envolveram-se ontem numa discussão quilométrica hasteando o "Guia Michelin". Para JMF, o Poceirão e as Faias, a Sul do Tejo, ficam mais próximos de Lisboa, para Vital Moreira, a Ota é o local mais conveniente para quem vive em Lisboa e arredores a norte do Tejo. E, ponto importante para Vital Moreira, a travessia da ponte oneraria o acesso e seria um maná para a Lusoponte.
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São estes e outros argumentos, chutados para o ar por quem perceberá muito de muitas coisas mas certamente pouco percebe de aeroportos, que lançam mais confusão em cima da confusão reinante. O ministro falou do deserto (em sentido metafórico, para enfatizar, disse ele mais tarde), Almeida Santos lembrou-se das bombas sobre a ponte, José Manuel Fernandes e Vital Moreira decidiram contar os quilómetros.
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São estes e outros argumentos com falta de calibre que incutem na opinião pública a convicção que, afinal de contas, a decisão quanto à localização do aeroporto, quiçá até quanto às suas características, se avalia por palpites ou com o conta quilómetros e a última edição do Guia Michelin. E que, se a Lusoponte beneficiar com a localização a Sul ( ou a Brisa) não há possilidade, por parte do Estado, de renegociar o contrato com a concessionária das pontes que atravessam o Tejo em Lisboa; ou que não é possível fixar tributação específica para as mais-valias que o aeroporto mais gerar na sua vizinhança, qualquer que venha a ser a sua a localização .
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Artistas, ao que parece, somos todos. Em aeroportos, se nem todos somos peritos, parece.

Tuesday, May 29, 2007

IMPOSTO DE MAIS-ESPECULAÇÃO

Caro J

Concordo consigo, que é necessário decidir quanto ao novo (ou ao velho) aeroporto, mas não concordo que a decisão tenha que fundar-se na base de suspeitas de enriquecimento de A, B ou C.
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Há dias, num almoço semanal de amigos (todos da escola onde V., suponho, também andou) e insuspeitos de vocações de direita ou alianças com os empresários que V. refere, comentava-se que se tem desenrolado ultimamente uma especulação desenfreada com os terrenos à volta, na Ota.
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Citaram-se nomes, alguns ligados ao PS. Quanto a mim, não é por aí que vamos lá. Com mais ou menos competência, mas sempre mais, espero, que o debate incompetente (falo por mim) sobre aeroportos na praça pública, a questão deve ser resolvida na AR, conforme propôs o PR.
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Se a opção por aqui ou por acolá vai determinar valorizações exponenciais, pois que se tributem valentemente as mais-valias. Se os ganhos esperados forem muitimilionários, que se tributem com taxas de fazer doer. Qualquer coisa para cima de 50%, porventura ajudaria bastante ao financiamento da obra e ainda sobrava muito dinheiro para os mais espertos.
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Quem comprou os terrenos adjacentes ao local eleito fê-lo a preços, relativamente, muito baixos. As mais-valias serão enormes, mas os impostos que o Estado poderá recolher também.
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Uma lei específica para o caso é também matéria da responsabilidade da AR.
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Aprovem-na, caramba!

AS SANGUESSUGAS

Via O Jumento
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A HERANÇA DEIXADA PELO PSD/CARMONA RODRIGUES
«De acordo com um documento a que o CM teve acesso, datado de 11 de Maio de 2007, só o gabinete de apoio à presidência de Carmona Rodrigues conta com um total de 59 assessores com contratos no valor de mais de 1,7 milhões de euros. A maioria destes assessores viu os contratos renovados no início do ano – terminam em Dezembro. Nesta situação estão 47 assessores, entre os quais o assessor de Carmona Rodrigues para a comunicação social, João Reis, que tem um contrato anual no valor de 43 380 euros. Por mês, João Reis recebe assim cerca de 3600 euros em bruto. Um valor superior ao vencimento de um vereador que ronda os 2500 euros mensais (depois de impostos).» [
Correio da Manhã]
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É sintomático que nenhum dos principais candidatos à presidência da câmara de Lisboa (ou à presidência de qualquer outra câmara do país) inscreva no seu programa o propósito de eliminar, pura e simplesmente, o recurso a assessores. E compreende-se: Se têm ambições e possibilidades de lá chegar, nenhum quererá perder a oportunidade de arranjar assessorias para amigos e ajudantes de percurso.
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Se encontram as vagas tapadas com contratos subscritos à pressa pela anterior administração, criam outras. É esta a explicação óbvia de reprodução dos assessores.
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E ninguém se preocupa em eliminar as sanguessugas. Ou questiona: Se os assessores trabalham o que fazem os quadros da Câmara?
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(Já depois de ter alinhavado estes comentários, soube que o Correio da Manhã de hoje noticia que 1800 colaboradores da câmara, a trabalhar com recibos verdes, correm o risco de perder o emprego. E que, dos 49 assessores do presidente, alguns (o jornal não sabe quantos) serão técnicos eventuais com emprego precário. Quando a confusão se instala, os boatos rendem.)

Monday, May 28, 2007

O ARCO DA VELHA

Os liberais, neo ou não , ficaram confundidos com a entrevista de Nobre Guedes ao Expresso.
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A intenção a que se encosta a devoção de Nobre Guedes a um Estado intocável é, não tenho dúvidas, o desejo do CDS/(PP?) se anichar o mais depressa possível debaixo do arco da governação.
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Dentro de dois anos, este Governo já deve estar suficientemente estafado para renovar a maioria absoluta, e o PSD ainda suficientemente partido para chegar lá. De modo que, ainda que Nobre diga o contrário, o objectivo é o de completar a maioria que fará falta ao PS. Se assim não fosse, se o objectivo fosse o de reduzir o Estado às dimensões que uma postura mesmo semi-liberal defenderia, o CDS não estaria tão pressuroso em querer-se arauto defensor do Estado Social e bater-se-ia pela redução das clientelas que enxameiam a administração pública e se engordam à custa de um Estado gordo.
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Se o CDS/PP quisesse reduzir o Estado (há, realmente alguma diferença entre a esquerda e a direita que não se meça pela dimensão do Estado que cada parte defende?) se fosse esse o propósito de um direita coerente, o CDS teria muito por onde se bater.
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Porque, mais do que pelo seu perímetro de atribuições, o Estado engorda pelo número de clientes que o querem sugar. Nobre Guedes poderia propor a eliminação de assessores das vereações municipais. Poderia até propor o fim das vereações executivas. Poderia propor o fim dos governos civis. Poderia propor mil e uma maneiras de defender o Estado das sanguessugas.
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Mas não o fez por quê?Porque, chegados debaixo do arco da governação, terão muitos clientes a exigir abrigo.

8 PAUS POR UM SUSTO

A ler E continua o espanto , relembro
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1961, Outubro
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Prenderam o Marinheiro, sussurrou-me o Camilo, logo que cheguei ao escritório, depois de se voltar para trás e puxar os óculos para a ponta do nariz, os óculos que usava eram só de ver ao perto. Fiquei sem fala, a fazer mil e uma contas de cabeça. Porquê? perguntei, e, quando perguntei, o Camilo já estava voltado para a frente. Voltou-se outra vez, uns instantes depois, depois de olhar à volta, os óculos outra vez descaídos, parecia um periscópio à cata de inimigos. A Pide, disse ele, ao passar o radar por mim.
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Eu tinha recomeçado as aulas, depois de três anos de férias escolares forçadas, trabalhava de dia, estudava à noite. O Camilo sentava-se na secretária à minha frente, junto à janela que dava para a rua, e se o trabalho não apertava, o que acontecia frequentemente, voltava-se para trás para falar do Gavião. Tinha três vezes a minha idade, quando o transplantaram para Lisboa já era tarde demais, deixara muitas raízes na terra. Nunca tínhamos falado de política, no escritório não se falava de política, e eu não tinha notícia de que alguém alguma vez dali tivesse sido preso. Era na escola que as notícias sobre o momento político se espalhavam, e o ano era fértil em acontecimentos que os jornais censurados não divulgavam ou faziam-no de forma rasurada.
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A caminho de Santa Apolónia, descia todas as manhãs pela rua que ia dar ao rio, e atestava nele todos os sentidos. Um dia, em que me atrasei um pouco, encontrei-me com o Marinheiro, que trabalhava no mesmo corredor que eu, e, fiquei a saber, vivia também para os lados onde eu morava. Passámos a fazer o caminho várias vezes juntos, o Marinheiro tinha a minha idade, falava-me muitas vezes de movimentos operários, um discurso que a mim, nascido numa aldeia rural, se me interessava não me comovia. Em casa, na aldeia, habituara-me a sintonizar à noite a "Rádio Moscovo" mas o tom de propaganda dos comunicados nunca me tinha arrebatado. "A verdade é só uma, rádio Moscovo não fala verdade", do regime contra-informava no mesmo tom falsete. Ouvia-os por curiosidade e não por adesão aos discursos.
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Foi ainda por curiosidade que um dia perguntei ao Marinheiro o que é que havia de verdade nas notícias que corriam acerca de prisões por razões políticas. Tossiu o Marinheiro duas vezes antes de me responder, pôs-se mais vermelho do que era habitual, e contou-me, sempre em voz baixa, histórias que eu nunca tinha ouvido contar. No fim, perguntou-me se eu não queria contribuir para os presos políticos.
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Contribui com 8 paus, o preço de duas idas ao cinema Imperial, cada sessão dois filmes.
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Passada uma semana, nem tanto, volta-se para trás o Camilo a dizer-me que estava preso o Marinheiro.

Sunday, May 27, 2007

A BOTA DE FREI TOMÁS

Caro J
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Outra vez, desta vez a propósito da Ota como local do novo aeroporto, e da recomendação do PR para o debate aprofundado da questão na AR, V. despacha:
“Pergunte-se a Cavaco Silva quantos em quantas das grandes obras que lançou foram alvo de debates profundos no parlamento.»

É a velha questão de Frei Tomás. V. pode passar a vida a discutir as incoerências do santo mas não sai do mesmo sítio. Mesmo dando de barato que o santo nada fez daquilo que ele diz que se faça, o que nos interessa a nós não é, obviamente, o que ele não fez ( a não ser para o julgar por essa falta, mas isso faz-se em tempo de eleições) mas a pertinência ou impertinência daquilo que ele recomenda que se faça.
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Ora no meio da confusão que se instalou na discussão em praça pública, a localização do aeroporto na Ota tem de ser debatida em sede própria porque o Governo não foi capaz de, até agora, dizer claramente aos portugueses as razões da sua opção. Mesmo quando este Governo invoca, em abono da Ota, as opções (necessariamente provisórias) de governos anteriores sobre o assunto, o argumento não colhe porque: (1) essa opção pode não ter sido a mais correcta, (2) novos dados podem recomendar solução diferente.

Para complicar todo este imbróglio, o ministro da Obras Públicas deu o flanco com uma intervenção que, ainda que contextualizada, vulnerabilizou ainda mais a defesa da posição do Governo. Os argumentos lançados posteriormente por individualidades que apoiam politicamente o Governo, não só não deram consistência às palavras do Ministro como juntaram mais confusão à confusão já existente (Almeida Santos invocou a vulnerabilidade da ponte a ataques terroristas, um “handicap” a que o próprio Ministro na entrevista que deu à “SIC notícias” não valorizou, Vital Moreira argumentou os interesses da Lusoponte, como se não existissem interesses em jogo em qualquer dos casos). Ainda ontem noticiava a Antena 1 da RDP que uma entidade responsável, cuja designação não retive, reprovava a Ota por limitações de tráfego (não consente mais do que 30 aterragens e 40 levantamentos por hora); à noite, na SIC notícias, Augusto Mateus, que foi ministro de Guterres, incumbido de estudar o assunto, mostrava desconforto por lhe ter sido restringido o âmbito de análise.
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Eu, que também de aeroportos nada sei, sei que a Ota se transformou num molho de brócolos e não vai ser possível desatá-lo no meio desta balbúrdia toda. Claro que o Governo pode querer poder querer e mandar, mas não lhe auguro nada de bom se for por esse caminho. O PR manda pouco mas o PM, se pensa que está de pedra e cal, mostra fissuras evidentes.
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Tão evidentes, que dispensam diploma em engenharia civil e inscrição na Ordem.

OS ANTILIBERAIS

Para quem se afirma liberal de sete costados, quem não é liberal é socialista, eventualmente a caminho do comunismo, se já não passou e deu a volta.
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De volta à direcção do CDS, diz o Expresso de ontem, Guedes (Luís Nobre) distancia-se do discurso liberal, deixa elogios ao Governo, mas recusa coligação com o PS.
Nobre Guedes acha que o CDS existe, antes de mais, para os mais pobres, os marginalizados. Que o CDS não tem tido uma preocupação solidária e muitas vezes tem tido uma preocupação anti-social; Tem dificuldade em aceitar algo como o Compromisso Portugal, todas as teorias da revolução liberal cairiam se essas pessoas passassem uma semana no Hospital de S. José a ver o que é pobreza, ou fossem à Pampilhosa da Serra a ver o que é desertificação, o interior. A intervenção do Estado é insubstituível; Hoje vive-se em Portugal um receio generalizado ao ver que aquilo que era intocável pode ser tocado - as pensões. Depois, a saúde. Há que ter a noção que o nosso sistema não é tão mau quanto o pintam, mas pode ser melhor, e é a única forma de dar um mínimo de segurança em termos de saúde às pessoas que não têm outros meios; Mesmo admitindo que algumas coisas têm que mudar para salvar o essencial, num país como o nosso uma concepção liberal seria uma catástrofe; A saúde deve ser a primeiríssima prioridade, partindo do princípio que o Sistema Nacional de Saúde é insubstituível.
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É tempo de em Portugal se permitir a contratualização civil das relações entre homossexuais. Isto não é essencial na agenda do CDS, mas é importante.
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CDS liberal, só no social. Qual a distância entre o CDS de Nobre Guedes e o Bloco de Esquerda? Liberais a sério, em Portugal, só nos blogs? Que as ideologias tenham acabado, percebe-se. Que as ideias sejam as mesmas, espanta. Ou a moda para a próxima estação é a pele de cordeiro?

Saturday, May 26, 2007

AUTO - RETRATO


O Guggenheim de Nova Iorque reuniu numa exposição, no Verão de 1998, que denominou "Rendezvous- Masterpieces from the Centre Georges Pompidou and The Guggenheim Museums", as obras mais representativas das colecções dos dois museus. Estando, por perto, fomos visitar o confronto, que subia na estupenda espiral concebida por Frank Lloyd Wright, das obras menos recentes às mais recentes. Estavam lá todos os artistas famosos dos últimos 100 anos: Bacon, Balthus, Beuys, Brancusi, Braque, Calder, Cézanne, Chagall,Chillida, Dali, Chirico, Kooning, R. Delauney, S. Delauney, Derain, J. Dubufffet, Duchamp, Max Ernst, Giacometti, Gorky, Juan Gris, Jasper Johns, Kandinsky, Paul Klee, Ives Klein, Léger, Lichtenstein, Magritte, Matisse, Miró, Modigliani, Mondrian, Picabia, Picasso, Pollock, Rauschenberg, Rothko, Serra, Tàpies, Warhol, e muitos outros.

E lá mesmo em cima, quase a terminar o desfile, sobre uma peanha, dentro de uma campânula de vidro, uma lata de excrementos de Piero Manzoni, obra (produto) intitulado (com marca) em italiano (mas também em inglês e alemão, por indubitáveis intenções de exportação do produto) : "Merda d´artista". Como sempre acontece nestas ocasiões, os visitantes miravam, remiravam, davam a volta à peanha, alguns, poucos, comentavam discretamente, poucos sorriam, não vi quem desatasse uma incontida gargalhada. Os museus de arte, mesmo de arte contemporânea, são atravessados pelos visitantes como se atravessam as catedrais: em silêncio, respeitador das relíquias elevadas aos altares.
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Piero Manzoni só viveu 30 anos, mas durante a sua curta existência não obrou apenas as 90 pequenas latas, uma das quais, a nº. 031, pertence ao Georges Pompidou. São contudo as suas latas, a que ele atribuiu o preço de igual peso em ouro, que constituem a sua imagem de marca, tendo um dos exemplares atingido no último leilão da Sotheby's um preço recorde de 124 mil euros. Ao mesmo preço, a produção total valerá quase 12 milhões de euros.
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É obra!
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(via O Jumento )
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Transcrevo do catálogo da exposição de 1998:
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"The work of art, wrote Manzoni, "finds its source in an unconscious impulse issued from a collective substractum of universal value. It is this common foundation that all people derive their gestures and the artist roots the arkhai of organic existence...The work of art thus acquires a totemic value, as living myth, primary and direct expression freed of sybolic descriptive burdens". "Clearly, today, we cannot help but recognize the "totemic value" of Manzoni´s can of shit. While it adressed the mercantile system (is was literally worth its weight in gold), just as the plastic-wrapped corpses planned by Manzoni would have been an homage to the museum system. Artist´s Shit nº.031 is one of the most ccomplished self-portraits of recent art.


Friday, May 25, 2007

CAUSA (POUCO) LIBERAL - 2

Já esperava a contradição: o espírito libertário tem limites que o direito absoluto de propriedade, um dogma libertário, impõe. AA, em A Arte da Fuga considera que " Se um pássaro é pertença de uma pessoa, é absolutamente pertença dessa pessoa. "
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Mesmo como metáfora, é curiosa esta doutrina libertária de propriedade de um pássaro.
Os pássaros, exceptuando aqueles (poucos) que o homem domesticou, extirpando-lhe um dos seus instintos primordiais, são o símbolo mais nítido da liberdade.

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A propriedade de um pássaro, se não decorre de procriação em cativeiro, caso em que o pássaro se voa, voa pouco, só pode acontecer por aprisionamento contra a vontade do cativo.
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Decorre daqui um confronto entre dois vectores libertários: a liberdade do pássaro (que, não pertencendo a ninguém, pertence a todos) e a propriedade do pássaro por acção de armadilha.
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Se o pássaro é caçado e morto para alimentação do caçador, o acto justifica-se por razões antigas de sobrevivência do homem. Se o pássaro é apanhado e colocado na gaiola, nenhuma razão de subsistência humana justifica o cativeiro, e a liberdade coartada ao pássaro é também coartada a todos os que o deixam de ver voar (propriedade original).
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Discordo, pois, em absoluto, que a pertença absoluta seja, em qualquer caso, uma questão de perícia em armadilhas.

JAMOR

O estádio do Jamor vai ter, mais uma vez, oportunidade para mostrar o que vale em cada ano que passa: ser palco da final da Taça.
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O estádio do Jamor é um ícone do regime salazarista que continua a dar guarida a emoções passadiças. Só por amor a recordações de um tempo que deixou sobretudo más, se pode perceber esta persistência em agravar o déficit do Estado com a manutenção de um relvado inaugurado no tempo do outro senhor, que abre as portas para a Taça uma vez por ano.
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São vários os "capo" da bola que se têm mostrado favoráveis à deslocação do jogo da final da Taça para um dos estádios (a sortear) que a generosidade de Guterres ofereceu a este país a contas com o déficit, e a razão é elementar: Qualquer dos novos estádios arruma muito mais fans, e em muito melhores condições, que o estádio oferecido por Salazar à Nação.
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Esta tarde, contudo, ouvi dizer na rádio ao presidente da FPF que "deve considerar-se a adaptação do estádio nacional às exigências dos tempos que correm, nas actuais condições a receita ficará pela metade, quanto muito"
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É espantoso, mas parece que Portugal precisa de investir em mais um estádio!

Thursday, May 24, 2007

CAUSA (POUCO) LIBERAL

Armou a tenda, bem perto da rotunda do Ramalhão, junto à estrada Sintra- Cascais, o circo Cardinali.Tem tigres, não sei se tem ursos.
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É chocante a indigência humana que está por detrás destes espectáculos de domadores de feras e a tortura dos animais enjaulados em curros onde não podem dar um passo. Aprisionados ou em liberdade, os animais são cada vez menos livres de viver.
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Mais valem dois pássaros a voar. Lamentavelmente, contudo, há muito quem defenda o direito do homem a um pássaro na mão.
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( Comentário a Campanha Liberal em A Arte da Fuga )

DEPOIS DA SINA

Por ler Depois do espanto, a vivência



1961, Setembro

Já com a sina destraçada, peguei da mala e continuei a descer a avenida, não por contar com a ajuda dos santos mas porque para o lado dos Restauradores havia mais luminárias. Rodei na primeira à esquerda, para o Largo da Anunciada, e deixei-me depois escorregar pela Rua das Portas de Santo Antão abaixo, parando aonde o pessoal da câmara fazia esguichar água para limpar a rua.

Quando pude passar, passei, e continuei a mudar-me na rua, como um autómato, em direcção ao Rossio.

Estava a chegar ao D. Maria quando alguém me interpela a perguntar se procurava quarto. Interroguei-me antes de responder, afinal de contas no dia seguinte ia a uma inspecção médica, se não me apresentasse em condições aceitáveis lá se iria a hipótese de emprego, a âncora que procurava em Lisboa. Quanto é, quanto não é, tenho de estar de manhã, às oito e meia, nas Escadinhas do Duque, saio às sete e meia, são quase quatro da manhã, quanto me custam três horas e meia? O outro olhou-me como quem olha um extra-terrestre e disse: São oito paus mas às sete quero o quarto livre.

Carreguei com a mala por uma escada esconsa até às águas-furtadas, em cima do terceiro andar, atrás do porteiro a marcar a passada tilintando o molhe de chaves na palma da pão esquerda, como se fosse o patrão e eu o alombador.

Chegados à porta, rodou a fechadura, empurrou a porta e ficou à espera dos oito paus. Perguntei-lhe se tinha troco de vinte, disse que não, combinámos que pagaria à saída e ele não disse nada mas desceu. Evitei, deste modo, mostrar-lhe onde guardava a burra, questão vital porque não tinha outra.

Nem me despi para dormir uma hora, se tanto. O quarto tresandava a humanidade encardida, mesmo de janela aberta, o ar agoniava ainda mais a minha insónia. Ainda espreitei por debaixo de uma coberta surrada e decidi-me estender-me em cima dela, descalço e sem casaco. Pensei em tudo menos na sina.

Às seis já estava a descer a escada e a fazer contas com o porteiro.

Eram dez horas quando entrámos, vinte candidatos, para a inspecção perante uma junta médica de três clínicos. Passei nos exames e fui admitido.

No escritório, eu tinha menos vinte anos que o mais novo dos que já lá estavam. Recordo-me deles como se estivessem aqui, sempre a olharem, curiosos, as minhas heterodoxias amanuenses.

Um dia, a propósito do exame médico, perguntei ao Fernandes se ele sabia a razão pela qual nos tinham mandado por em pelota e soprar nos punhos sem sair o ar.

O Fernandes tinha sempre resposta pronta na língua e sabia, ou se não sabia parecia, tudo quanto vinha na enciclopédia. Olhou para mim um longo instante, e disse com a convicção de sempre:

Ah! Isso era para ver se tinhas os tomates rotos!

Há quem tenha? perguntei

É do que há mais, respondeu ele. E nem sorriu.

OUTRA VEZ, BOTA!

O projecto de aeroporto da Ota volta a excitar as hostes pró e contra não se sabe bem o quê. Desta vez foi o ministro do aeroporto que entendeu dar como boas razões para excluir a hipótese do aeroporto na margem Sul o facto, evidente para ele, de a Sul estar o deserto e ser inconcebível um aeroporto onde não há cidades, não há hospitais, não há nada. Confrontado com a aberração da sua argumentação, limitou o Sul sem condições aeroportuárias aos locais do Sul concorrentes da Ota, acertando em cheio no pé. Saiu em socorro de tão desastrada justificação, o presidente do partido que o apoia argumentando, com saudável ironia, que asneiras toda agente diz, ele próprio já disse muitas, mas um aeroporto no Sul obrigaria à travessia de uma ponte, se os terroristas fizessem explodir a ponte ficava o aeroporto a falar sózinho.
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Não há duas sem três.
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Perante tanta inconsistência por parte de quem governa e de quem opõe, o novo aeroporto promete continuar a ser discutido pelos especialistas da praça pública, geralmente desportistas de bancada. Por este andar, o aeroporto ainda acaba por aterrar na Portela.

Wednesday, May 23, 2007

A RIQUEZA DOS POBRES

Nouriel Roubini é, nos dias que correm, um dos economistas mais lidos e ouvidos nos EUA. Roubini, de origem italiana*, mantem um blog, RGE, do qual respiguei o seu comentário, colocado no blog anteontem, 21/3**, sobre um artigo publicado na Business Week acerca das consequências perversas do crédito compulsivo. Portugal não é os EUA mas há problemas comuns, geralmente do lado negativo.

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In recent years, a range of businesses have made financing more readily available to even the riskiest of borrowers. Greater access to credit has put cars, computers, credit cards, and even homes within reach for many more of the working poor. But this remaking of the marketplace for low-income consumers has a dark side: Innovative and zealous firms have lured unsophisticated shoppers by the hundreds of thousands into a thicket of debt from which many never emerge...

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As an online addition to this excellent cover story Business Week asked me and another blogger, Tyler Cowen from George Mason University to debate online the following question:
Stop Fleecing Poor Americans. The U.S. government should place greater restrictions on car sellers, pay-day lenders, and tax preparers who offer the working poor cash or credit with high fees and interest rates. Pro or con?

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Correcções - *Nouriel Roubini nasceu em Istambul filho de pais iranianos judeus (2010/05/08)

** - Obviamente, 21/5

O MAL E A CUNHA

António Barreto, um dos colunistas mais prestigiados cá do sítio, escreve no Público de domingo passado, a propósito do desconcerto que se observa no ensino superior, e particularmente no ensino superior privado, um artigo (O mal e a caramunha) onde, afirma: "É justo responsabilizar o Governo (...) (porque) o Estado atribui-se a competência de reconhecer as instituições, de certificar o seu interesse público...O Estado diz aos estudantes: podem frequentar em paz estas instituições...(mas) depois queixa-se da proliferação de cursos absurdos..."
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A finalizar, AB sentencia que "O reconhecimento do valor profissional dos diplomas compete obviamente às ordens profissionais (...) Ao Ministério das Universidades deveria apenas competir zelar pelo entrosamento do ensino superior privado no conjunto do sistema de ensino superior (...) assim como facilitar, desde que não seja o próprio a fazê-lo, a criação de regras de avaliação pública e informação capazes de tornar relativamente transparente e acessível este sistema público".
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Mesmo atendendo ao facto de AB ter feito toda a sua carreira profissional no âmbito de organizações governamentais ou académicas do Estado, esperava-se que ele tivesse uma perspectiva diferente daquela que tem conduzido ao actual estado de coisas. A avaliação das competências devem fazê-la os empregadores, a começar pelo maior empregador que é precisamente o Estado, e nomeadamente no recrutamento do maior número dos seus servidores, que são os professores, a começar pelos docentes universitários. AB sabe bem, que a prevalência da endogamia nas universidades, que lhe tem arruinado a fibra genética, decorre, frequentemente, da cunha e do amiguismo.
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A intromissão das ordens profissionais (resquício corporativista que faz cada vez menos sentido numa sociedade livre) e a desvinculação dos órgãos universitários no processo de auto regulação
fazem do texto de AB uma receita requentada.
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A avaliação de competências deve realizar-se mediante a prestação de provas. E esta afirmação, que deveria ser uma banalidade numa sociedade que primasse pela transparência dos processos, está quase completamente arredada da forma como se processam as admissões dos servidores do Estado. Os resultados estão por demais à vista: campeia a incompetência por recrutamentos e progressões na carreira sem provas em exames específicos. É de tal modo grosseira a paralaxe que se estabeleceu do lado dos que servem o Estado, e normalmente o criticam, como se a culpa fosse dos que não trabalham dentro das suas paredes, que o sindicato dos professores interpõe providência cautelar para um exame que nem sequer consequências tem para os professores e alunos.
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Tuesday, May 22, 2007

Ourém


OS MEDOS DOS PROFESSORES

O Sindicato dos professores interpôs providência cautelar a propósito da realização de provas de aferição, de português e matemática, salvo erro, por suspeitar que as provas não têm como objectivo último a aferição do sistema mas a avaliação de alunos e professores. Contado desta forma, mas foi desta forma que a história foi hoje contada, é preciso ler e reler para tentar perceber.
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Porque, que diabo consegue aferir um sistema sem avaliar os que nele participam e que, neste caso, são, pelo menos, dois grupos: alunos e professores? Que sindicato é este que faz o chinfrim que faz porque suspeita que o Ministério quer avaliar os professores e, sacrilégio máximo, quer avaliar os alunos? Que professores são estes que têm este Sindicato? Que país é este que tem estes professores?

Jasmim


QUASE TROPICAL

(Mato Grosso do Sul, Março, 2006)
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A Zelinha, não lembra da Zelinha? a Roca? Não lembra você de outra coisa, Dona Flora. Zélia Gonzaga Patrocínio do Salvador, a Roca, afilhada de São Roque do Paraná, você não lembra, não? Tinha um nome e tantos mas não tantos quantos os pais que eram muitos ao mesmo tempo. Pelo menos era o que constava. A Dona Flora lembra-se dela, de certeza que lembra. Ela andava um ou dois anos à nossa frente, no Ginásio. Pois talvez não. Você é para aí uns quatro anos mais nova, não? Naquela idade quatro anos faziam diferença, hoje não, acima dos sessenta temos todos a mesma. A mim, agora, quando me perguntam a idade respondo, aposentada. Idade a partir dos sessenta é matéria confidencial. E depois, a Dona Flora, naquela altura, ainda não morava no bairro, pois não? Eu acho que não, é natural que não se recorde dela, ela era loura, assim louro claro, muito claro mesmo, e não era oxigenada, não, era mesmo loura natural, de cabelo caído até aos ombros, magra, alta, e usava saltos altos, imagine, e de olhos azuis, ninguém sabia de onde tinha vindo a encomenda. Vivia com a mãe e uma irmã, a Dorinha, mas a Dorinha, se era irmã da Zelinha, tinha vindo de outro lado. A Zelinha dava nas vistas, claro que dava, não havia cão nem gato que não desse por ela, que não quisesse sair com a Zelinha, mas com quem ela perdeu mais tempo foi com o Lelo. O Lelo andava com todas, Minha Nossa. Comigo nunca andou, não senhora. Em boa verdade, é que todas queriam sair com o Lelo, o Lelo era um pedaço, você lembra-se do Lelo não lembra, quem é que não lembra. Ainda chegou a constar que o Lelo ia casar com a Zelinha, mas depois, à última hora, o Lelo deu o fora, nunca se soube porquê, ela ficou capaz de morrer mas acabou por casar com o Felício, que não era da turma, ela tinha de casar com alguém, não é verdade, ele era uns muitos anos mais velho do que ela e nem era o sapato que lhe servia, mas a Zelinha estava a ver o tempo a passar, passou-lhe o Felício por perto, agarrou-se ao Felício, acontece tantas vezes, não é, quem é que se casa por paixão hoje em dia, poucos casam por paixão. Eu casei por paixão, Dona Flora, eu casei. Foi sol de pouca dura mas casei por paixão. Eles casaram e zarparam daqui para Rio, o Felício tinha lá um tio com banca de secos e molhados, nunca mais deram sinal de vida. Quem chegou a andar com a Dorinha foi o meu Rogério, ao Rogério tocavam sempre as amigas das amigas do Lelo, eu fui a excepção da regra, casei com ele, já lá vão quase quarenta anos, meu Deus como o tempo passa e nós a dizermos sempre o mesmo, mas, então, há tempos, há coisa de dois meses, a Zelinha deu à costa, encontrei-a no mercado mas acho que ela só lá estava para matar saudades, não a vi comprar nada, quando a vi não a reconheci. Foi pela fala que eu suspeitei, ela continua a ter aquela vózinha de pãozinho sem sal: o senhor pode dizer-me por favor onde posso encontrar não sei-o-quê? Foi pela voz que eu disse de mim para mim, Luísa, esta múmia ambulante só pode ser a reincarnação, em muito mau estado de conservação, da Zelinha que eu conheci. E era mesmo. A princípio, quando me dei a conhecer, ela nem se lembrava de mim, eu acho que ela já não se lembrava de quase nada à volta, parecia mais um fantasma em visita turística ao futuro. Depois desemburrou, disse-me que o Felício já tinha morrido, ela ainda tinha continuado com o negócio por algum tempo mas depois fartou-se e passou-o, agora goza dos rendimentos que não devem ser muito chorudos pelo que deu para ver. Tive pena dela, a verdade é que vendo-a assim, quase de um dia para o outro, tão cheia de pregas e de reboco, a bem dizer ela estava mais reboco que outra coisa, tive pena dela, a mim parecia-me que a tinha visto no dia anterior com aquele sorriso de branca de neve e afinal já passaram quarenta anos, tive pena dela e convidei-a a ir lá a casa, e ela aceitou, ia caindo para o lado mas aceitou. Quando chegámos a casa, o Rogério veio abrir a porta, o Rogério agora também está aposentado, não sei se já lhe tinha dito, então como continua a não saber fazer nada portas adentro está sempre à espreita da oportunidade de abrir a porta, mas não é para se pôr portas afora, antes fosse, escusava de me ralar tanto, tem alturas em que abre a porta vezes seguidas porque acha que alguém bateu. É pancada que ele já tem lá dentro, de certeza, e ele também não reconheceu a Zelinha, nem pela voz a reconheceu. Mas também não admira, há muitos anos que ele vem perdendo o ouvido, deve ser por isso que tem aquele tique de se levantar e ir à porta. Agora quando lhe disse quem lhe tinha entrado em casa, o homem virou-se completamente do direito, estiveram a tarde inteira a recordar a história que tinha acabado há quarenta anos, quem os ouvisse, como eu os ouvi, haveria de pensar que dali para frente tinham sido só sacos de água quente. Quando ambos se calaram, de repente, é que eu entendi meter o dedo na conversa e perguntei à Zelinha se ela sabia que era feito do Lelo, afinal eles tinham ficado noivos, ela tinha casado com o Felício, e depois ninguém mais soubera dele. E não é que a Zelinha sabia tudo do Lelo, Dona Flora? Tudo, tudo, tudo. Inclusive, disse que estava agora a viver com ele, não estavam casados, dizia ela, para não perder o direito a uma pensão do falecido marido, também não percebi que diacho de pensão era a dela se ele era estabelecido, mas enfim, cada qual conta a história que lhe convém, e eu agora perdi o fio à meada, mas já sei, estava a dizer que ela então disse que agora vivia com o Lelo, porque, imagine, tinha tido pena dele, que o coitado também tinha ficado viúvo, que tinha três filhos mas não sabia deles, porque eles nunca mais tinham sabido dele, e a Zelinha e o Felício não tinham tido filhos, ela não quisera, disse ela, o Lelo estava um frangalho, velho, doente, arruinado, a viver de uma pensão de miséria e de uns trabalhos de ocasião. Ela cansara de ver tanta moléstia à volta, tinha dado à costa porque, você sabe Luísa, sempre fui muito afeiçoada a isto, há tantos anos que aqui não vinha, as saudades eram muitas, e depois ela, se não viesse apanhar um pouco de ar fresco, se calhar ainda se apagava antes do Lelo. O meu Rogério, que tinha estado que parecia outro toda a tarde com a chegada daquela visita fantasma ao passado, virou deprimido quando ouviu aquele rol de desgraças, o pobre do Rogério ficou mesmo enfiado, enfiado mewsmo a sério, ao saber da sorte do Lelo, eles tinham sido muito chegados, sabe Dona Flora, tinham vivido os melhores anos juntos no forró, o Lelo sempre fora um bacano, o Rogério não esquecia e até tinha perdoado há muito tempo ao amigo a falta de notícias. Quando a Zelinha acabou o relatório sobre a ruína do Lelo, o Rogério disse que estava com enxaqueca, você sabe que ele volta e meia se queixa de enxaqueca, pediu desculpa e foi deitar-se, e a Zelinha depois despediu-se, nem disse onde ia, também não lhe perguntei, fiquei tão preocupada com o Rogério como o Rogério com o Lelo. No outro dia, logo no outro dia de manhã, diz-me o Rogério que tinha estado a pensar toda a noite em viajarmos até Búzios. Fiquei varada, porque carga dos diabos até Búzios assim de emergência, Rogério, tantas vezes tínhamos pensado sair daqui, reformados os dois, temos tanto tempo que nem sabemos quanto temos, mas faltou-nos sempre o principal, a Flora sabe como é, as pensões são curtas e cada vez temos mais dores no corpo, vai para a farmácia o que dava para ir a Búzios e voltar pelo menos uma vez por ano, mas o Rogério nem quis fazer contas ao passeio, queria ir a Búzios, tinha de ir a Búzios, parecia pagamento de promessa, tanto insisti que lá se descoseu que íamos a Búzios para matar dois coelho de uma cajadada, ia-se de passeio e o Rogério visitava o amigo que já não via há quarenta anos, amigo do peito, agora velho, doente e arruinado, uma lástima, enfim. Flora, sempre pensei que os homens são assim, mais amigos do seu amigo que nós as mulheres, as mulheres só não se liquidam umas ás outras porque os homens se põem no meio, o meu Rogério, então, ficou mais morto com as notícias do amigo do que, certamente, o amigo, naquela hora. Mas aonde é que eu ia? Pois, o Rogério teimou, teimou, teimou, e eu perguntei-lhe onde é que ele ia descobrir o Rogério, em quarenta anos o amigo Rogério podia ter dado a volta ao mundo e ter ficado lá pelos confins, e ele esquecera de perguntar à Zelinha onde tinha ela pescado o peixe retardado. Pelos vistos o Rogério tinha pensado toda a noite do assunto mas não tinha pensado no paradeiro do amigo, de modo que deu um salto da cadeira, começou a farejar a casa toda e perguntou pela Zelinha, a Zelinha foi embora Rogério, deu-te a enxaqueca e ela foi-se, para onde, não disse nem eu lhe perguntei. Ia-lhe dando uma coisa. Começou por embirrar comigo, eu devia ter oferecido dormida a ela, e jantar, e não sei que mais, o homem tinha-se virado do avesso outra vez, que é o lado que ele usa mais agora, depois que se aposentou, nem parece o mesmo, mas ficou trinta vezes pior com o desaparecimento súbito do fantasma da Zelinha, e, de repente, saiu de casa em pijama e chinelos. Deve ter dado uma volta por perto porque passada meia hora, se tanto, entrou em casa e pôs-se a vasculhar, outra vez, nos papeis velhos. E não que é que por milagre, que só pode ser de Nosso Senhor, o homem não encontrou o telefone do amigo, que já não era aquele, isso já nem seria milagre mas exagero que só acontece em novela, mas conseguiu saber a morada naquele tempo e, a partir daquela tanto procurou, tanto procurou, que chegou ao telefone de um sítio onde o Lelo, pelos vistos, trabalha às vezes. Então ficou mais descansado e, ao fim de oito dias, não menos, que durou o trabalho do detective, voltou a falar. Durante uma semana nem pio, só conversa telefónica, ainda nem sei quanto é a conta. E fomos a Búzios. Fomos a Búzios, nunca pensei que o calhambeque aguentasse, aguentou que nem um herói, o milagre deve ter sido encomendado de serviço completo, o calhambeque anda sempre asmático, fazia muito tempo que não saía do mesmo sítio, já tinha crescido erva por baixo, mas aguentou sem qualquer ameaço, só não acredita em milagres quem não quer, eu acredito, às vezes acredito, e então passámos, no caminho, a visitar o Lelo, eu acho mesmo que o Rogério nem queria ir a Búzios, tanto assim que depois de estar com o amigo tomou o caminho de volta, quando dei por ela já estávamos a caminho de casa sem ter ido a Búzios, mas fomos, tivemos que dar mais meia volta mas lá fomos. Fomos e até gostei. Gostei, sim senhora, Dona Flora. Não sei ainda se temos de passar o resto da vida a feijão e arroz mas gostei. Agora o melhor da história, Dona Flora, não foi a ida a Búzios, o melhor da história mesmo não foi no fim mas foi a meio. Já lhe disse que o Rogério tinha passado uma semana inteirinha à descoberta do amigo perdido, telefonou para tudo quanto é sítio, até que o descobriu e lá fomos. Mas não chegou a falar com ele, queria fazer surpresa, eu disse-lhe que não parecia bem, o Lelo até podia morrer, de repente, de contente, mas o Rogério entendeu-me em sentido figurado e lá fomos de surpresa. Pelo caminho, que nunca mais acabava, o Rogério foi pensando em tudo o que poderia ter acontecido de mau ao amigo Lelo, pensava de alto, claro, para eu o animar com o contrário, não houve nada que ele não tivesse engendrado de cabeça, e eu a pôr-lhe gelo na testa, que o Lelo devia estar a morrer, qual a morrer qual quê, vais ver que ela está pior que ele, respondia-lhe eu, que a Zelinha não tinha ido tão longe mas ele compreendia que ela não o quisesse magoar, que se calhar quando chegássemos ele até já tivesse morrido, que, pior ainda, talvez chegássemos no dia do funeral, o Rogério tem mais medo de funeral que de morrer, ele, funeral, só irá ao dele se não arranjar desculpa, e imagina Dona Flora, ás tantas diz-me ele que, com a emoção da surpresa, talvez o Lelo lhe morresse nos braços, e fez uma cara angustiada, parecia que a morte do Lelo estava ali mesmo a acontecer. Aí, Dona Flora, não consegui aguentar com a cena, deu-me uma vontade de riso, e dei uma gargalhada e depois não conseguia parar, não conseguia parar mesmo, uma coisa aflitiva, nunca vista. E o Rogério, moita, parecia que tinha sido soprado, pôs-se vermelho, vermelho mesmo, à moda antiga, mas eu não conseguia deixar de rir, Dona Flora, é que não conseguia mesmo. Não sei que me deu, nervoso talvez, o pior é que Dona Flora olhava para ele e parecia-me um tomate, um tomate mesmo, tomate grande e maduro, eu nunca tinha visto uma coisa assim e, de repente, caí em mim e disse-lhe, Rogério pára, preciso de vomitar. E ele parou. Estivemos ali um bocado, sem dizer nada um ao outro, acabámos por nos recompor e lá fomos. Mas não é que, de vez em quando, me dava uma vontade desgraçada de rir, Dona Flora, uma coisa sem explicação, bastava ver a cena e, fiz um esforço danado para não voltar ao mesmo, fiquei com uma dor aqui, Dona Flora, que ainda não me passou. Mas o Rogério deixou de falar no assunto. De vez em quando deixava ir o calhambeque abaixo, eu acho que ele a páginas tantas fazia os possíveis para arruinar o calhambeque e arranjar uma boa desculpa para voltarmos a casa de trem. Eu acho que ele tinha ficado apavorado com a cena, e se eu lhe tivesse dito, Rogério voltamos para trás, não há condições psicológicas para ir mais adiante, ele tinha voltado de bom grado, mesmo que chateado por dar parte de fraco. Eu acho. Mas o calhambeque não ajudou mesmo nada, Dona Flora, ele metia-o abaixo e eu acho que o estupor vinha a cima por ele próprio, aquilo não era o calhambeque, era um sempre-em-pé, olhe dona Flora coisa mais estranha, se não foi por milagre não tem explicação. E lá chegámos e fomos direitinhos ter com o Lelo, que onde ele mora agora é tudo em ponto pequeno. E agora, sente-se, Dona Flora, sente-se para ouvir o resto e não cair ao chão.Quando chegámos em frente da morada, já passava das duas da tarde, eu estava já com vontade de comer este mundo e outro, tinha tomado o café da manhã, só café, mas o Rogério tinha teimado que não havia almoço sem encontrar o amigo, talvez que ele até convidasse para almoçar, e eu, que podia fazer, Dona Flora, aceitei. Estava um calor dos diabos. O Rogério parou o calhambeque em frente da casa, que afinal era uma quitanda de venda de tabaco, jornais e revistas, e eu sei lá que mais, parecia a casa do Salamim, cabe lá tudo se for sem mim, e eu saltei do carro para me pôr à sombra. O Rogério atravessou a rua e foi lá dentro. Não estava ninguém. Chamou, veio cá fora, voltou para dentro, e nada. Aí eu decidi perguntar a um cavalheiro que se aproximou, por acaso o senhor conhece o senhor Lelo, o homem olhou para mim meio desconfiado e disse: o senhor Lelo sou eu minha senhora, em que posso ser útil. Nem tive tempo de responder porque, entretanto, o Rogério atravessou a rua a dizer que não estava ninguém em casa, e é quando olha para o Lelo, Lelo, é você!, o outro olha para ele desconfiado, a olhar de lado como as galinhas, diz-lhe o Rogério a querer dar-lhe um abraço, sou o Rogério, lembra?, e o Lelo se não lembrou fez que lembrou, mas não se lembrou, viu-se pelo jeito, e abraçaram-se, não se viam há quarenta anos, é obra. Digo-lhe, Dona Flora, não estava na mesma porque quarenta anos até no aço deixam mossa, mas o Lelo estava quase como novo. Não casou nunca, não tem filhos, não é rico mas não está pobre, doença, não sofre, disse que vive num apartamento com um amigo para partilhar o aluguer, não há nenhum mal nisso, não é? Costuma almoçar e jantar por ali, e fomos almoçar os três, o Lelo levanta-se cedo, almoça cedo, aquela hora jantou e nós almoçámos. Durou até às tantas, desbobinaram tudo, ou quase, que eu acho que por estar presente, coisas houve que ficaram nas entrelinhas, e prometeram voltar a encontrar-se. Já estava tudo pronto para as despedidas, e eu não me contive e perguntei-lhe se tinha notícias da Zelinha, afinal tinham sido bem amigos. Não, respondeu ele, nunca mais soube dela, não.Já no calhambeque, o Rogério, sabe-se lá porquê, virou-se outra vez do avesso. Não percebi porquê, mas nem perguntei, não senhor. Aguenta, disse para comigo, aguenta que ele acabará por dar notícias. E deu. Já estávamos quase a chegar ao sítio onde pernoitámos, quando ele me diz: Você viu como o cara está novo em folha? E eu respondi, melhor que você, Rogério!Pois, Dona Flora, tem andado do avesso desde aí. Nem os Búzios lhe deram a volta. Já viu, Dona Flora, como as pessoas são?

Monday, May 21, 2007

TERRITÓRIO AMERICANO EM BAGHDAD

A Arte da Fuga parece admirar-se com a dimensão da embaixada que os norte-americanos estão a construir em Baghdad. Vindo de quem vem tal admiração poderá não constituir se não uma insinuação sarcástica. De qualquer modo, entendi comentar sem subentendidos.
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A mim não surpreende a dimensão do empenho dos EUA nesta presença em solo do golfo pérsico.

E não me surpreende agora esta notícia, como nunca me surpreendeu a intervenção militar norte-americana no Iraque.

Nunca comprei a justificação da intervenção norte-americana como uma acção de contra-ataque ao terrorismo islâmico na sequência do 9/11, como nunca aceitei que a ocupação tivesse como objectivo a instauração de um regime democrático ou a libertação do povo iraquiano das garras de Sadam Hussein.

Sempre defendi, nomeadamente nas palavras cruzadas que costumo preencher, que os EUA invadem o Iraque por uma razão primordial que decorre de uma estratégia fixada e aceite por todas as administrações norte-americanas antes de George W. Bush ter sido (mal) eleito pela primeira vez: a dependência dos EUA do petróleo que reside na área do golfo pérsico, e a determinação de que nenhuma intervenção estranha pode ser consentida em qualquer parte daquela área que ameace os interesses norte-americanos (doutrina Carter)

A dimensão da Embaixada norte-americana em Baghdad tem exactamente esse significado: os EUA estão prisioneiros da sua presença no golfo pérsico e só sairão de lá quando essa dependência se desvanecer. Até lá poderão ter de recuar, eventualmente, para os porta- aviões ao largo ou para países vizinhos, e na Embaixada até que alguém tenha a ousadia de a violar. Porque uma Embaixada é considerada território do país que representa. Um ataque à embaixada é um ataque ao país. Um ataque, a verificar-se, justificaria imediatamente um salto dos porta aviões para terra (pouco) firme.

VILA FLOR

Um estudo de avaliação das condições de nutrição realizado em Vila Flor (Bragança) junto de 373 jovens que frequentam o ensino secundário concluiu que 35% se encontram sobrealimentados e 7% subalimentados.
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Vila Flor não é o espelho do mundo mas o mundo espelha-se em Vila Flor.

Sunday, May 20, 2007

OS PORTUGUESES - Segundo os algarismos (3)

O pós 25 de Abril foi celebrado e reclamado com diversas palavras de ordem. Uma delas, talvez a que melhor resumia os desejos mais intensos dos portugueses pedia "paz, pão, saúde, habitação!". Era um caderno reivindicativo mínimo num contexto revolucionário à nossa moda.
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33 anos depois, se os algarismos dessem uma fotografia fiel da felicidade, os portugueses deveriam considerar-se dos povos mais felizes do mundo, se a felicidade se medir pela distância que vai entre os desejos e a sua satisfação. Mas continuam cabisbaixos.
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Os números valem o que valem, e as estatísticas pintam-se frequentemente em "tromp d´oeil".
Com alguma atenção, contudo, podem ler-se algumas conclusões pertinentes, se as fontes são fiáveis. No âmbito das Nações Unidas, nasceu há alguns anos o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). O Relatório Anual, para além de análises temáticas que abrangem toda a humanidade, é um repositório de estatísticas, com bastante solidez, que procuram fotografar as condições de vida nos bairros em que vivemos nesta aldeia global em que se transformou o mundo.
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Do Relatório de 2006 (o relatório de 2007 deve ser editado em Setembro) retirei alguns dados que dão uma perspectiva do posicionamento de Portugal no mundo, avaliado pelo "Índice de Desenvolvimento Humano" (HDI, na terminologia inglesa), um indicador resultante de outros que se presumem caracterizar o nível de desenvolvimento relativo económico e social dos povos.
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Da sua análise conclui-se, sem grandes reservas, que o caderno reivindicatico apresentado ao 25 de Abril se encontra, em termos médios, bastante bem satisfeito. Portugal não pode queixar-se, hoje, do seu posicionamento relativo quanto aos pontos reclamados: A guerra não nos perturba, a não ser como espectadores das guerras que os media transmitem quase em directo, os portugueses alimentam-se bem e bebem do melhor, os serviços de saúde garantem-lhes esperança de vida à nascença que, conjugada com o decréscimo observado nas taxas de natalidade, está a tornar-se num dos países com mais idosos do mundo, o número de habitações excede em cerca de 33% o número de famílias. Quanto a automóveis, na Europa, segundo o Eurostat (vd. post anterior sobre este assunto) apenas luxemburgueses e italianos têm mais viaturas que nós.
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Segundo o Relatório PNUD de 1999, os portugueses situavam-se no segundo lugar como consumidores de calorias por dia per capita, em 1996 (3658) cedendo apenas o primeiro lugar para a Dinamarca com 3808 calorias por dia, uma posição que não tinha antecedentes antes do 25 de Abril: em 1970 o consumo diário de calorias era, em Portugal, de 2850, valor que nos colocava em posição bem modesta. Quanto ao consumo de proteínas por dia per capita em Portugal, em 1996, o valor de 112 gramas colocava-nos em segundo lugar, neste caso a seguir à França.
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É pela educação que, segundo os Relatórios do PNUD, Portugal cai nos rankings. Por outro lado, é geralmente reconhecido que é na falta de resposta da Justiça que reside, em grande parte, a nossa incapacidade para ultrapassar muitos problemas da sociedade em que vivemos. Mas a verdade é que nem a educação nem a justiça faziam parte do caderno reivindicativo apresentado ao 25 de Abril. E, sintomaticamente, a educação e a justiça continuam ausentes das reivindicações nos dias que correm: da educação porque poucos querem saber, a maioria quer passar; na justiça porque só os mais fracos se subordinam a ela.
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Portugal ocupa no ranking do Índice de Desenvolvimento do PNUD a 29ª. posição, classificação esta atribuida em função da sua posição relativa quanto a quatro indicadores: esperança de vida à nascença, literacia da população adulta, índice composto da frequência no ensino primário, secundário e médio, produto nacional bruto per capita.
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A esperança de vida em Portugal era, em 2004, de 77,5 anos (todos os dados do relatório de 2006 se reportam ao ano de 2004) , valor que contribuia para um índice de desenvolvimento humano (HDI) de 0,904 a que correspondia a 29ª. posição, como se disse, de um ranking liderado pela Noruega com um valor de 0,965. No mesmo ano, os EUA, que ocupavam o 8º. lugar com um HDI de 0,948, tinham uma esperança de vida igual à dos portugueses (77,5 anos).
No Japão (7º. do ranking), a esperança de vida à nascença apresentava o valor mais elevado de 82,2 anos; na Espanha (19º.) - 79,7 anos; Cuba (50º.) - 77,6.
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Já em termos de literacia da população adulta, Portugal apresentava um valor de 92%, que nos envergonha colectivamente, e que nos compara muito mal, por exemplo, com Cuba -99,8% (50º. do ranking), Grécia- 96%(24º do ranking) , Coreia do Sul - 98% (26º.), Estónia - 99,8% (40º), Lituânia - 99,6% (41º.), Eslováquia - 100% (42º.), Croácia - 98,1% (44º.), Letónia - 99,7% (45º). Cito a Espanha e a Grécia, a primeira por razões de vizinhança geográfica, a segunda por vizinhança no ranking, algumas repúblicas saídas do bloco soviético e Cuba, por permanecer fiel a Fidel. E ainda a Coreia do Sul, um caso emblemático do desenvolvimento no sudeste asiático.
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Por outro lado, se compararmos os indicadores quanto à frequência nos diferentes graus de ensino, Portugal não vai além de 89%, que fica muito aquèm dos 99,8% na Estónia, 99,6% na Lituânia, 100% na Eslovénia, 98% na Croácia, 99,7% na Letónia, 99,8% em Cuba, 98% na Coreia.
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É por demais óbvio que, se a educação não promove, só por si, o desenvolvimento (se assim fosse o bloco comunista não teria implodido) também é verdade que, em condições de liberdade de pensamento e empresa, a educação é a força determinante para o andamento do combóio do progresso. É com as vantagens de um nível de educação muito mais elevado que o nosso que as repúblicas saídas da asfixia colectivista se apresentam na União Europeia com trunfos capazes de nos relegar da cauda da lista a 15 para a cauda da lista a 27.
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É da educação e da justiça que deveríamos primordialmente preocupar-nos em Portugal. Afirmação que, de tão banal, promete continuar a sê-lo.

Saturday, May 19, 2007

O SE DA SINA

A ler No princípio era o espanto , recordo.

1961, Setembro

O F. era ferroviário de segunda a sexta e barbeiro ao fim-de-semana. Fui lá cortar o cabelo num Sábado, véspera do embarque no comboio para Lisboa e, enquanto ele fazia o melhor que sabia, dei-lhe conta que ia emigrar. Prontificou-se a arranjar-me quarto em casa duns primos, gente boa, e ir comigo até lá. Ferroviário viaja de borla no comboio, e a oportunidade de uma ida à capital valia bem a receita de meia dúzia de cortes de cabelo no Domingo. Aceitei de bom grado, e até a Mãe ficou menos desconsolada com a saída do filho para parte incerta.

Cheguei com meia hora de antecedência à estação e aguardei a chegada do meu amigo barbeiro. Partiu o comboio a horas, contra todas as expectativas do ferroviário, que chegou atrasado.

Cheguei ao Rossio pela primeira vez na vida, com mala de cartão com excesso de peso por excesso de preocupações da Mãe. Confiado no F., não tinha plano B. no bolso e, á saída, fiquei especado com um olho a olhar “a fama do brandy Constantino já vem de longe”, em néon a acender e apagar por cima da pastelaria Suiça, e o outro na mala de riscas verdes.

Fiz mentalmente o balanço aos trocos que trazia no bolso e entrei para um táxi, a mala ao lado, não fosse o diabo tecê-las, e mandei seguir para o Chiado, um colega tinha-me dito que morava para aqueles sítios, com um bambúrrio talvez o visse por lá. Não vi, e quando o taxímetro se aproximava ansioso dos meus limites financeiros, dei indicações para voltar ao ponto de partida.

A carregar a mala sem destino, subi a Avenida da Liberdade até à Rua das Pretas. Que faço, que não faço, estava ali por perto uma máquina de pesar pessoas, tinham-me sobrado cinco tostões, meti-os na ranhura, e salta um bilhete com o peso e uma sina:

"Se deixares a tua terra sem pensares bem, voltarás mais pobre e arrependido"

Levei umas horas, sentado num banco da Avenida, com a mala ao lado, a pensar na casualidade da sina.

E foi aquele "se" que me resolveu a questão.
Há “ses” assim, pacholas.

LISBOA ARRUINADA

RPL,
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Leio o seu texto e olho para as fotografias de LC, no Expresso de hoje, e decidi agradecer-vos a sacudidela que o vosso artigo poderá dar nas consciências dos lisboetas, apesar do tema se ter banalizado e não conseguir, muito provavelmente, provocar mais do que um encolher de ombros colectivo.
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Apesar de tudo, é um desvio na corrente principal da discussão dos fulanos, que constituiu o prato forte com que se alimentaram os jornais nestes últimos dias. E é um passo importante para a discussão daquilo que devia ser prioritariamente discutido: as ideias para Lisboa.
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Tenho dedicado algumas das minhas reflexões, uma espécie de palavras cruzadas que vou preenchendo um blog (http://aliastu.blogspot.com), ao sistema de governo municipal, às causas de algumas das suas perversidades, e a Lisboa Abandonada, título que adoptei de um "site" que em tempos existiu na net (na realidade foi dos primeiros sites), que teve algum acolhimento por parte dos media, e nomedamente do "Expresso", mas que, por razões inconfessadas, foi vandalizado.
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Voltando ao tema central que é objecto do vosso artigo, parece-me da maior importância que se denunciem em textos e imagens as situações de ruina e abandono em que se encontram muitas partes da cidade de Lisboa, que se estendem muito para lá dos bairros históricos, e que deveria constituir motivo de uma imensa vergonha se não fosse esta nossa propensão fadista para a resignação. As eleições intercalares para a câmara lisboeta deveriam constituir uma oportunidade para, mais do discutir os fulanos, discutir as ideias que os fulanos têm para a cidade.
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A imprensa, que se queira responsável, e não meramente tablóide, pode e deve colocar à frente dos candidatos as fotografias da Lisboa Abandonada, e perguntar-lhes como pensam, se é que pensam, tornar Lisboa uma cidade limpa, curada dos furúnculos e das feridas expostas .
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Porque esta situação de abandono tem causas. A lei das rendas tem sido, quase unânimemente, considerada o bode expiatório. A lei foi alterada, mas os resultados não são visíveis. Nem era esperável que fossem: há centenas de milhares de prédios ao abandono em todo o país, com particular incidência em Lisboa, que não estão arrendados mas devolutos, há muitos anos. Uma parte, não dispicienda, pertence ao Estado Central ou às autarquias, ainda neste caso com particular destaque para Lisboa.
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De modo que, caros amigos, gostei muito do vosso artigo, mas considero-o um esforço que fica no começo do caminho. Para percorrer o restante perguntem aos candidatos como pensam eles resolver a questão e façam vocês mesmos uma investigação da consistência das suas respostas. Porque "Insanity is doing the same thing over and over again, expecting different results" - Albert Einstein. Muito provavelmente, eles dar-vos-ão as respostas (ineficazes) do costume.

Friday, May 18, 2007

ROTHKO - (2)

Centro Branco (Amarelo, Rosa, Lavanda sobre Rosa), de Mark Rothko, foi vendido ontem no leilão da Primavera da Sotheby´s, em Nova Iorque, por cerca de 73 milhões dólares, que passou a ser valor recorde entre artistas do pós-guerra. O quadro, que pertencia ao magnata David Rockefeller, de 91 anos, foi adquirida por um comprador anónimo. Rockefeller conta oferecer as receitas a obras de caridade. Com ou sem intenção de comprar um lugar no céu, as doações de milionários constituem formas de redistribuição de rendimentos frequentemente obtidos de formas pecaminosas. Não sabemos se o comprador anónimo passou cheque, ordenou transferência ou pagou em notas.
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O recorde absoluto de preços no mercado da arte continua a pertencer a Jackson Pollock com Nº. 5, 1948 que terá sido vendido por 140 milhões de dólares (110 milhões de euros, na altura), ultrapassando "por pouco" os 107 milhões de euros atingidos por "Retrato de Adele Bloch-Bauer I" (1907), de Gustav Klimt, que, por sua vez, havia ultrapassado "Rapaz com Cachimbo" (1904), de Picasso, vendido por 83 milhões de euros. "Dora Maar com Gato" (1941), também de Picasso, 75 milhões de euros, é o terceiro do ranking.
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Relativizando, a riqueza anual produzida em Timor não "vale" mais que cerca de 7 0u 8 quadros de Rothko e menos de 5 de Pollok. O que só é chocante para quem faz contas destas. Os outros chamam-lhe demagogia.

Thursday, May 17, 2007

INTERNET DAY

Há dias, Vital Moreira comentava no Público a proposta, mais uma vez repetida, do PSD para a redução do número de membros do parlamento. O motivo invocado na proposta (excesso actual de deputados relativamente às necessidades dos trabalhos parlamentares) é visto pelos partidos com menor representação parlamentar como uma forma subreptícia de os eliminar e, deste modo, é contestada à direita pelo CDS e à esquerda pelo PCP e BE.
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Vital Moreira, e com ele outros constitucionalistas, além de analistas políticos ou simples comentadores, têm realçado o papel dos pequenos partidos na animação do debate parlamentar e a perda que a redução da sua presença ou eventual desaparecimento representaria para a democracia portuguesa.
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É, no entanto, por demais evidente que se este último argumento é válido o primeiro tem pertinência: a intervenção de muitos deputados no parlamento limita-se a estarem e levantarem-se quando recebem instruções nesse sentido. Há deputados activos que realizam grande parte do seu trabalho na Assembleia da República mas também há deputados passivos que poderiam exercer as suas funções de representação a partir de qualquer ponto do país, e nomedamente do território por onde foram eleitos. As telecomunicações (de que hoje se celebra o dia, e particularmente o dia mundial da Internet) atingiram já níveis de sofisticação que dispensam facilmente a deslocação e a presença de deputados que vão a S. Bento para se levantarem ou carregarem no botão quando é preciso, podendo, para comodidade deles e redução dos encargos da Assembleia da República, realizar esses actos de representação nos locais onde se encontrarem à hora dos debates e das votações.
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Ideia bizarra? Por agora, sim.
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Mais tarde ou mais cedo, deixará de o ser.

Wednesday, May 16, 2007

CASAMENTO À ESQUERDA

Hoje, de manhã, noticiava a rádio que na Assembleia da República se iria discutir uma proposta do Bloco de Esquerda no sentido de tornar o casamento um contrato susceptível de rescisão unilateral.
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Em A Arte da Fuga comentava António Amaral, com o sarcasmo e perspicácia que lhe são congénitos:
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Double standards
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Defender o direito à cessação unilateral dos contratos laborais, mas não defender semelhante direito para o contrato do casamento, porque esta é uma medida que o Bloco de Esquerda defende, não defendendo esta força política a liberdade contratual laboral.
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Os libertários, à esquerda e á direita, têm destes encontros ocasionais. À direita reclamam a não intervenção do Estado, cada qual que se case conforme entenda; à esquerda reclamam que se descasem os contratantes quando a um deles lhe der na real gana.
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Vejam as diferenças.
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Mas é muito pertinente a observação de AA: Se ele (ou ela) diz a ela (ou ele), acabou-se a papa doce, por que bulas não pode dizer o mesmo o patrão (ou o empregado) ao empregado (ou ao patrão), e mandar o contrato às malvas? Por que razão é que um contrato de casamento pode ser mais descartável que um contrato de trabalho?
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Registe-se, para memória futura, que para já a proposta do BE vai ser rejeitada.

Tuesday, May 15, 2007

GOVERNADOR DE QUÊ

A governadora civil de Lisboa foi chamada a marcar a data das eleições intercalares para a Câmara Municipal de Lisboa, marcou-as para o dia 1 de Julho, mas a decisão já foi impugnada junto do Tribunal Constitucional. Não teria sido mais razoável que o legislador tivesse atribuído a marcação deste actos eleitorais ao TC? Sendo o governo civil um órgão dependente do Ministério da Administração Interna, as suas decisões políticas serão sempre suspeitas de parcialidade.
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Mas os governadores civis não têm apenas a incumbência de marcar eleições intercalares para as autarquias. Compete-lhes também a emissão de passaportes. Porquê? Por que é que a emissão de passaportes é da responsabilidade de uma entidade que não tem outras atribuições de registo e notariado, que são do âmbito do Ministério da Justiça?
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A pertinência da existência de governadores civis foi já levantada várias vezes, e Santana Lopes prometeu mesmo acabar com eles. Não acabou. Faltavam-lhe vagas para a clientela.

Monday, May 14, 2007

Rothko - National Gallery - Washington DC




(ao amigo António B., com quem divago, de vez em quando, acerca destas coisas)

O Público da terça-feira passada publicava um artigo de Alexandra Prado Coelho (Temporada de leilões em Nova Iorque) sublinhando que "nunca como agora as leiloeiras deram tantas garantias aos vendedores. O mercado da arte continua imparável e a arte do pós-guerra em ascensão.
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Quando, em 1960, o milionário norte-
americano David Rockefeller comprou o quadro White Center, pintado dez anos antes pelo expressionista abstracto Mark Rothko, pagou por ele cerca de dez mil dólares. Passado quase meio século, o quadro - que esteve pendurado na entrada do escritório de Rockefeller quando ele era presidente do banco Chase Manhattan - é a estrela da temporada ...A Sotheby´s, que o vai leiloar, espera que ele atinja pelo menos 40 milhões de dólares... Obviamente que o senhor Rockefeller não precisa do dinheiro. Então por que é que está a vender? O senhor Rockefeller é um banqueiro que reconhece um bom negócio quando o vê, explicação da Economist ."
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Rothko é um dos pintores abstractos que mais me intriga. Vejo e revejo os seus quadros, tentando descortinar neles a luz que mobiliza os sentidos de tantos admiradores, sem êxito.
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Há cerca de um ano, Eduardo Prado Coelho, publicava no Público um artigo de crítica literária elogiando a originalidade da poesia de Maria Andresen, a propósito do seu "Livro das Passagens", acabado de editar na altura. Recomenda, EPC, que "é preciso fazer como a (Maria Andresen) diz da pintura de Rothko: "Mark Rothko/elevava as cores à ignorância de Deus".
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Perceberam? Suponho que o sr. Rockefeller acabou por desistir, e fazer dinheiro.

IDEOLOGIA LOCAL

Ainda a propósito de ideologias políticas, que geralmente demarcavam os terrenos da esquerda e da direita, com ou sem espaço intermédio, consoante as perspectivas, uma questão elementar se coloca: existem políticas de esquerda ou de direita na gestão local?
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Se olharmos para a unidade administrativa mais elementar do Estado, a junta de freguesia, é difícil caracterizar a prática gestionária dos interesses comuns a este nível num ou noutro lado do espectro político. Dificilmente se conseguirá descortinar uma opção de aplicação dos dinheiros públicos colocados ao dispor das autarquias elementares que permita catalogá-la de direita, de esquerda ou do centro. Gastando as dotações recebidas em pequenas obras de arranjo de passeios e ajardinamentos, de manutenção dos cemitérios ou de actividades culturais ou pseudo-culturais, com o que lhes sobra do pagamento aos elementos da junta e dos empregados nos serviços burocráticos, que em muitos casos comem a maior fatia, as juntas de freguesia terão, quanto muito, um papel de influência política, enquanto membros da assembleia municipal.
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A batalha político-partidária a nível das juntas de freguesia é, essencialmente, uma luta pelo domínio partidário a partir das bases, consumindo-se os recursos em acções que possam comprar votos (o excursionismo, o futebol, por exemplo) ou garantir apoios dos construtores civis que facturam as obras. Qualquer que seja a força política dominante, prossegue geralmente a mesma política agenciadora de votos, adoptando as mesmas receitas vencedoras.
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No plano da gestão autárquica municipal, a questão não é muito diferente daquela que se observa nas juntas de freguesia. Relendo as propostas das "10 personalidades de referência" ouvidas pelo Expresso (vd. "post" anterior: POUCO CLARA) dificilmente se identificará cada uma das personalidades ouvidas com um enquadramento ideológico nítido, e muito menos com a ideia que temos formado acerca das opções políticas de cada uma delas.
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É ainda a maior ou menor intervenção do Estado no contexto económico local que caracteriza, fundamentalmente, uma opção de esquerda (maior intervenção estatal) ou de direita (menor intervenção estatal). Assim sendo, quando um vereador socialista (ainda que dissidente) cessante da Câmara de Lisboa confrontava ontem na "Sic notícias" o seu opositor, vereador cessante do PSD, com o facto da câmara presidida por Carmona não ter reduzido o número de empresas municipais, estando mesmo na forja o aparecimento de mais uma, é óbvio que a acusação do "socialista" ultrapassa pela direita a posição do "social-democrata" que representava a administração Carmona.
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Se uma luta ideológica existe a nível do poder local ela prossegue, segura e únicamente, o domínio pela gestão dos dinheiros colocados à sua disposição das autarquias e dos empréstimos contraídos. Na Câmara Municipal de Lisboa o passivo ultrapassa os mil milhões de euros. Quem os engolui, não sabemos. As autarquias não prestam contas aos eleitores. Verdade seja que os eleitores também não as reclamam. Contentam-se com a discussão dos fulanos.
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E, deste modo, se têm mantido os responsáveis pelos descalabros, anos e anos a fio, nos poleiros.

Sunday, May 13, 2007

POUCO CLARA

Com a queda da Câmara de Lisboa começou a aposta de fulanos. Não se discutem os problemas da cidade mas os cabeças de cartaz.
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O Expresso (Única) de ontem, contudo, insere uma reportagem ambiciosa titulada "Se eu fosse presidente da Câmara," lançando o desafio a 10 personalidades, figuras de referência da sociedade nacional, todas residentes na capital, perguntando-lhes o que fariam se tivessem responsabilidades autárquicas" .
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A primeira "figura de referência da sociedade nacional" chamada a dar conta do recado foi, talvez por ser da casa, Clara Ferreira Alves, jornalista, residente nas Amoreiras.
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O que diz Clara?
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"Um presidente ou uma presidente da Câmara precisa, em primeiro lugar, de escapar à lógica partidária e ter força e peso suficientes para desenhar e impor a sua visão da cidade para além dos interesses dos partidos, sem dúvida os grandes contribuintes para o actual estado de coisas. A CML era rica, e é hoje pobre e falida, que deve milhões aos fornecedores, que não honra os seus contratos e que recorre a "outsourcing" apesar de ter nos seus quadros milhares de funcionários..."
Percebe-se, claramente, que a Clara, se fosse presidente da Câmara, far-se-ia eleger como independente e imporia a sua visão da cidade. E pagava aos credores, o que é de aplaudir sem reservas. Como, a Clara não diz.
"milhares de funcionários que para ali foram ficando por imposição e jogo dos partidos, e que se comportam como células partidárias, pondo o interesse próprio acima do de Lisboa"
A acusação é grave, mas a Clara deve ter embalado e exagerou: muito provavelmente, nem todos os funcionários encaixam no retrato tirado pela Clara.
"Proceder ao saneamento financeiro, elaborar um diagnóstico do caos, quem deve o quê e quanto e a quem e como pagar os passivos, e em que prazo, recorrendo a receitas, implica que o presidente tenha uma equipa extremamente competente e qulificada nas suas áreas, que dispense a contratação de assessores para tudo, acabando com o nepotismo e a corrupção. A CML de Lisboa tem sido uma agência de empregos e empenhos, e está minada de incompetentes e corruptos, dos quadros mais baixos aos mais altos, e toda a gente sabe e sente isso na pele. Incompetentes que boicotam os competentes e que ninguém pode ou consegue remover. A CML precisa de uma equipa limpa e dura que corte a direito. E de uma visão que rresponda às suas necessidades sociais e cosmopolitas, e que sirva a população e não as clientelas."
Torna a Clara às preocupações financeiras (quem diria!) e propõe que recorra o Presidente "a receitas". Quais, não nos diz Clara, nem como. É uma ideia forte mas músculo invisível. A Clara poderia subscrever, por exemplo, a alienação de prédios municipais degradados e abandonados, proposta há bem pouco tempo por Carmona, mas fica-se pelo óbvio redondo: arranjar receitas, ignorando os ingredientes. Resumindo, a Clara corria com os corruptos, que são muitos, e com os assessores, que são todos demais, pagava o que devia e impunha a sua visão. Quanto à visão da Clara para a cidade, ficamos em branco, e sobra-nos a dúvida se ela tem alguma. Se tem, não diz.
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As outras "figuras de referência da sociedade nacional", à mesma questão disseram:
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- aumentava a rede de transportes públicos, com grande destaque para o Metro; criava grandes zonas pedonais, sobretudo nos bairros históricos; promovia a educação dos lisboetas para a cidadania. (Paolo Pinamonti - Ex-director do Teatro Nacional de São Carlos, residente na Graça)
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- fazia renascer o espírito de bairro, uma ideia que tem de partir de cada lisboeta, mas que pode ser patrocinada pela edilidade e supervisionada por alguém como o arquitecto Ribeiro Telles; criaria uma espécie de comité de bairro, em que a comunidade zelasse pelo seu espaço e houvesse locais onde os cidadãos se encontrassem e convivessem. (Fernando Lopes, realizador de cinema, residente em Alvalade)
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- devolvia a Baixa aos lisboetas, revitalizava o comércio, criando uma espécie de centro comercial a céu aberto, tornava possível a vinda de famílias jovens para os bairros centenários, fechava algumas ruas ao trânsito para criar uma espécie de corredor privilegiado de ligação da cidade com o rio, trazia companhias de teatro indpendentes para a Baixa-Chiado. (Jacinto Lucas Pires, escritor, reside no Chiado)
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- passava à prática do Plano Verde de Lisboa, já previsto no PDM de 1994 e prometido em todas as eleições, mas sempre adiado. Um caso persistente de desonestidade autárquica. (Luísa Schmidt, investigadora do Instituto de Ciâncias Sociais, reside na Lapa)
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- lutava por uma cidade mais limpa, mais segura, retirava poderes e funcionários à EMEL, poria imediatamente a funcionar o elevador da Glória, faria uma grande limpesa ao Bairro Alto, proibiria os grafitos e colocaria grandes caixotes de ferro onde os jovens poderiam deixar os despojos das suas loucuras nocturnas. (Simone de Oliveira, cantora e actriz, reside no Príncipe Real)
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- arrumava a casa e fazia um programa de curto e médio prazo para o saneamento financeiro, com excepção da reabilitação da Baixa-Chiado, não promovia grandes obras no estado em que a administração da cidade se encontra. (Manuel Salgado, arquitecto, reside em Alcântara)
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- resolvia o problema de trânsito. (Miguel Beleza, economista, reside no Saldanha e tem um dos carros mais pequenos do mercado: um Smart)
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- procurava encontrar soluções para evitar que fossem urbanizados os únicos vales ainda não totalmente ocupados da cidade: Chelas, Alcântara e vale de Santo António. (Leonor Cheis, arquitecta paisagista, reside na Estefânia)
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- limpava a cidade e procurava garantir a eficácia dos respectivos serviços; as fachadas dos prédios estão profundamente degradadas e há edifícios em ruína, atingindo esta situação níveis insuportáveis nos bairros históricos, sendo não só penoso para os residentes, mas também um péssimo cartaz em termos turísticos; procuraria afirmar Lisboa, nacional e internacionalmente, como cidade cultural, iniciando desde logo uma grande campanha de reabilitação dos inúmeros edifícios à beira-rio que se encontram em situação de abandono e dotava-os de novas funcionalidades; melhoraria as acessibilidades ao Museu Nacional de Arte Antiga. ( Dalila Rodrigues, Directora do Museu Nacional de Arte Antiga, reside na Lapa).
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Tivesse a autora-entrevistadora deste artigo juntado as "10 figuras de referência" pedindo-lhes que desenhassem um programa eleitoral para o governo da cidade de Lisboa, o que teria saído?
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Um camelo ou a visão da Clara?