Não é a primeira vez que V. dá conta de uma dúvida existencial que o apoquenta: Considera-se de esquerda, mas às vezes perde o Norte e desorienta-se na paisagem à volta.
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Não é preocupante. Para quem pensa e age de acordo com o seu pensamento, dificilmente todas as suas convicções se podem encaixar numa moldura de adesão. Caberão lá a maior parte, mas não a totalidade, se o espírito é livre. Comentei, para animar as reflexões que, sobre o assunto, V. prometeu para a próxima semana, que a esquerda e direita medem-se em função do perímetro de Estado defendido: Se a defesa se faz acima dos 50% da riqueza produzida, estamos perante uma proposta de esquerda; se ela se faz para baixo dos 40% entramos no campo da direita. Trata-se, evidentemente, de uma medida redutora, mas que, por ser uma resultante, forçosamente denunciará uma política, ou um conjunto delas, mais ou menos suportada pelo Estado. Nos tempos que correm já não faz sentido supor que a esquerda e direita se distinguem por diferentes ideologias, porque as ideologias só subsistem onde mingua a liberdade. Mas subsiste, e subsistirá sempre, a discussão acerca do papel do Estado nas sociedades livres. Será esta discussão ainda uma querela ideológica? Eu penso que não.
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Quando a queda do regime soviético se tornou irreparável, e os países satélites (entre os quais a República Democrática Alemã) sacudiram os ditadores locais dos poleiros em que se tinham instalado há décadas, artistas de todo o mundo rumaram a Berlim para pintar no muro a alegria da libertação: um acto carregado de simbolismo que sobrevive à queda do muro em registos filmados e fotográficos.
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Ainda que haja excepções para confirmar a regra, regra geral os artistas, e nomeadamente os artistas plásticos, posicionam-se à esquerda do espectro político. A comunhão de tantos artistas na celebração da queda de um regime, que se dizia fundado nos valores da esquerda seria, só por si, testemunho bastante de que não há esquerda sem liberdade, valor que nenhum artista digno desse nome, em circunstância alguma, pode ignorar.
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Não sendo a liberdade um conceito absoluto, a sua ausência não é uma abstracção mas uma situação indelével. Os ditadores podem camuflar a captura da liberdade através de alguns mecanismos de compensação mas, cedo ou tarde, a sufocação provocará a revolta.
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Com a queda do muro, disse-se, acabaram as ideologias. Contrariamente, contudo, ao que muitas vezes se quer fazer crer, as ideologias não terminaram por ter falido o "socialismo real" e ganho hegemonia a "democracia burguesa" num combate que só tinha dois contendores.
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Ideologia é um conceito que resume um conjunto de ideias interdependentes, que em razão dessa interdependência formam um sistema de defesa de determinados princípios, interesses e compromissos institucionais. Uma ideologia é um credo, e um sistema ideológico tem de reger-se por um catecismo ou não se sustenta. Implicitamente, portanto, uma ideologia implica sempre uma abdicação de liberdade individual. Quando Marx falava de "ideologia burguesa" como sistema de ideias que legitima o poder económico da classe dominante, por oposição ao conjunto de ideias que expressa os interesses revolucionários da classe dominada (ideologia proletária ou socialista) confrontava conceitos em planos diferentes: enquanto a "ideologia burguesa" era (e continua a ser) uma legitimação de uma situação existente, a ideologia proletária era, mas já não é, um manifesto de acção futura. Enquanto a "ideologia burguesa" é resultante de interesses individuais não necessariamente concertados, e não é, por esse motivo, uma ideologia, a ideologia proletária propunha-se unir interesses colectivos sob a mesma bandeira, com sacrifício das liberdades individuais. Para a ideologia se impor, impunha-se plantá-la em ditadura do proletariado. À burguesia, está mais que demonstrado, não faz falta uma ideologia, porque a mão invisível trabalha por ela.
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A ideologia proletária faliu sem que sobrevivesse a ideologia burguesa porque esta, simplesmente, nunca existiu. E faliu porque sufucou-se na ausência de liberdade.
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Mas se a ideologia faliu irremediavelmente, não faliram, nem nunca falirão as ideias, à esquerda ou à direita, deslocando-se a discussão acerca da convivência na aldeia global para a forma mais conveniente de nela cabermos todos. À discussão ideológica sucedeu a discussão dos valores sociais e das formas de os eleger e garantir. Os partidos políticos, entidades imprescindíveis em democracia representativa, de agregação social de defesa e concretização desses valores, não são mais determinados por intransigência ideológica ( a menos que tenham parado no tempo) mas pelas circunstâncias que a crescente globalização impõe. Esta é uma tendência à qual até o ainda denominado partido comunista chinês decidiu mitigadamente adoptar.
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O marco mais emblemático da esquerda é, sem dúvida, o Estado Social, tendo a solidariedade como valor referencial. Podem outros aspectos da vida em sociedade serem mais abordados ou defendidos à esquerda ou à direita, mas nenhum é tão fracturante como o da intervenção do Estado no campo social, e nomedamente na saúde, educação, pensões e assistência no desemprego. Valores que, no entanto, estão bem longe da primeira linha de preocupações dos dirigentes chineses.
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O perímetro de intervenção do Estado é, em última análise, a interminável discussão que continuará o confronto entre a esquerda e a direita democráticas. Passe o pleonasmo, porque esquerda e direita só fazem sentido em democracia.
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