Monday, December 31, 2018

ENTRE 2018 E 2019


- Tudo bem?
- Tudo bem menos o que está mal.
- E o que é que está mal?
- Porque me perguntas o que está mal e não me perguntas o que está bem? Preferes saber o que está mal ou o que está bem?
- Prefiro saber o que está bem ...
- Então porque perguntas o que é que está mal?
- Hum! Não sei. Hábitos ... O que é que está bem?
- Não sei ...Tu sabes?
- Hum! Não sei se sei. 
- Mas sabes o que é que está mal?
- Sei, mas leva tempo a dizer. Telefonei para vos desejar Bom Ano, melhor que 2018.
- Bom Ano!!!!







NA CASA DO LOUVA-A-DEUS *


     
         
             ... eh!eh!eh! ... volto a dar conta, daqui deste lugar em que me encontro, do que ouço e vejo e me põe o pelo em pé. Gostaria de vos trazer boas notícias, mas lamento...

O outono ameno já lá vai, chegou o inverno e com ele os dias de neblina, de chuva, de frio, de neve, é tempo dos animais se refugiarem nas luras e os humanos temperarem a agressividade do tempo com gestos de boa vontade, mais comunhão e menos confronto, mais fraternidade e menos ódio, eh! eh! eh!  Boas intenções e muita conversa fiada à mistura, a espécie humana não é a mais hipócrita das espécies porque é a única capaz de o ser. Vive e mata-se adorando e ofendendo deuses, criados à sua imagem e semelhança, implorando-lhes favores, desfavores para outros. Gostaria de imaginar um mundo futuro que removesse o meu desalento e me insuflasse esperança, mas não tenho com quê. Sei que há quem, mesmo nas mais remotas distâncias da esperança, consegue iludir-se e superar-se. Durmo mal, porque dormito muito, e nas intermitências do meu sono sobressaltado assaltam-me pesadelos que só não me destroem de vez  por sobrecarga emotiva porque não sei quem nem como tem tido a gentileza de apagar-mos da memória.

Cá em casa continua a viver-se em regime de prisão domiciliária, somos os mesmos seis nos últimos dois anos e picos, contando comigo e os dois gatos. De vez em quando aparece aí um casal, sem filhos, raramente entra uma criança para convivência com as duas cá da casa. Quem vem regularmente umas quatro vezes por ano é uma velhota que fica uma semana na casa, anda sempre a esquecer-se onde deixou a caixa dos comprimidos,  e depois desaparece até à próxima.
Ultimamente, as garotas, que ficavam sempre encantadas quando alguma visita batia à porta, têm vindo a mostrar-se irrequietas, indisciplinadas e pouco entusiasmadas com estas visitas velhas que não lhes trazem gente das idades delas. A velhota bem tenta manter relacionamento amigável contando-lhes histórias contadas vezes sem conta, elas mantêm-se concentradas por algum tempo mas não tarda saltarem-lhe para as costas, como faziam quando eram mais leves e a velhota menos velhota. Há dias, a brincadeira terminou com a velha a praguejar em surdina quando viu, com elas às costas, caírem e quebrarem-se os óculos no chão.
O dia-a-dia das crianças, para mim monótono e sonolento, preenchido com o contar de histórias e trabalhos manuais, sem actividades que lhes desperte e fortaleça os músculos e os ossos, atormenta-lhes o corpo que pede relaxamento e distensão física que este encarceramento não consente. Falo por mim, esta clausura, que me tolhe os movimentos, está a tornar-me paralítico à medida que os anos passam. Não gemo quando me levanto, como a velha da caixa dos comprimidos, por uma questão de dignidade, mas apostaria que não me doem menos as articulações a mim que a ela. 
Entre mãe e filhas o relacionamento é gomoso, reforçado pela repetição, a despropósito, que o pai é mau, ele é mau, é mau, ele quer que elas frequentem a escola mas a escola é má, quem sabe o que quer aprender são as crianças, a escola é má porque quer ensinar o que as crianças não querem aprender... É verdade, é verdade, concorda e abana a cabeça a velhota dos comprimidos. Ele é mau, o pai há muito que agora é ele, os avós são maus, são, concorda e abana-se a velhota, os tios são maus, os primos são maus... o que são avós? o que são tios? o que são primos? ... O que são?, são maus! São todos maus, concorda e abana-se repetidamente a velhota, que acrescenta, o mundo é mau, é mesmo muito mau. O que é mundo? O mundo, explica a mãe e repete a velhota, o mundo é uma coisa má, mesmo muito má, apagam-se os nomes e os rostos na memória das crianças, submergidos na maldade generalizada. 

À noite, não sei o que se passa lá em cima de noite. No primeiro andar da casa há quatro quartos mas mãe e filhas dormem juntas na cama que antes foi cama do casal. Ouço-as a rirem-se, talvez estejam a fazer cócegas umas às outras, porque o riso  solta-se em crescendo até ao esgotamento que as sossega. Que tara, que desejos, que carências, que aberrações incitam esta mãe a esta colagem que não a despega das filhas por um instante sequer?

Forçado a dormitar de dia, passo as noites meio a dormir meio acordado até o sol nascer e a vontade de ir à rua para a mijinha matinal me acordar de vez e me contorcer o corpo em sofrimento.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Se, por acaso que penso ser muito improvável, o que aqui se diz chegasse ao conhecimento da carcereira seria, calculo eu, condenado a solitária, na cave, onde, aliás, nunca me foi consentido meter as patas, sem luz nem aquecimento, quase certamente sem paparoca, a verdade é muitas vezes inacreditável e perigosa. Mas manda a verdade que aqui se diga que certa noite ouvi entre a velha e a mulher que nos tem encarcerados uma conversa daquelas para acreditar quem quiser: falavam de vidas passadas, as crianças, todas as crianças são, até ao momento do nascimento, um repositório de conhecimento que se apaga quando inspiram o primeiro oxigénio, a sua alma é superior à dos adultos, o tamanho aumenta em cada reencarnação, daí que sejam, as crianças, entenda-se bem, mais capazes de decidirem sobre elas do que os adultos por elas e, daí, ser uma violência obrigá-las a frequentar a escola. Na mesma ocasião ouvi, pasmem!, se ainda não fecharam a boca de espanto, que alguém, mas não entendi quem, teria consultado uma vidente para conhecer quem fora seu antepassado. O resultado compensara o custo, em vida passada o consulente tinha sido não menos que Luís XVI. Esperançada, recorreu a esposa à mesma vidente, sem informar com quem era casada, e saiu-lhe a Maria Antonieta na rifa. Foi um delicioso delírio até ao momento em que, numa altura de confidências, souberam que a tão consultada vidente tinha atribuído a mesma antecedência a um casal amigo.
E a mim, que vida passada me tramou?
Perguntei insistentemente à velhota da caixa dos comprimidos quando a apanhei a jeito, mas, como a outra, ela não ouviu o meu olhar. 

Continuo a passar os dias e as noites sentado ou deitado no capacho, num canto da sala, se me levanto é para três saídas à rua, uma de manhã, outra à noite para alçar a perna, muito breves, tão breves que quando volto para o capacho sinto uma vontade intensa de voltar logo lá fora por não ter despejado quanto devia. É durante a saída, antes de almoço, para um giro nas redondezas que alço a perna à vontade ou encurvo as costas para fazer força no sítio devido. 
Depois dormito, se me levanto não ultrapasso aquela linha imaginária que circunscreve o território, uns quatro metros quadrados, em que posso dar meia volta e voltar ao capacho. Uma linha imaginária que se, por inocente distracção, a toco, desencadeio um berro dela capaz de acordar um morto. A primeira vez, logo no dia em que entrei cá em casa, o impacto do grito saído de um silêncio  estranho, estranho para quem deixara há poucas horas o sol, o mar, a vozearia nas ruas cheias de gente a qualquer hora, atravessou-me a espinha como um raio. E disse-lhe, com calma, não com medo, porque grita tão alto estando eu aqui tão perto? Mas ela não me ouviu, não compreendeu. Temos formas de expressão diferentes, a dela e os da espécie dela pelo som, geralmente em tom baixo, ela, comigo, pelo berro,  só não ouve quem não tiver bom ouvido, a minha, a da nossa espécie, lê-se nos nossos olhos, e ela não repara, nunca reparou no meu olhar. 
Hoje, dez anos depois, reconheço que fui tanso quando não respondi à estridência bruta daquele electrocutante primeiro grito com uma resposta à medida. Talvez ela me tivesse devolvido à procedência e eu estaria agora a regalar-me com o calor do sol e  a maresia do lugar onde fui parido e cresci até ser trazido para esta casa. Talvez tivesse, nesse caso, que fazer pela vida, mordiscar o que aparecesse, dado ou roubado, e não apodrecer neste capacho à espera que a bruta me faça sinal mudo para me aproximar da tigela apenas uma vez por dia. Primeiro come ela e as filhas, depois eu. Nada a reclamar se eu pudesse avançar logo que a tigela é colocada junto da linha invisível, normalmente meia hora depois de terminado o almoço delas. Mas não senhor, a tigela está ali a uns dois metros do meu faro esgalgado, contorço-me no capacho, sigo-lhe ansioso  todos os movimentos, e só após uma longa espera sou autorizado a avançar. Tanta fome, recordo que não me entra pitada na goela há um dia, precipita-me para o tacho e, de vez em quando, o tacho tomba. 
E lá vem o grito assustador pelo crime cometido pela larica, sem atenuantes. Pior que isso é ficar a tigela vazia, o chão sujo, de onde ela não me consente comer, limpa tudo para o lixo, e a fica-me a barriga a dar mais vinte e quatro horas em vazio.
Ponham-se no meu lugar: imaginem-se sentados a uma mesa para almoçar onde todos, naturalmente, começam a comer logo que a comida chegue e o dono da casa diz bom proveito! mas, tu não. A comida está à tua frente, tens tanta ou mais vontade comer que os outros, já não petiscas nada há pelo menos um dia, mas não podes começar a comer enquanto os outros não terminam e não tiveres permissão para comer. Não é a mesma coisa? Por que não? Somos diferentes, pois somos, mas todos somos animais que para viver precisam de comer. Ou não? Qual a diferença no funcionamento dos sistemas básicos entre os humanos e os outros animais?
E não se fica a tortura da espera pela tigela da paparoca. De manhã, quando ela se decide a colocar-me a coleira para a saída da mijinha matinal, já estou torcido e contorcido de tanto aguentar a apertar, um dia destes, a velhice trás destas coisas e eu agora já não sou assim novo, ainda mijo no capacho, e não sei, nesse caso, o que me possa acontecer, talvez lhe dê uma dentada bem ferrada se ela se atrever a ir além do grito histérico, e seja o que Deus quiser.
Durante o passeio antes do almoço assalta-me sempre a ideia de aproveitar a oportunidade de, nos breves momentos que ela me solta a corda, pôr-me ao fresco, dizer-lhe adeus de longe, passe bem que eu vou à minha vida, mas seria uma tentativa frustrada em poucas horas, porque quando aqui cheguei meteram-me debaixo do pelo uma coisa que depois vim a saber se chama chip, uma espécie de bufo que informa a polícia, a fuga é possível mas seria inconsequente, e lá volto eu para o capacho. 

E assim continuo sequestrado nesta sala, sentado ou deitado no capacho quase todo o dia de todos os dias. Um sequestro que me obriga a ver e ouvir o que me revolta sobretudo nesta época do ano quando, durante a curta saída diária vejo os sons, as luzes, o encanto estampado no rosto das pessoas pela celebração em família do milagre do nascimento, e me assaltam mais intensamente saudades dos meus irmãos, que será feito deles a estas horas, estarão também condenados a uma vida vegetativa, a servir de bibelots vivos em regime de sequestro? Para que sirvo eu, aqui, condenado em prisão perpétua a envelhecer neste capacho, neste canto da sala, a ver a entrar e sair os dois gatos pela gateira, também eles condenados a clausura, mas menos sofrida, perpétua mas menos sofrida, porque têm licença de saída para as traseiras e a vaguear por toda a casa,  e ser a clausura doméstica mais conforme à sua natureza independente mas aconchegada? Em tempos idos, os gatos caçavam ratos, agora a caça ao rato pode matar o gato que se regale a comer um rato semi morto por envenenamento, já não se passeia pelos telhados a miar por amor, brinca com o que calha quando é juvenil, come o que lhe põem na taça, e dorme a sono desprendido quando é adulto e velho, quer dizer, também não presta para nada.
De frio ou calor em casa, não me queixo. Não sei o que pensam os gatos, a arrastar a barriga da velhice ou mais a dormir que acordados no poleiro, já tenho tentado entendê-los pelos olhares,  cada vez mais embaciados, inexpressivos, quem sabe se já quase cegos, e não lhes descortino senão tédio cristalizado pelo conforto, pela papinha e uma inutilidade sem limites que só lhes exige submissão em troca. Bibelots vivos, ou meio vivos, como eu, que gozo, que prazer, que interesse, desfrutam os carcereiros da posse destes prisioneiros castrados sem crimes cometidos?
Se vissem o que eu vejo, manteriam os gatos aquele ar de múmia se sentissem o que eu sinto? Somos diferentes, não é por eles estarem velhos, meios cegos e surdos, que estes gatos sentados no poleiro não mexem um pelo, insensíveis ao que se passa na sala à frente dos seus bigodes. Não a mim, contorço-me no capacho, revolvem-se-me os interiores, apertam-se-me as meninges, por ver o estendal de perversidade que testemunho sem poder depor.
Quando, durante algum tempo acompanhei o Urs e a Cherry, o Urs parava a conversar com quem se cruzava nos nossos  passeios matinais. Com um discutia política internacional, com outro economia doméstica, com outro o mérito da homeopatia, com outro as potencialidades da parapsicologia, com outro curiosidades e aberrações da natureza, neste caso, do mundo animal.
Como a Cherry não era o meu tipo nem eu o dela, não havia conversas entre nós e eu ouvia o que dizia o Urs.

Foi por ele que fiquei a saber que há bichos fêmeas que matam e comem o macho depois que, truca-truca, os dois fizeram filhos, um tema que desencadeou uma discussão longa acerca da culpa e do livre-arbítrio, se sabem de que se trata, ainda bem porque a mim escapam-me.
Para o Urs o canibalismo sexual de alguns bichos fêmeas não é  uma aberração da natureza mas uma consequência da evolução das suas espécies ao longo de muitos milhões de anos. É assim e não há nada que demova a fêmea canibal a deixar de ser.
E o bicho homem, o maior predador de todas as espécies, e, sobretudo, da sua, que culpa tem dos actos que pratica se o caminho do livre arbítrio o conduz para a prática de tantas atrocidades? perguntou-lhe o outro.
O livre arbítrio é uma armadilha em que cada um pode cair consoante a fórmula dinâmica gerada no instante da concepção e das circunstâncias que defronta uma vez lançado no lago amniótico e depois no mar exterior. O homem, só em parte é um ser racional porque nunca se livra de alguns instintos primitivos comuns a todos os bichos. A alienação parental, por exemplo ...
... A quê?, perguntou o outro, um sujeito idoso, meio surdo, ao mesmo tempo que ajustava sintonia das orelhas e eu espevitava as minhas.
Alienação parental é o aprisionamento dos filhos de um casal por um dos seus progenitores, quase sempre a mãe, impossibilitando o pai de conviver com os filhos de ambos.
É possível? É legal?
É ilegal mas a justiça é lenta e a sequestradora aproveita a morosidade para fazer esquecer aos filhos que o pai existe e sofre com a perversidade montada pela mãe. É uma fórmula de canibalismo sexual feminino, que difere da do escorpião ou do louva-a-deus porque a deglutição da fêmea humana canibal é muito mais prolongada que a de outras fêmeas canibais. Se a espécie humana evoluiu para formas de comportamento diferentes das outras espécies foi porque, no ramo da árvore de evolução das espécies  subiu a patamares superiores de minimização de funcionamento dos seus instintos mais primitivos.
Percebo o que dizes, Urs, mas considero exagerada a comparação ...
E é, aparentemente, é, mas porquê? Porque a humanidade evoluiu sociologicamente e a fêmea canibal humana não mata o pai dos filhos porque o homicídio é crime pesadamente penalizado,  mas, ao recusar a convivência dos filhos com o pai, pretende matá-lo pela angústia da ausência e esquecimento dos filhos. As acções são diferentes mas os instintos que as comandam são os mesmos. Curioso é que o comportamento da fêmea canibal humana imita bem o do louva-a-deus que, em permanente oração, parece incapaz de matar uma mosca mas mata o parceiro sexual após copular com ele.
Queres dizer que poderíamos confirmar a validade da tua comparação se o homicídio e o canibalismo não fossem punidos? Que, nesse caso, a fêmea humana mataria e comeria o macho?
Que te parece?
Hum! ... Não sei. De entre um incontável número de espécies de seres vivos apenas um reduzidíssimo número mata e come o parceiro sexual...
... mas também apenas um reduzidíssimo de humanos, homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, rejeita o parceiro sexual e rapta os filhos de ambos. 
A rejeição do parceiro não é condenável...
Não, é óbvio que não, aliás,  a ninguém pode ser imposto o martírio de viver com quem deixou de querer continuar a viver. Mas o rapto dos filhos é um crime, salvo motivo reconhecidamente grave, que só os meandros da justiça consentem que subsista traumatizando profundamente o pai, ou a mãe, e os filhos envolvidos no sequestro. É um crime motivado por instintos perversos do sequestrador. 
Por quê?
O perverso alimenta-se da dor provocada às suas vítimas.
Incluindo os filhos? Não é possível.
Pois não. O perverso inverte os efeitos perniciosos da perversão, neste caso sobre os filhos, invocando benefícios dos meios que lhe justificam os fins. A felicidade do perverso está no gozo da infelicidade das suas vítimas.

E esta conversa ficou por ali.

Recordo-me também que um dia, não sei a que propósito, o Urs demorou um tempão a convencer com quem conversava que os cães têm capacidades de telepatia que lhes permitem entender à distância o pensamento do seu acompanhante. Talvez o Urs tenha razão, mas nunca me pareceu que houvesse entre ele e a Cherry algum canal de comunicação telepática, a Cherry era de temperamento desobediente. Quando agora me recordo dessa revelação do Urs, fixo, por períodos longos, o meu olhar nos gatos tentando estabelecer com a mente deles uma comunicação de pensamento mas, ou os emissores estão apagados ou as linhas de comunicação não se ligam, não recebo qualquer sinal daquelas cabeças duras.
Curiosamente, leio com estranha precisão o que passa pela cabeça da nossa carcereira. Estranha precisão porque, como tenho dito e redito, um velho repete-se muito, não existe entre mim e aquela mulher, agora ali a três ou quatro metros à minha frente, a mínima vibração de empatia. E pergunto-me se leio por telepatia ou por inevitável conhecimento da extrema previsibilidade comportamental dela. Aliás, esta foi a diferença que separou a opinião do Urs, que andava a ler tudo sobre telepatia, da do amigo, que disse não haver evidências científicas de transmissão de pensamentos sem utilização dos cinco sentidos, reconhecendo, no entanto, sem dificuldade que a acuidade de cada um deles varia muito de espécie para espécie.
 A mim, cá em casa, cheira-me sempre a esturro,  mas não é pelo faro que chego lá ... 
E o que é que vai na mente desta carcereira na véspera deste Natal?
Nada de novo.
Em tempo oportuno comprou o quadro do advento, um abeto, velas finas de cera branca, que vai acender esta noite de véspera de Natal, depois senta-se com as filhas à volta da árvore, cantam as canções da época, de louvor ao Senhor, a mim vêm-me as lágrimas a ver tanta solidão quando o momento deveria ser de comunhão de alegria pela celebração do milagre do nascimento. Os gatos dormitam, como sempre, não há alegrias nem tristezas alheias que os comovam. 
Não estará pai, nem os avós, nem os tios, nem os primos das filhas da carcereira. Só elas três.

Há dias passou por aqui a velhota, visita habitual da casa duas ou três vezes por ano, que se esqueceu cá, aqui debaixo do sofá a caixa dos comprimidos, a não mais que um metro da borda do capacho. Telefonou no dia seguinte a perguntar se, por acaso, não tinha sido encontrada a sua caixa dos comprimidos. Estava preocupada, não por causa dos comprimidos, já tinha comprado outros, mas porque poderiam ser encontrados pelas crianças, receava que elas pudessem, por curiosidade, provar-lhes o gosto. Disparate! As miúdas não eram bebés, sabiam bastante bem o que era e o que não era bom para elas, melhor que os adultos. 
É verdade, é verdade, respondeu a velha do outro lado, e ninguém mais pensou na caixa dos comprimidos. Ali mesmo, ao meu alcance, reparei eu uns dias depois.
Hoje, depois dos cânticos do trio ao mesmo tempo que se extinguiam as velas, e a casa ficar às escuras, estendi a mão direita e puxei a caixa dos comprimidos para o capacho. Ao puxar a caixa, não sei que jeito lhe dei, saltaram os comprimidos. Cheirei-os, gostei do cheiro, provei um ou dois, não eram desagradáveis, para evitar problemas devolvi a caixa à procedência e os comprimidos à solta. 

Horas depois, não sei quantas nem como estava a muitas milhas dali, entre familiares e amigos que não via há tanto tempo. Estavam os meus pais, os meus sobrinhos, os meus tios, estavam os meus amigos, além de outros que eu não conhecia. Estavam também os meus irmãos vendidos e embarcados há mais de dez anos. Não os via desde o dia em que nos encontrámos numa reunião de convívio de indivíduos da nossa espécie. Todos me gabaram o pelo sedoso e a graciosidade máscula das minhas orelhas. Corremos atrás uns dos outros, nunca corri tanto em toda a minha vida, desforrei-me de anos de atrofia e tédio sem que os músculos, os ossos ou o coração reclamassem. Foram horas e horas a encher o papo de brincadeira, e ninguém estava exausto. Só não foi uma paródia infindável porque me ocorreu perguntar aos meus irmãos imigrantes como lhes corria a vida. Nada mal, depreendi, estavam em casa de gente cordata, que os estimavam, eram, se assim se pode exagerar, tratados como fazendo parte das famílias. 
E a ti, perguntou-me um deles, como te tratam?
Para não fazer figura de pouca sorte do grupo, engoli em seco as minhas angústias, os dias e as noites passadas no capacho e  o espaço limitado pela linha invisível que não me permite ir além de dois metros fora dele, a tortura da espera das horas da mijinha e da tigela à frente de tanta fome sem pode comer, dos berros que me arrepiam o sistema nervoso, do chip que não me permite evadir-me do cárcere, daquilo que vejo e me tortura sem poder denunciar.
Hum! Acabou-se a paródia, está a nascer o sol ... 
E, oh! diabos a levem, mijei no capacho... E agora?
Se ela me berra, leva uma dentada! Algum dia teria que ser. E talvez me entregue no canil... Mal por mal prefiro o canil.

E, já que tenho que esperar que desçam ao rés-do-chão, vou apanhar e esconder os comprimidos que sobraram.
Logo à noite, talvez haja mais farra.

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* Sequência de COR DE ROSA SHOCKING

NATAL 2018


Sintra, 17 de dezembro de 2018

Querida R.M.,
Querida D.F.,

O Natal é já de hoje a uma semana.
Lamentavelmente, há mais de dois anos que continuamos sem poder ver-vos e, pela mesma incompreensível razão, não vamos poder estar convosco durante este Natal, que, para toda a gente de boa vontade, é a festa da família, aquela que reúne os pais, os filhos, os netos, os tios, os primos.

Queridas netas: também vocês, para além da vossa mãe, têm um pai que vos ama e suporta uma tristeza imensa por não vos ver, avós que muito vos adoram, tios que muito gostariam de vos abraçar, primos que adorariam brincar com vocês. Mas, mais uma vez, o vosso Natal não será uma festa de família e o nosso Natal estará profundamente magoado pela vossa ausência.

Não vamos alongar mais esta mensagem que, muito provavelmente, não vos será entregue e muito menos lida mas permanecerá viva nas nossas memórias, arquivada nas nossas lembranças e nos nossos registos. Um dia, temos muita esperança, vocês saberão onde poderão lê-la.
Enviamos umas pequenas recordações, de valor simbólico, como costumamos fazer todos os anos. E continuaremos enquanto vivermos, magoados mas esperançosos num futuro menos carregado de saudades de vos ver.

Muitos beijinhos
Avó I.
Avô R.

Saturday, December 22, 2018

PARA UMA ANTOLOGIA DA PULHICE JURÍDICA EM PORTUGAL



Quando, um dia, alguém editar uma antologia da pulhice jurídica em Portugal vai, seguramente, incluir um texto de opinião do Prof. Freitas do Amaral,  BES e GES – Um só responsável? Novos ataques a Ricardo Salgado, publicado aqui no dia 19 deste mês.

A anteceder a leitura daquela peça de antologia, e para orientação no contexto, sugere-se que se preste atenção ao artigo de João Miguel Tavares, Freitas do Amaral loves Ricardo Salgado, publicado aqui

Wednesday, December 12, 2018

Saturday, December 08, 2018

RETROVISOR DOS PRÉDIOS DEGRADADOS








Câmaras desprezam arma para combater prédios devolutos (vd. aqui)
São poucas as câmaras municipais que agravam o IMI nos prédios devolutos. Orçamento do Estado para 2019 prevê penalização adicional. 


O recurso ao agravamento do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) como instrumento para a promoção da reabilitação urbana e combate aos imóveis degradados e devolutos não é nova e aparece na proposta de Orçamento de Estado pela quarta vez consecutiva. A novidade na proposta para 2019 é que o Governo prevê uma espécie de agravamento do agravamento: se até aqui as autarquias poderiam cobrar o triplo das taxas de IMI (que variam entre 0,3% e 0,45%, dependendo do município) nos prédios devolutos, em 2019, e de acordo com a proposta do Governo, esse agravamento pode chegar até ao sêxtuplo.
Falta ainda regulamentar a forma como estes mecanismos vão ser aplicados, uma vez que o que foi votado na Assembleia foi a autorização legislativa que dá ao Governo carta-branca para avançar nesta questão. Mas, de acordo com o que o Governo já deixou transparecer no relatório que acompanha o Orçamento de Estado, a intenção é acrescentar às áreas inscritas como Áreas de Reconversão urbanística previamente definidas pelas câmaras municipais a possibilidade de definir um novo conceito de “zona de pressão urbanística”.
De acordo com informação recolhida pelo PÚBLICO junto do Ministério das Finanças, no ano de 2015 apenas 18 dos 308 municípios existentes usaram esta ferramenta. Nos anos seguintes o número não se alterou substancialmente: em 2016 foram 20 câmaras e no ano seguinte foram 21. Os dados do ano de 2018 ainda não estão fechados, mas, pelas indicações recebidas em Abril, altura em que surgem as primeiras facturas do IMI, o número de municípios subiu para 54 (17,5% do total). Continua, ainda assim, longe de ser uma ferramenta de utilização generalizada.
Lisboa, Faro, Coimbra, Leiria, Lagos e Setúbal, Palmela e Tondela são alguns dos exemplos de municípios que sempre accionaram este recurso.
Os indícios de desocupação dos imóveis baseiam-se na inexistência de contratos em vigor com empresas de telecomunicações e de fornecimento de água, gás e electricidade (ou na inexistência de facturação relativa a esses consumos). A taxa agravada já poderia ser aplicada em prédios inseridos em áreas de reconversão urbanística que estivessem devolutos há mais de um ano. No caso dos imóveis em áreas de pressão urbanística, a penalização tributária pode acontecer nos casos em que os prédios estão devolutos há mais de dois anos.
Os indicadores objectivos que vão definir a área de pressão urbanística ainda estão por determinar, mas devem ter em consideração os preços do mercado habitacional e os rendimentos das famílias ou as carências habitacionais. A ideia defendida pelo Governo é que os municípios possam começar por agravar a taxa de IMI em seis vezes e fazer um aumento adicional de 10% em cada ano subsequente. O limite máximo autorizado é cobrar 12 vezes a taxa de IMI.
Sendo as receitas das autarquias, de modo a estas financiarem as suas políticas municipais de habitação, a verdade é que, até agora, elas têm sido usadas com alguma parcimónia. E nem quando as empresas de fornecimento de água e electricidade passaram a estar obrigadas a facultar dados de consumo aos municípios, a partir de 2016, se notou uma adesão maior a este instrumento que acaba por ser uma fonte de receita do município.
Para fazerem a cobrança, estes municípios só têm de identificar os imóveis e notificar a Autoridade Tributária de que se trata de um prédio devoluto. As Finanças limitam-se a receber a comunicação dos edifícios e têm-se recusado a participar na qualificação dos imóveis como devolutos e a fazer qualquer tipo de verificação.
É esta postura, por exemplo, que tem impedido a Câmara do Porto de avançar com a penalização dos imóveis degradados, optando por não o fazer pelo menos até ao ano de 2017.
Cinco mil proprietários
O último levantamento feito aos prédios devolutos em Portugal apontava para 450 mil imóveis, como identificou a Confederação da Construção e do Imobiliário, a associação do sector em Portugal.
O número de prédios identificados não corresponde ao número de proprietários que foram taxados a triplicar.
No ano de 2017 apenas 5132 proprietários foram notificados pelas Finanças para pagar um IMI agravado nos prédios que estavam devolutos. E, de acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério das Finanças ao PÚBLICO, este número de proprietários tinha na sua posse um total de 10.125 prédios.
Foi um número de imóveis ainda mais baixo do que aqueles que foram tributados de forma agravada no ano de 2016 e de 2015: respectivamente, 12.075 e 11.789. Em 2016 foram penalizados 6237 proprietários e em 2015 foram penalizados 5960 proprietários.O número de proprietários não corresponde ao número de prédios uma vez que o mesmo sujeito passivo pode ser proprietário de mais do que um prédio devoluto ou em ruínas. Por outro lado, um prédio em ruínas pode ter vários comproprietários e havendo compropriedade apenas é contabilizado um prédio, esclareceu as Finanças.

Sunday, November 11, 2018

A PARADA*




Nas semanas seguintes ao reaparecimento do quartel Boavida os jornais, os canais de televisão, as estações de rádio, as redes sociais, não largaram o tema enquanto não surgiram mais ondas de escândalos públicos, grandes desastres, locais ou remotos. Não no círculo social da coronela, onde o caso do quartel continuou a dominar as indignações sobre o clima de suspeita que se tinha derramado sobre todo o pilar de sustentação da soberania, as forças armadas. Havia um consenso unânime de que se impunha tomar medidas que devolvessem à imagem das forças armadas o prestígio maculado pelo caso quartel. Mas quais? A ninguém ocorria uma ideia forte, inabalável, até ao dia em que a coronela viu desfilar na televisão as tropas de uma potência nuclear asiática, entre os mísseis, os lança mísseis, os tanques, e muita metralha que nunca vira na vida, com um aprumo cadenciado a passo enérgico de ganso. E, no dia seguinte, antes que a discussão divergisse para propostas polémicas, saltou para cima da mesa a ideia que não a deixara dormir de noite.
Se queremos transmitir ao país uma impressão forte proponho que as forças armadas desfilem em parada na avenida mais emblemática do país.
Uma parada? E temos material, armamento, e gente para uma parada? A tropa está nas lonas, o que é que podemos desfilar senão pilecas? 
Metemos as polícias ...
As polícias são forças armadas?
Algumas estão mais bem armadas que algumas tropas...
E os bombeiros?
Os bombeiros estão armados?
São meios de combate, sabem melhor que ninguém o que é um teatro de operações ...
Parece-me bem que se incluam os bombeiros. Têm viaturas que fazem um vistaço.
E as bandas? Há muitas bandas, no exército, na marinha, nos aviadores, ...
Nas polícias ... os bombeiros não sei se têm ...
Devem ter. Nenhum quartel dispensa uma banda...

Foi aprovada a proposta e assumido o compromisso de todas garantirem o sucesso da ideia junto dos respectivos consortes e destes junto dos seus pares nas forças armadas e actividades correlativas. E que o desfile se realizasse também como homenagem daqueles que tombaram e dos que escaparam há cem anos na primeira grande guerra.

Se a coronela quando chegava a casa ao fim da tarde baixava dez centímetros  de altura, descalçando sapatos de salto alto que não dispensava fora de casa,  é porque entrava em modo sossegado.  Geralmente, o coronel já se encontrava em casa a dormitar no sofá em frente do televisor,  já cá estou, o coronel nem dava por ela. Se mantinha a altura exterior, era certo e sabido que a conversa da coronela com as amigas  criara esturro, e agora o coronel teria sermão e missa cantada à volta, compassada com o toque, toque, bem martelado dos saltos altos no chão da sala.

A PIC, Polícia de Investigação Criminal tinha sido a última a saber que o quartel Boavida reaparecera no mesmo  sítio de onde  desaparecera quatro semanas antes.  Uma pouca-vergonha, um enxovalho  para polícias, magistrados e  juízes, mas os militares é que continuavam  no ponto de mira da generalidade das notícias e comentários  que continuavam a infectar a opinião pública,  submergindo todos os escândalos que desde há anos se vinham acumulando e arrastando  entre sentenças e recursos intermináveis, e se mediam em milhares, muitos milhares de milhões encaminhados para corruptores, corruptos e coniventes.
Já se conhecia quem  devolvera o quartel à  procedência,  ninguém sabia, no entanto,  porquê, nem como, nem por quem, havia sido roubado.  Das suspeitas  que impendiam sobre o coronel, comandante e primeiro responsável  pela defesa dos homens e das estruturas do quartel, refutava a coronela a insinuação de acusação  que lia no mutismo das suas amigas,  alegando que o marido não dormira no quartel na noite do desaparecimento porque tinha família, dormira com ela  no apartamento que tinham comprado na cidade,  aliás, nenhum comandante dorme  nos quartéis, salvo em tempo de guerra, e por agora, para o bem de todos, felizmente reinava a paz.
Assim resumia a coronela a sua indignação  nas reuniões com as suas amigas,  casadas com oficiais superiores do quartel Boavida, corporativamente solidárias com a coronela, mas esperançadas que o Boavida tivesse perdido, irremediavelmente, as suas ambições de atingir o generalato, aumentando as probabilidades de abertura de vagas no comando do quartel, e no encadeamento das promoções até o topo da hierarquia  da instituição militar. E ela perderia a oportunidade de ser promovida pela inveja de amigos e conhecidos a generala.
Boavida!, disse a coronela do alto dos seus sapatos altos depois de duas voltas ao sofá onde o coronel dormia de olhos pregados no televisor, sem pestanejar quando a marcha da coronela passava à sua frente. 
Boavida! Temos que tomar medidas!, repetiu a coronela e uma palmada nas costas para acordar o coronel. Estremunhado, o coronel disse han?!, ao mesmo tempo que se voltava em posição de guarda para a eventualidade de evitar uma segunda palmada.
Temos quê?
Tomar medidas!, repetiu a coronela, parou a marcha e sentou-se ao lado do Boavida que se encostou a um canto do sofá para lhe dispensar o outro.
Olha Boavida, se não antecipas a tua defesa receio que não tardará que te embrulhem no rol dos culpados pelo duplo caso do desaparecimento e aparecimento do quartel e ...
E....
... E era uma vez um coronel Boavida, .... a tua carreira acaba, na melhor das hipóteses com passagem compulsiva à reserva.
Sonhaste isso?
Não, mas reflecti muito sobre o que se está passar.
E o que é que se está a passar?
Não lês os jornais? Não ouves as notícias na rádio e na televisão? Em que mundo é que vives, Boavida? Não sabes que o ministro se demitiu, depois de ter negado publicamente que não sabia da manobra do reaparecimento, e que o chefe maior do exército foi obrigado a seguir pelo mesmo caminho? Que não é credível que o chefe do governo não tivesse sido informado pelo ministro e o chefe do governo não tenha informado o chefe supremo?
Nem precisava, o chefe supremo sempre foi capaz, e continua, de ser o primeiro a saber  graças ao seu radar de larguíssimo alcance. Tenho a consciência tranquila, e tu sabes bem que tenho razões mais que suficientes para não ser acusado seja do que for. O quartel desapareceu e reapareceu à noite. Onde passo eu as noites? Com quem durmo?
Não te iludas, Boavida, dormindo contigo não faz de mim uma testemunha fiável nem nada garante que os culpados, se houver culpados, estiveram no quartel de noite, há grandes golpes que não são executados por quem os engendra. Há muita gente envolvida à procura de um scapegot (a coronela leccionava inglês e bode expiatório nunca lhe soara bem), e o sentinela preso não passa de um contrapeso para um escândalo com uma dimensão que é uma enormidade. 
Mas tens alguma pista, algum indício de quem cometeu o crime? Os do governo, que se dizem laicos, garantem que os factos são inexplicáveis e, portanto, milagres ... Assim sendo, como posso eu, coronel de infantaria, ser responsabilizado por algo inexplicável?
Acreditas em milagres, Boavida?
O governo acredita.
Deixou de acreditar, e demitiu o ministro e o chefe maior do exército. 
A mim, não me demite.
Mas afasta-te com uma passagem à reserva.
E porquê? Onde é que ouviste esse boato? Aposto que é coisa congeminada pelas tuas amigas, ou que se fazem passar por isso. 
Recordas-te do que disseste na comissão de inquérito?
Muito bem. Disse que não sabia nada acerca da forma como tinha sido retirado o quartel durante a noite, e que também desconhecia em absoluto como havia sido reposto, também durante a noite. Aliás, até prova em contrário, trata-se de factos inexplicáveis e que, portanto, continuarão inexplicados..
Isso é o que tu pensas, Boavida. A PIC, que foi gravemente ferida na sua reputação, tudo fará para descobrir o que se passou, como se passou, e quem foram os que tramaram a honorabilidade da instituição militar e da PIC, a última a saber da tramóia. 
Ainda bem. Subscrevo totalmente que a investigação tem de descobrir os culpados e que eles sejam condenados, doa a quem doer. Parece que foi assim que falou o chefe supremo e todos os chefes por aí abaixo. 
Não te esqueças que eras, e ainda és, o comandante do quartel roubado e devolvido. Mas mais grave do que isso, ou pelo menos tão grave quanto isso foram as tuas declarações na comissão de inquérito.
Declarei aquilo que sabia, isto é, nada. Aliás, ainda hoje estou para saber o que se passou.
Não disseste mais nada?
Não. Perguntaram o que é que eu sabia e eu respondi que não sabia nada.
Só isso?
Só. 
Não é o que consta por aí.
E o que é que consta por aí?
Que fizeste afirmações muito críticas a propósito da falta de meios de combate, da falta de preparação dos efectivos, que quando há meios não há guerras, e o pessoal, sem guerras para combater não tem que fazer, inventa encrencas?
Isso não é verdade. Disse, isso sim, que as forças armadas andam desmotivadas porque os efectivos são escassos e, em geral, mal preparados, e os equipamentos, na maior parte dos casos, são obsoletos, considerando a evolução tecnológica que, nem de longe nem de perto, temos acompanhado. Por outro lado, não sendo politicamente correto afirmar isto, é inegável que sem acção não há motivação e, salvo raras excepções, noventa e muitos por cento dos efectivos nunca enfrentaram uma situação de combate real nos últimos quarenta anos.
Não disseste mais nada?
De relevante, não.
Não disseste que na manhã seguinte ao desvio do quartel o oficial de dia tinha adormecido e acordado em casa de uma amiga?
Nesse caso falei off record ... Não me digas que os quadrilheiros não respeitaram o direito de reserva que invoquei... 
Digo, digo. E digo mais! A mulher dele já lhe pôs as malas na rua.
Mal feito. Se fez isso é porque não acredita em milagres. Tinha ideia que era crente. Casaram-se pela igreja, fomos convidados, se é crente e não acredita neste duplo milagre só confirma a originalidade deste imbróglio onde os laicos acreditam que houve milagre e os crentes juram que houve burla! Mas também te digo que foi o próprio oficial de dia em serviço no turno daquela noite que me disse, quando o interroguei para apuramento dos factos, que ignorava completamente o que se tinha passado, adormecera a fazer paciências e acordara em casa de uma amiga... É estranho, muito estranho sem dúvida, mas temos de considerar paranormal tudo o que se  passou naquela noite de muitos milagres.
Tens de concordar que nada disso abona a favor do prestígio das forças armadas em geral, do exército e do nosso quartel, em particular.
Até prova em contrário, todos os fenómenos relacionados com o desvio e a reposição do quartel são paranormais, não têm explicação científica, e creio que nunca vão ter.
Também consideras paranormal que um oficial de turno, responsável imediato pela segurança e defesa do quartel seja surpreendido pelo sono porque se entretinha com paciências e se borrifou para os procedimentos da ronda?
Não, neste caso não houve para normalidade mas normalidade ...
Essa é boa! É com essas e com outras parecidas que passa para a opinião pública a imagem de que temos uma tropa fandanga. Como podes tu, Boavida, admitir sequer que seja normal o desleixo onde é indispensável a disciplina? Como explicas esta contradição máxima?
Não ter que fazer, cansa...
O oficial de turno não tinha que fazer?
Pouco, quase nada, quando o perigo é muitíssimo remoto. Hoje, não passa pela cabeça de ninguém assaltar um quartel, os assaltantes preferem trabalhar nas ruas, nos transportes públicos. Hoje, os quarteis, como os bancos, quando são assaltados, são assaltados por dentro, percebes?
Então, se bem te entendo, Boavida, o nosso quartel foi assaltado por dentro...
O nosso quartel não foi assaltado, foi milagrosamente desviado...
Sem que o sacana do oficial de turno desse por nada, porque estava cansado de fazer nada, e adormeceu. Foi assim?
Até prova em contrário, parece que sim. 
Mas faz algum sentido?
Faz. 
Como explicas, tu, comandante do quartel a banalização do desleixo dos teus subordinados?
Explico porque os compreendo. Tenho cinquenta e cinco anos de idade, trinta e cinco de serviço, mais três anos do que aqueles que levamos de casados...
... E cansados um do outro...
Não disse isso. Aos vinte anos era alferes de infantaria. No dia em que, pela primeira vez, era comandante de um pelotão de trinta recrutas, senti o peso da responsabilidade de liderar e da honra de o fazer em funções de defesa da soberania do meu país. Nunca esquecerei esse dia, marcante na minha vida de oficial do exército. Tinha a coadjuvar-me um sargento, ele teria, nessa altura, mais uns dez anos de vida e de serviço militar que eu. Tinha a tarimba que me faltava, era um sujeito discreto, cumpridor e respeitador, aprendi muito com ele sem que o meu handicap de novato nas funções alguma vez tenha transparecido para os homens do pelotão. Suei como nunca tinha suado durante a formação na escola de oficiais, para, à frente do pelotão, manter o andamento imposto pelo sargento que, ao lado, imprimia o ritmo nas saídas para o campo em passo de corrida. Fisicamente esgotado pelas actividades planeadas para os recrutas, no fim de cada dia sentia-me satisfeito pela carreira que tinha escolhido. Quando cada pelotão terminava a formação geral e os via partir para as especialidades sentia que tinha dado a cada um qualquer coisa de mim. Até ao dia em que me assaltou uma dúvida danada: se teríamos transmitido aqueles rapazes, ou pelo menos a alguns deles, alguns valores cívicos e alguns princípios elementares de organização e combate, se lhes teríamos desempenado os corpos e, em alguns casos, as mentes, que poderia um dia esperar deles o país se fossem chamados a defender a nossa soberania em caso de eventual ofensiva externa? E, sem dúvida alguma, concluí que, em caso de chamada às fileiras, aqueles rapazes, que tinham perdido alguns meses das suas vidas com pouco proveito, se algum, para eles,  nenhum esforço de defesa poderiam dar ao país. O mundo tinha mudado, a arte da guerra tinha acelerado e nós continuávamos a marcar passo. Para remediar este contrassenso óbvio decidiram os que podiam decidir que terminasse a incorporação obrigatória durante um período curto e se recrutassem voluntários, contratando-os durante períodos longos, mas os constrangimentos subsistiram por falta de meios adequados...
Adequados a quê?
Boa pergunta, que suscita outra: de que forças armadas precisa o país? As que temos parecem-se mais com aquelas que se combatem em guerras civis intermináveis nas repúblicas das bananas do que as que estão preparadas para se confrontarem com um inimigo externo. Hoje os nossos efectivos são profissionais que, em larga maioria, utilizam os meios de combate em que anteriormente eram habilitados os de incorporação obrigatória, a diferença está no tempo desperdiçado a fazer as mesmas inutilidades.
Por esse andar, com essas ideias não vais longe ... 
Pois não ... Talvez me passem à reserva ... Não me desagrada a ideia da passagem à reserva como coronel, senhor coronel!, as estrelas estão reservadas para quem está contentinho com a sua inutilidade...
Mas que lutam pela afirmação da dignidade das forças armadas!
Oh! Oh!, ... Qual das tuas amigas te disse isso?
É convicção generalizada entre os militares, oficiais, sargentos e praças que ao desprestígio causado pelo burlesco caso do quartel devem as forças armadas opor a organização de uma demonstração de força e coesão.
Essa é boa! ... Gosto dela! E como, sabes?
Há várias hipóteses ... a mais falada é uma parada ... Ninguém falou contigo sobre isto?
Não, nada, estou a ouvir pela primeira vez ... Mas não me parece mal essa de uma parada, um desfile não é?
Pois, deve ser isso. O que é que temos para desfilar? Pergunto porque, a ouvir-te, o que temos parece que está tudo obsoleto e a cair para o lado.
Na infantaria andamos normalmente a pé, temos umas unimogs, um tanto gastas mas podem encobrir-se os efeitos da idade com camuflagem convincente, temos o colorido das boinas dos paras e dos comandos, na cavalaria os carros de combate, tanques que já mereciam a passagem à reserva, mas bem camuflados impressionam, a artilharia não tem lança mísseis para exibir mas com uns lança foguetes bem ataviados prova que ainda existe,  a desfilar fora de água, os marinheiros têm os fuzileiros e, a desfilarem armados, como é da praxe, botam figura, os outros marinheiros têm fardamento, galões e medalhas que brilham mais sobre o azul, os da aviação podem exibir-se numas piruetas aéreas, e que mais? As bandas, as bandas não podem faltar nas marchas...
Não são marchas, é uma parada.
Claro, claro, é uma parada. Não sei porquê, de repente lembrei-me das marchas...  E que mais podemos juntar? Não me ocorre mais nada. Das tuas amigas recolheste mais algumas dicas?
A polícia, aliás as polícias, por exemplo, são forças armadas, não são?
Sem dúvida. Venham as polícias!
E os bombeiros?
Evidentemente, os bombeiros. Como é que eu estava a esquecer-me dos bombeiros? Combatem o nosso maior e persistente inimigo. E com aqueles carrões vermelhos, as sirenes a apitar, sem aqueles carrões vermelhos perdia-se o melhor, o colorido da parada... Nunca imaginei que as nossas forças armadas tivessem tanto poder de combate... Invejo os comandantes de quartéis de bombeiros...
... ?
Têm um inimigo a combater, duro, persistente, traiçoeiro, enquanto nós, militares, amolecemos pela ausência de inimigos que nos despertem e dêem sentido à nossa missão. E, por adormecerem os militares no conforto da paz à sua volta, podem desaparecer e reaparecer quartéis militares sem que ninguém saiba como, pelo menos por enquanto...
Essa agora, levaste uma vida inteira a convencer-me que é em tempo de paz que as forças armadas se preparam para a guerra...e afinal...
Afinal subsiste a questão primordial: preparar em tempo de paz para guerra. Mas que guerra? Hoje, se colocarmos de fora a hipótese de um conflito mundial da qual resultaria, muito provavelmente, o extermínio total ou quase total da espécie humana continuarão a existir guerras civis, circunscritas, onde os militares não asseguram a defesa do país mas a dos interesses de facções que se digladiam e frequentemente resultam em genocídios. Não nos preparamos para um conflito mundial porque esse, se acontecer, colocará em confronto as potências nucleares, preparamo-nos, quanto muito, para integrar forças de intervenção em conflitos localizados ou defesa limitada da soberania no mar e no ar, por compromissos assumidos no grupo de defesa de países em que estamos integrados, mas, neste caso, o esforço requer um número muito reduzido de operacionais altamente especializados. Em resumo, grande parte dos efectivos das forças armadas prepara-se para uma guerra que não existe nem vai existir. Já os bombeiros, esses sim, esses têm uma guerra sempre a bater-lhes à porta todos os anos quando o calor aperta e a chuva não cai. É muito acertada, portanto, a ideia de fazer desfilar os bombeiros nessas marchas populares...
Não são marchas, Boavida! Trata-se de uma parada para resgatar o prestígio desgastado das forças armadas!
Lapsus linguae da minha parte que não desmerece a ideia da iniciativa muito bem prestigiada com a participação dos bombeiros.
Caíram-te no goto os bombeiros...
Era o meu sonho de menino. Se soubesse o que sei hoje tinha seguido a minha intuição, seria agora comandante de um quartel de bombeiros...
Disparate!
Disparate, porquê? Seria comandante de um quartel de forças armadas com um inimigo a assaltar-nos todos os anos... 
Consideras os bombeiros como parte das forças armadas?
Quem concebeu a ideia das marchas...
Da parada...
Isso, quem a concebeu considera, e não serei eu quem contrariará os idealizadores da procissão...
...?
... Em honra de quem, ninguém sabe quem nem como, operou o milagre do desaparecimento e reaparecimento do quartel...
És um caso perdido.
Talvez me encontre um dia destes como bombeiro comandante de um quartel de bombeiros...
...?
Não te agrada a ideia? A mim atrai-me. É um desafio para uma acção de combate a um inimigo que não desiste de nos derrotar. Como militares quem podemos confrontar? Não acredito, não quero acreditar, que a parada seja uma exibição de força perante o poder político. 

Ouvindo isto, a coronela descalçou os saltos altos.

(segundo episódio de QUARTEL BOAVIDA)