Friday, April 23, 2021

O JOGO DA CABRA CEGA

Antiga moradia de Ronaldo no Gerês não será demolida porque o crime prescreveu 

"A IGAMAOT ( Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território) considerou que a construção foi executada à revelia do projecto aprovado, em zona reservada e parcialmente em domínio hídrico e que o jogador e o arquitecto da obra podiam incorrer no crime de violação de regras urbanísticas. Mas o MP ditou o arquivamento do processo porque o crime prescreveu."

 

Primeira regra do jogo -  Toda a acusação de crime contra gente influente será prescrita.
 

Monday, April 19, 2021

DIZ MARCELO

Há vários caminhos possíveis para criminalizar o enriquecimento ilícito.

"O Presidente da República espera que “seja desta” que os partidos cumpram as promessas de fazer reformas na Justiça e incita-os a procurar alternativas às objecções do Tribunal Constitucional."

Quem não avança é conivente.
Provavelmente, corrupto.


 

 

O VALOR DE ECCE HOMO DE CARAVAGGIO

 


" El cuadro que iba a subastar a principios de mes Ansorena fue declarado Bien de Interés Cultural (BIC) este miércoles, otra razón que impide su salida del país. Hace apenas dos semanas la obra, cuyo precio de salida se fijó en 1.500 euros y se atribuía erróneamente “al círculo de Ribera”, podría haber recaudado 120 millones de euros en el mercado internacional, según dos coleccionistas que quisieron adquirirlo. Ahora calculan que en España no superará los 30 millones." - aqui

Sunday, April 18, 2021

DIREITO À DIFAMAÇÃO

Existe o direito à difamação e à invenção de teorias de conspiração?

Existe, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 
Que não pára de nos surpreender com fenómenos espantosos. Este é, apenas, mais um.
 
 

O JURISTA

 

O JURISTA

 

Soube agora que nos vais deixar para a semana …

Também soube isso há instantes; que vou ser rendido esta quarta ou quinta-feira; irei de volta no voo que trará o meu substituto; até lá, penso poder ter tempo para encerrar todos os processos em curso de modo a evitar duplicações de diligências;

Vai um scotsh?

Obrigado, mas não bebo álcool.

Nem uma cerveja?

Também não; posso beber um copo de água.

Água? Não sei se temos água aqui no bar. Vick!, temos água? Não temos água. No bar só são permitidas bebidas alcoólicas. Vick! Dá um salto à messe e traz-nos de lá uma mineral. Das grandes, manda apontar no meu nome. … Também bebo pouco álcool, mas a alma pede-me um malte de vez em quando para ficar afinada. Tal e qual a alma do violoncelo, ou do violino, sem afinação da alma, o nosso instrumento fica frouxo. Quando me sinto mais tenso, um bom scotch descontrai-me a alma. Puro. Nunca estrago um bom malte com água ou gelo… Vens pouco ao bar…

Sim, vim pouco. Aproveitei o tempo disponível para escrever…no bar ninguém se concentra, há sempre muita excitação, muita discussão, muito ruído … 

És escritor, poeta, ouvi dizer; é por isso que trazes sempre essa pasta contigo?

Ensaio uns poemas, umas ficções, … mas não, ainda não editei nada; vou escrevendo, relendo, alterando …. eliminando, … não tenho pressa de editar … é o meu scotch para animar a alma; tomo-o sempre que tenho a secretária limpa de processos pendentes de análise ou informação da minha parte. Na pasta guardo um caderno de apontamentos, de ideias, imagens, coisas onde possa vir a ver interesse. Se não registo, posso esquecer-me ou preocupar-me poder esquecer; algumas notas retirei-as de processos que analisei e de pareceres que dei, são uma espécie de jurisprudência íntima.

Estás em pulgas, hem? Quarta-feira …

Ou quinta …

Quarta ou quinta dá no mesmo, é sempre menos de uma semana; também gostaria de sair daqui nas próximas semanas; duas ou três que fossem, estou farto disto. És casado? Ainda não. Que sorte!  Eu sou casado, tenho duas filhas, a mais velha fará dezoito no mês que vem; não vou estar lá; há quantos anos não estou com as minhas filhas nos dias de aniversário delas? muitos, muitos, demais … e para quê? por que estou eu aqui? sabes dizer-me para quê?

Eu sei porque estou aqui …

… estou aqui, porque ainda não chegou o dia em que vou voltar … digo isto, que parece uma redundância mas não é; até ao dia da saída farei o que fiz durante os quase dois anos que já levo de permanência aqui: inutilidades, todo o trabalho que aqui produzi foi inútil.

Percebo onde queres chegar… Disseram-me que levas o teu impedido contigo?

Não é meu impedido. É escriturário, dactilógrafo, auxilia-me no despacho dos processos.

Sorte dele. Com aquele corpo seria melhor aproveitado em combate. Ainda estou para perceber como se anichou cá dentro.

Já cá estava quando entrei.

Pois já, pois já …ele não é casado?

Se é formalmente casado, não sei. A mim disse-me que tem três ou quatro filhos; aqui um homem tem de ter filhos de uma ou mais mulheres. É possível que os filhos nem sejam filhos dele.

É possível. Vai contigo, à tua responsabilidade?

Vai. Em princípio, continuará a ser meu assistente. Não é caso único. Julgo saber que há precedentes.

Há, há. Ouvi falar de outros casos, mas de menores órfãos da guerra; de homens adultos, não tenho conhecimento.

Não há impedimento. A emigração foi-lhe consentida uma vez que me responsabilizo por ele.

Bem. Tu é que sabes. Como é que caíste aqui?

Terminei a licenciatura em 65, fui incorporado dois meses depois; um ano lá e dois cá, três anos inúteis …

Perguntei porque, falando muito francamente, quando soube que integravas um contingente de reforço, estranhei a vinda de um jurista quando, para além de forças treinadas em acções de combate, esperávamos a vinda de dois médicos; nunca me passou pela cabeça a necessidade da presença de um jurista aqui; … digo isto sem menosprezo pelos homens de leis, uma sociedade sem leis só na selva onde impera a força do mais forte. Quando pedimos reforços de combatentes, as actividades da guerrilha tinham crescido para um patamar em que não seria mais possível contê-la a distâncias defensivas, precisávamos de mais forças militares, precisávamos de médicos, mas de um jurista, para quê?, perguntei ao ajudante de campo do governador. Ordens do nosso governador. Caput! Manda quem pode, obedece quem deve, manda o supremo chefe;

E para quê? Com que objectivo? Considera o governador que não estamos no meio da selva?

Ele pensa, penso eu, que a presença de juristas aqui nega a ideia de que estamos na selva. Temos juristas entre nós, temos leis, logo, não estamos na selva. A presença de juristas civiliza a selva. Há leis, há julgamentos de obediência ao direito, à lei, não prevalece a lei da selva. Deve ser isso que ele pensa.

O governador não saberá que a minha vida aqui não poderia ter sido mais vazia de sentido se não tivesse ausentado o meu pensamento sempre que me livrava dos processos inconsequentes, que me caíram em cima.

Saberá, certamente. A tua presença, a presença de juristas nesta situação, cumpre o objectivo de afirmação que há leis, e isso basta.

Basta ou basta-lhe?

Qual é a diferença? Não sabes, não sei se alguém sabe, à excepção de alguns idiotas que desconhecem a trajectória da história, que supõem que o mundo é imutável, nenhum dos que se defendem  neste círculo cada vez mais apertado em que nos encontramos sitiados sabe porque está ou o que veio fazer aqui, para além de defender a vida dos ataques dos sitiantes; não sabemos, mas obedecemos, e se obedecemos a idiotas somos o quê? somos imbecis, reféns de um desígnio idiota que não denunciamos nem combatemos; sim, sim, considero-me imbecil porque obedeço, sigo na manada e não descortino uma porta de saída deste círculo em que estou metido. 

Não está a exagerar, coronel?

Estou? Talvez esteja, mas diz-me porquê. E não me trates mais por coronel. Aqui dentro temos todos a mesma condição, a mesma patente; somos sitiados, estamos todos sitiados. Sitiados que não estão aqui para morrer pelo seu país mas para obrigar os sitiantes a morrerem pelo país deles.

Nunca um filho-da-puta venceu uma guerra morrendo pelo seu país; venceu obrigando o outro pobre filho-da-puta a morrer pelo país dele.

Conheces o original mas repara na diferença: nós  não estamos aqui para morrer pelo nosso país mas para obrigar os sitiantes a morrerem pelo país deles; não é absurdo? Estamos embrulhados numa guerra absurda porque é a mais absurda das guerras, é uma guerra sem objectivo que se possa atingir; agora, que estás de volta a casa, depois de dois anos no centro deste círculo, sem sair dele, não te deves ter apercebido bem da contínua redução do espaço que dominamos, ou julgamos dominar; ainda bem para ti que estás de saída, o cerco apertou-se muito, continua a apertar-se; depois destes dois anos neste sítio, sair dele nesta altura pode ser uma das últimas oportunidades de sair vivo. Alguma vez foste até lá fora, ao meio deles?

Duas vezes, para ouvir testemunhos por queixas de  ataques a civis; mas foram duas tentativas falhadas porque logo, eu e os três comandos que me acompanharam, nos vimos cercados por dezenas de nativos atropelando-se nas palavras uns dos outros tornando impraticável a recolha de qualquer depoimento consistente; decidi passar a convocar os signatários das denúncias e ouvi-los aqui dentro, no meu espaço, mas a maior parte não apareceu; porquê? disseram-me os que apareceram que os outros tinham medo que os fizéssemos reféns para troca de gente nossa refém dos sitiantes. Depois, foram ganhando confiança, e não tive mãos a medir durante estes dois anos … foram centenas de denúncias de crimes bárbaros, muitos deles repetições de outros que já registara antes, por vezes alguns meses antes … sim, sim, ouvi também os testemunhos dos que seriam putativos autores, cooperantes ou só assistentes nos actos denunciados … sim, alguns dos crimes denunciados pelos nativos foram praticados por outros nativos … de outras tribos, concluí pouco tempo depois;

Tens ideia do número de nativos implicados nos crimes denunciados por outros nativos?

Poucos, relativamente poucos; poucos mas de uma crueldade inacreditável  se esses actos não tivessem sido, de um modo ou outro, confirmada por gente nossa…

Nossa? Não nativa?

Qual a diferença?

Há muitos nativos que combatem do nosso lado; se combatem do nosso lado são gente nossa, não?

Até ao dia em que se passarem para o outro lado …

Para os outros lados. .. Já se estão a passar, alguns já se estão a passar; voluntariamente ou capturados, já se estão passar; esta é uma guerra com vários lados; neste lado, o nosso, estamos sitiados num círculo que se aperta à medida que se reduz o contingente de combatentes nativos. Se o combate fosse entre duas frentes, entre nós, os que não somos nativos, e as tribos nativas, há muito tempo que os não nativos teriam sido obrigados a sair daqui, vivos ou mortos.

É muito óbvio.

Assim como é muito óbvio que a resistência do nosso lado vai partir-se quando as tribos que continuam a combater-se entre si se formarem uma frente comum de assalto ao círculo em que nos encontramos sitiados. Em resumo, e para voltar à questão inicial: é  gente nossa aquela que, independentemente do sítio onde nasceu, se considera gente nossa e decididamente combate do nosso lado. Sem nativos deste lado há muito tempo que, nós, os não nativos, teríamos sido obrigado a sair daqui. Sabes quantos, do nosso lado, denunciaram autores de crimes praticados em combate por gente combatendo do nosso lado?

Não, penso que não, e não devo responder com um número que nem sequer calculei…

… Muitos? poucos? alguns? nenhuma ideia? …

Quando disse denúncias … eu disse denúncias?

Disseste actos denunciados, se percebi bem.

Disse actos denunciados o que não quer dizer que esses actos tenham sido revelados com a intenção de denunciar; não sei se num caso ou noutro não possa ter havido a intenção propositada de denunciar; aparentemente, não, e, na dúvida, sempre interpretei que nunca houve intenção de denunciar mas por enaltecimento e, com alguma frequência, de auto glória. Ficam-me registados na memória, enquanto os anos não os desvanecerem, os  depoimentos feitos em tom de elogio ou orgulho de actos que considerei, e considero criminosos, por aqueles que assistiram, praticaram ou cooperaram activamente na prática desses actos. Na descrição do caso mais horroroso de todos, se há uma graduação possível para o horror, o autor, …

Um nativo.

… sim, um nativo, é fácil adivinhar a quem me refiro,…

É, é. Mas continua, continua; prometo não voltar a interromper-te.

… o autor impressionou-me, não apenas pela naturalidade e a fluência na descrição dos acontecimentos … a propósito, a que nível de escolaridade chegou ele?

Não faço ideia, nunca me coloquei essa dúvida; mas, agora que me perguntas, posso supor que tenha frequentado um colégio de missionários, havia alguns no território, encerraram a maior parte quando se intensificaram os combates; É fluente? pois é; deves ter ficado impressionado porque falaste com ele apenas uma vez; para mim, para nós, os que temos muito mais contactos com ele, parece-nos natural a forma como fala; expressa-se como qualquer um de nós, como qualquer tropa, praça ou oficial, não nativo; nem arrogante nem subserviente.

Sim, sim, relatou-me acções que comandou, com muita naturalidade, nunca vangloriante das suas acções quando o interroguei;

Sabia quais eram os propósitos da reunião contigo; mas gosta de se vangloriar, discretamente, mas gosta.

Já para os que participaram, assistiram ou apenas ouviram falar das suas acções, o homem praticou feitos, no seu entendimento, heróicos, só ao alcance dos predestinados pelos deuses.

A condição humana está condenada a adorar ídolos; na guerra, os comandantes vencedores são ídolos para os homens que comanda;

Ao ouvi-lo relatar, vestido com um ar inocente capaz de convencer qualquer juiz muito batido, uma acção que parece ter sido retumbante, depois de ter ouvido os outros, fiz um esforço que, antes, nunca teria pensado ser capaz conseguir, de não transmitir o mínimo da emoção repulsiva do que estava obrigado a ouvir… Digo isto, ainda a vê-lo falar vestido com o ar mais inocente deste mundo…

… tinham chegado ao por do sol ao sítio que tinha sido indicado por informadores confiáveis, … sabia que o inimigo estava lá … preparava-se para atacar, de madrugada, as nossas tropas no aquartelamento de leste, que se encontrava desfalcado de combatentes e armamento, … aguardava reabastecimentos no dia seguinte … rondaram o aldeamento, tudo sossegado, mas sentiam no ar o cheiro de expectativa na indiferença da gente nada surpreendida com o aparecimento …

Falou mesmo assim? que havia no ar o cheiro da expectativa …

… na indiferença da gente nada surpreendida com o nosso aparecimento, dir-se-ia que até a brisa, que se tinha levantado à tarde, tinha adormecido à espera que estoirasse um tiroteio a qualquer momento …

Não acredito.

Admito que deve ter-se preparado.

Porra! sendo assim, o homem, além do mais, é poeta … com o devido respeito pelos poetas.

Alguns dos seus homens, mais impacientes, insistiam que deviam entrar nas habitações para apressar a saída do inimigo dos seus esconderijos e, deste modo, alterar-lhes os planos que teriam acordado com aqueles que tinham acampado longe dali e com quem tinham concertado o momento de ataque conjunto ao aquartelamento…

Ele não permitiu.

Não permitiu o mínimo indício de tentativa de entrada nos refúgios; o objectivo era defender e não atacar, a presença ostensiva era um aviso de que estavam ali e não iriam permitir que eles atravessassem as linhas de defesa e avançassem, eram essas as indicações que tinha recebido de acordo com o objectivo primordial de captar a adesão das populações para o nosso lado e não de afugentá-las para os lados inimigos … colocou os seus homens a formar o cerco, com ordens para ninguém disparar a menos que houvesse disparos da parte dos refugiados nas habitações do povoado; aguardaram duas horas, o luar iluminava tanto que seria impossível que eles escapassem do cerco sem serem vistos a uma distância que os colocava ao alcance do tiro dos seus homens; eles já cá não estão! começou a correr a ideia de que os terroristas já teriam passado por ali antes deles terem chegado e que poderiam passar toda a noite sem sinais de tentativas de saída. Subitamente, ouvem um tiro vindo de dentro do aldeamento, depois outro, e outro, às tantas havia fogo cerrado a sair das habitações. Filhos da puta! – aqui o guião escorregou-lhe para o chão - os filhos da puta estavam a colocar os pobres dos aldeões como escudo, a desafiar-nos para um massacre! Reforçou as indicações dadas aos seus homens, expressão dele sempre repetida quando se referia aqueles que estavam sob as suas ordens …

É uma expressão normal.

É uma expressão comum que dita com a ênfase com que ele a carrega adquire um sentido de propriedade assumido como se as vidas dos homens que ele comanda lhe pertençam, como um senhor feudal.

E é. Entre as sociedades tribais e as sociedades feudais a diferença não é tão grande como à primeira vista possa parecer. As guerras entre senhores feudais são aqui guerras entre chefes de tribos; a obediência servil aos senhores feudais é de natureza idêntica à subordinação dos povos de cada tribo ao seu chefe. Quando sairmos daqui, não sei quando, gostaria de saber mas não sei, as guerras tribais persistirão; mudarão de nome mas a sua natureza permanecerá durante muitos anos; os necessários até que um desses chefes assuma o poder como grande chefe a quem os outros chefes das tribos prestarão vassalagem e colocarão ao seu dispor os seus homens. O mundo muda mas a história muda pouco, e, em muitos aspectos, vistos com a atenção necessária,  não muda nada. Mas continua, continua, estou com curiosidade de saber se aquilo que ouviste coincide com aquilo que me contaram.

Os seus homens contiveram-se até ao momento em que os outros saltaram  dos esconderijos cobrindo todo o espaço à volta com rajadas intermitentes de metralhadoras, e o tiroteio só terminou quando as munições se esgotaram e na luta corpo a corpo; só não estrangulámos os que fugiram para a mata. Não podiam ter feito outra coisa, concluiu ele. E os civis, os que habitavam no povoado? Creio que morreram uns quantos homens que não se resguardaram como deviam. E as mulheres? E as crianças? Não contámos as baixas, mas devem ter sido mortos alguns, não sei quantos, mas morreram alguns. É muito provável que sim, que também mulheres e crianças tenham sido atingidas. Mas não contámos as vítimas civis; logo que o tiroteio terminou, saltámos para os dois camiões e fomos no encalço dos que tinham fugido. Sem sucesso; eles meteram-se nos caminhos por onde os camiões não passam. Foi este o depoimento do herói do dia. Os outros, os seus homens, contaram histórias diferentes, misturando nos seus relatos factos das diferentes acções em que intervieram sob o comando do seu herói. Neste caso em concreto, contudo, há maior coincidência nos relatos dos participantes. Segundo eles, o chefe, o grande chefe, assumiu o comando dando o peito às balas. Logo que do lado dos refugiados ouviu o primeiro tiro, avançou para a barreira de fogo contrária ao mesmo tempo que dava indicações aos seus homens para lhe garantirem cobertura. Foi atingido na perna esquerda e no ombro direito, passando a disparar com a mão esquerda, coxeando, sem nunca rastejar.

Como nos filmes do farwest. Esses tipos andam a ver maus filmes de cowboys. Numa guerra de guerrilha só um doido, e o homem de quem se fala não é doido, não enfrenta o inimigo dando o peito às balas; na guerrilha o estratagema é a ocultação, a noite, a surpresa, a mobilidade, o terreno minado, as granadas a explodirem quando menos se espera; ele é audaz, uma audácia suportada por grande uma grande argúcia na utilização dos conhecimentos do terreno e dos nativos de cada zona, que lhe permitem ser bem sucedido onde qualquer outro, mesmo com muita coragem, falharia;  é natural que os seus homens se excedam na admiração  da audácia de quem os comanda. Ele não te disse que tinha sido ferido nessa ocasião…

Não fez a mínima referência. Talvez pela fama de coragem ou desapego pela vida, a sua presença em pé depois de atingido terá tido influência decisiva no ânimo dos seus homens e desanimado o inimigo, que fugiu deixando atrás de si camaradas a agonizar.

Em que século é que isso se passa?

Acredito que no meio de algum excesso haja um lastro de verdade; talvez não tenha dado o peito às balas mas avançado para um inimigo escondido com grande coragem.

Pode ser, pode ser, por aí já estará a versão dos acontecimentos mais próxima do sucedido;

No fim, um dos miúdos sobreviventes do povoado, terá pegado numa metralhadora caída, e começado a disparar ao acaso matando dois dos seus homens, teria matado mais se não tivesse sido agarrado pelas costas pelo chefe; mesmo agarrado, e a espernear, o rapaz continuou a disparar para onde estava voltada a pistola metralhadora. Bem agarrado o rapaz, tentámos sossegá-lo sentado no capot de um dos camiões. Mas quem é que conseguia segurar aquela pequena víbora? Conseguiu o chefe, sujeitando-se a levar mais um tiro, não se sabia se sobrara alguma bala depois do tiroteio à toa do rapaz, obrigando-o a bater com cabeça no capot até que ele, finalmente, deixou de espernear.

Matou o rapaz?

Deixou de espernear, responderam-me, encolhendo os ombros, quase todos quando fiz essa pergunta.

Já ouvi a mesma história contada em situações diferentes. Quantos rapazes afinal matou ele batendo com a cabeça deles no capot dos camiões? Outra história também muito contada é a da facada no ventre de uma grávida.

Não há nenhuma verdade nesses relatos?

Haverá, certamente; eu nunca presenciei nenhum; fui apanhado em três emboscadas, tiroteios demorados, matei alguém?, não sei, ao todo, vi cair cinco do nosso lado. E tu?

Recordo o que consta dos processos que fui obrigado a instruir para informar quem tinha incumbência de sentenciar. Incompreensivelmente, para mim pelo menos, em todas as situações de crimes graves que deveriam ser penalizadas nos termos da lei, os autores desses crimes, e muito principalmente o maior criminoso, não foram penalizados, foram condecorados.

Aqui neste recanto é, relativamente, fácil olhar retrospectivamente para os acontecimentos. Por exemplo, o caso da cabeça do miúdo esmagada no capot, tomando como verdadeiros os testemunhos que referiste. Foi um crime ignóbil? Admitamos que sim. Mas não posso deixar de ensaiar ver-me no lugar do homem que praticou esse acto ignóbil, no momento em que, como um relâmpago, a sua mente é atravessada pelo medo de perder a vida em consequência da resistência caótica no estrebuchar do rapaz; esse medo transforma-se em fúria incontrolável; um acto ignóbil praticado em legítima defesa? se o interrogares sobre o móbil do seu acto ele dir-te-á o que já terá perguntado inúmeras vezes a ele mesmo: podia ter sido de outro modo? Ainda pensas que poderia? Como? Sabes que ele e o seu grupo resgataram cinquenta reféns, gente nossa, não nativa? Que argúcia, que meios foram utilizados? Na apreciação dos actos dos combatentes numa guerrilha são os resultados que se sobrepõem à legitimidade dos meios utilizados. É uma avaliação anti ética, pois é. A guerra, e muito principalmente a guerrilha, é ignóbil na perspectiva de quem nunca foi obrigado a estar envolvido nela. Mas  ainda não se descobriu forma de a evitar.

Um dia, nós, os não nativos vão ter de sair daqui…

Já disse isso tantas vezes que me sinto ainda mais velho do que já sou de tanto me repetir. Mas não só os nativos terão de sair se quiserem sair vivos porque os não nativos que combatem ainda ao nosso lado, que nos protegem, e por isso os condecoramos como heróis, serão eliminados como traidores. Mas a guerrilha não acabará com a nossa saída daqui: os homens das tribos vão continuar a matar-se e a praticar actos ignóbeis, a esfaquear mulheres, a esmagar crianças…

Que vim eu cá fazer?

O que disseste: instruir processos e informar  a quem compete decidir… e ninguém decide contra quem lhe protege as costas.

Preciso de beber um copo de água …

Vick traz-nos mais uma mineral e um scotch puro.

 

                                                          

                                                        

                                                          

 

 

                                                                    (Cinco dias depois …)

 

 

Coronel, temos um problema bicudo.

Só um?

Este é criminal. Passional, desta vez, presumo.

Então?

O secretário do jurista foi encontrado esta noite morto à facada aqui nas proximidades.

O nativo que ia sair hoje com o jurista?

Esse mesmo

Já foi identificado o autor?

Se, como tudo parece, se trata de um crime passional, o homem foi morto por quem teria razões para o matar. Mas, facto provado, ainda não temos nenhum autor identificado; só suspeitos;

Já interrogaram alguns suspeitos?

Se os suspeitos estão na zona deles, para lá entrar só com muita troca de tiros; não sei se uma vida pode valer várias vidas de homens mulheres e crianças, mas o nosso coronel manda.

Boa reflexão. Há testemunhas?

Deve haver, mas ainda não encontrámos nenhuma.

Percebo. O jurista já sabe?

O jurista engoliu uma dose razoável de soporíferos; está dormir e não se consegue acordá-lo.

E logo agora que se precisava de um parecer dele …

Para já, não podemos contar com isso.

Tentativa de suicídio?

Não parece que a intenção tenha sido essa. Se fosse esse o caso, teria engolido o frasco todo e o frasco está meio. O problema dele é que são horas de ir apanhar o avião e ninguém consegue que acorde.

Estará em situação de coma?

Quem sabe?

Que diz o médico? Já chamaram o médico?

Não temos médico. O que tínhamos está a embarcar para o avião;

Nem enfermeiros?

Médicos e enfermeiros estão todos fora. Tem havido muitos feridos nestes últimos tempos.

E entre os civis, não se arranja um médico, um enfermeiro?

Difícil. O que há mais são curandeiros.

Esses não. Chegou o substituto do médico que embarca hoje à noite no voo que aterrou esta manhã.

Negativo. Veio um jurista.

Não veio médico para render o que sai hoje?

Não, senhor; só o jurista.

Não se perde tudo. Quem vier tem trabalho a fazer. Transmite imediatamente ordens minhas para impedir o embarque do médico por razões urgentes. Esse médico não sai de cá enquanto não chegar outro…. Vick, um scotch!

 

 

 

 

Thursday, April 15, 2021

NA ALDEIA DA ROUPA SUJA

Depoimento de Pedro Queiroz Pereira liga Salgado a Marcelo - aqui

Ricardo Salgado terá procurado reforçar a relação com Marcelo Rebelo de Sousa através da namorada do atual Presidente da República, segundo o depoimento do já falecido Pedro Queiroz Pereira.

Pedro Queiroz Pereira, antigo dono da Semapa, depôs no processo crime do Banco Espírito Santo (BES) a 31 de janeiro de 2018, meses antes de morrer. E, nessa altura, contou vários episódios que ligam Ricardo Salgado a Marcelo Rebelo de Sousa.

A história é contada na edição desta quinta-feira, 15 de abril, da Sábado. Segundo a revista, Pedro Queiroz Pereira lembra que, após um conflito entre os dois, Ricardo Salgado quis recuperar a relação com Marcelo - e tê-lo-á feito através da namorada do atual Presidente da República, Rita Amaral Cabral.

"O dr. Ricardo Salgado pegou no departamento jurídico do Grupo Espírito Santo e mandou entregar trabalho de cobranças à dra. Rita Amaral Cabral", descreveu Queiroz Pereira, no depoimento citado pela Sábado. "Se for ao escritório da dra. Rita Amaral Cabral, verá que mais de metade, 60%, do trabalho era o BES que lho dava, o que era uma forma de comprar o professor Marcelo Rebelo de Sousa", acrescentou.

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José Sócrates: "É altura de acabarmos com isto, Zé Alberto!!" - aqui

A temperatura subiu quando o entrevistador, José Alberto Carvalho, apertou o ex-primeiro-ministro sobre o dinheiro que recebeu em notas do amigo. Sócrates mantém que é tudo mentira.

Sábado 14 de Abril de 2021 às 22:37

Ao longo do processo da Operação Marquês, o Ministério Público teve sempre um problema: como provar que José Sócrates fora corrompido em milhões de euros. Mas o ex-primeiro-ministro teve sempre um problema do outro lado do espelho: como explicar a origem e razão de ser daquele dinheiro recebido em notas, e com conversa telefónica em código com o amigo e empresário Carlos Santos Silva. Na entrevista hoje à TVI, a temperatura em estúdio subiu quando o entrevistador foi apertando Sócrates com esta questão: o dinheiro. O do amigo com quem tinha "um papel" para seguir a conta corrente de centenas de milhares de euros, o da mãe que era "rica".

"É altura de acabarmos com isto, Zé Alberto!", afirmou Sócrates notoriamente irritado. José Alberto Carvalho tinha acabado de começar a falar sobre a conta no BES de Carlos Santos Silva, mas vinha de descrever, um a um, um mês inteiro de levantamentos dessa conta: "no dia 2 de setembro: 3 mil euros; no dia 10 de setembro: 10 mil euros; no dia 10 de setembro outra vez: mais 5 mil euros; no dia 16 de setembro: 10 mil euros; no dia 17 mil euros: 5 mil euros; no dia 18 mil euros: 5 mil euros; nos dias 23 e 27: 10 mil euros".

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Sócrates começou por dizer que era "mentira" que esses levantamentos fossem para ele, argumentou de seguida que isso era o que "a acusação diz" e não o juiz Ivo Rosa - que validou esses indícios ao pronunciar o ex-primeiro-ministro por seis crimes - e mais à frente argumentou que "nem todos esses levantamentos" eram "para me entregar a mim".

O entrevistador citou depois os 127 levantamentos de quase um milhão de euros feitos por Carlos Santos Silva para entregar a Sócrates, segundo a acusação, sublinhou o facto de ser tudo feito em dinheiro e de haver escutas que mostram conversas em código (com o uso de palavras como "fotocópias", entre outras). O ex-primeiro-ministro afirmou que iria "rever as escutas" - o processo corre há sete anos - e alegou falta de memória sobre o tom das conversas. "Não tenho memória nenhuma que numa conversa com o Carlos eu lhe tenha falado em fotocópias para lhe falar de dinheiro", afirmou. "Não era o padrão da minha conversa com o engenheiro Carlos Santos Silva", juntou. 

As dificuldades em produzir uma narrativa consistente foram notórias e foram irritando José Sócrates, que vinha do triunfo relativo conseguido na passada sexta-feira, quando o juiz Ivo Rosa destruiu a maior parte da acusação do Ministério Público - deixando-o, ainda assim, com uma ida a julgamento por pelo seis crimes e apontando, de forma surpreendente, que terá havido um crime de corrupção. A parte central da entrevista acabou por ser, contudo, aquela em que o entrevistador deu uma oportunidade ao ex-primeiro-ministro de dar uma explicação para todo aquele estranho circuito de notas - o teste não foi passado.

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"Não foi vida de luxo, foi investimento em educação", afirmou a certa altura Sócrates sobre a sua vida em Paris, feita num apartamento de luxo no mais exclusivo bairro da capital francesa. Noutra parte, prometeu que levaria ao entrevistador "um almanaque de 1943 onde vem a reportagem do meu avô", e que notava como ele já era rico. Para provar que o dinheiro na conta do amigo não era dele, Sócrates fez o teste das escutas, das quais desta vez já se lembrava bem: foi por não ter reagido à falência do BES naquelas conversas gravadas, em 2014, que "provou" que o dinheiro na conta do BES do amigo Carlos Santos Silva não era dele. Entre estas explicações de geometria variável, o ex-primeiro-ministro foi recorrendo à vitimização.