Ouvíamos a mesma conversa durante todo o dia.
Mãe, podemos levar um? E depois, onde o púnhamos?
No meu quarto!
E tu pensas que ele se sentiria feliz durante um dia
inteiro, sozinho no teu quarto? Tu vais para a escola, eu e o pai vamos
trabalhar …
Podíamos deixá-lo na rua, eles aqui andam na rua …
Pois andam, mas por aqui não passam automóveis …Falamos logo
à noite sobre isso com o pai. Valeu?
Valeu. Podemos levar este … se o pai estiver de acordo?
Este, era eu. A conversa não me agradava mesmo nada. Ir dali
para outro lado já seria mau, pensava eu naquele momento, mas separado dos meus
outros três irmãos, nem pensar. Desse por onde desse, haveria de arranjar modo
de fugir e voltar para ali, para aquela ruela torta e
suja, a cheirar a tudo mas sobretudo a maresia, junto ao ancoradouro onde os
pescadores amarravam os barcos e remendavam as redes. Quem passava, parava e
pasmava-se à frente da nossa cesta cheia de tanta ternura exposta ao sol à
porta daquela casa onde nascêramos, à coca, percebemos depois, que alguém desse
alguma coisa por nós. Mas era a pequenada quem mais nos mimava e queria, à viva
força, levar-nos com eles.
Até ao dia em que, com mais ou menos dois meses,
tínhamos deixado a cesta e vagueávamos por ali, a brincar e a morder o que
calhava, que o faro recomendasse e nenhum latagão, gato ou cão, se antecipasse,
passou por ali um grupo de gente de outras paragens que os nossos tinham
dificuldade em entender, e, blá, blá, blá daqui, blá, blá, blá de lá, daí a
dias meteram-nos, os quatro manos, numa caixa, parecida com gaiolas de pássaros
tamanho extralargo, e que, embora não sendo gaiola de pássaros, viemos depois a
perceber que tínhamos voado dentro dela. Aonde nos vão levar estes tipos?
Nenhum de nós sabia.
Mas não havia nada a fazer, acham que havia?
tínhamos sido comprados, outra coisa que não se compreende, que direito tem
alguém a vender o que lhe nasceu em casa? pode vender os filhos? não pode, já
lá vai longe o tempo em que em sítios incivilizados podia, agora não, acredito
eu. Tínhamos sido comprados, com a garantia de que estávamos registados e
preparados…
Naquela altura, nenhum de nós percebeu o que é
que significava aquela coisa de estarmos preparados, só ficámos a saber quando
fomos levados a um consultório veterinário, parece que é esse o nome que dão
aos lugares onde preparam cães e gatos, seres de companhia, lhes chamam, não
vimos lá naquele dia mais nenhuma outra espécie, deram-nos umas picas nas coxas
e umas gotas pela boca abaixo, vacinas, ficámos a saber depois que eram
vacinas, outra pica aqui em baixo, entre as pernas, que doeu que se fartou, na
altura não percebemos porquê e muito menos para quê.
Nenhum de nós sabia qual o nosso destino, não
deveria ser coisa boa porque, à despedida, ficaram os olhares dos nossos pais
tão encharcados em lágrimas, tão dolorosos e acabrunhados que só de vê-los
ficaram os nossos embaciados, talvez para minguar a visão e o nosso sofrimento.
Não imaginem quanto nos desgostou tirarem-nos daquela nossa terra quente e
luminosa e voar numa gaiola para estas bandas frias, com muita chuva, muita
neve, com sol só quando o rei faz anos, porque para tanta tristeza já basta a
nossa. E, como uma tristeza nunca vem só, depois de aberta a gaiola,
colocaram-nos coleiras e às coleiras prenderam trelas a cada um de nós, a
primeira de muitas humilhações, a que nunca antes tínhamos sido sujeitos, que
viríamos a sofrer depois, e separados uns dos outros, cada um levado sem saber
para onde ia e muito menos para onde iam os outros.
A mim coube-me passar a viver numa casa numa
cidade junto de uma montanha, à beira de um lago enorme, mas muito mais
pequeno, sem comparação possível com o mar da nossa terra. Foi em Maio, o dia
estava bonito, apareceu o sol, logo que entrei em casa, o homem da casa, ou
terá sido a mulher? não importa, um deles limpou-me as patas com uma toalha, um
luxo! há que reconhecer as vantagens, ainda que eu nunca tivesse sentido antes
necessidade nem obrigação de limpar as patinhas antes de entrar em casa. Depois
colocaram-me uma taça com água, bebi-a sofregamente, já não bebia água não sei
há quanto tempo, ao lado da taça da água uma taça com uns pedacitos que, à
primeira vista, me pareceram de madeira. Farejei, voltei a farejar, não me
repugnaram, mas não comi. E estava com tanta ou mais fome que sede. Olhei,
olhei, a pedir outro prato, pelos vistos a ementa só tinha prato único, e lá
acabei por rilhar os pedaços que pareciam de madeira. Não tive dores de
barriga, receei que iria ter dores de barriga, mas se tive foi durante o sono
porque me deu tal soneira que quando acordei percebi que o sol já tinha ido
para outro lado.
Veio o homem ter comigo, fez-me umas festinhas
na nuca, gostei, registo que gostei, depois prendeu a trela à coleira e saímos
para a rua. Logo que me apanhei fora da porta, urinei, pouco, porque há tanto
tempo sem água à vista, mas fiquei a saber que, naquela cidade, não se urina em
qualquer parte. Demos uma voltinha, sempre preso pela tela quando os músculos
me pediam umas corridas a sério, se não pareci trôpego foi porque, por uma
questão de dignidade da espécie, fiz o que pude para disfarçar. Quando
voltámos, não voltarei a repetir-me nisto, o homem limpou-me as patas, a mulher
indicou um quarto onde me enrosquei num cesto, mais capacho que cesto, para ser
preciso. Não voltei a beber nem a rilhar cascas nesse dia, estive umas horas
acordado de olhos fechados a gravar algumas coordenadas do sítio sem sair do
capacho porque estava atrelado à perna da cama daquele quarto sem gente, para
além de mim. Pela primeira vez na minha vida, passei a noite sozinho. Por onde
andariam os meus três irmãos aquelas horas? Já teriam bebido água, pelo menos?
Ter-lhes-ia calhado tincar umas cascas ruins ou estaria algum deles ainda sem
água nem cascas, pelo menos? Estariam
dentro de casa, de coleira ao pescoço e trela presa, ou à solta na rua ou num
quintal? Sentia-me medonhamente só e injustamente agrilhoado, mas não me era
tão doloroso suportar a minha condição do que pensar que fossem piores a deles
que a minha.
Aquela hora, nos dias em que ainda não tínhamos
voado, para ser preciso não tínhamos voado coisíssima nenhuma, só por muito
pretensiosismo humano pode o homem, ou a mulher, dizerem que voam quando vão de
um lado para o outro transportados num avião, queria dizer, então, que aquela
hora, nos dias em que ainda não nos tinham levado num avião para local
desconhecido, estávamos nós aconchegados, os quatro manos, num canto da rua,
livres de trelas e de coleiras, a ouvir a sinfonia dos grilos e das cigarras no
teatro estrelado de um Maio moço perfumado pela maresia. E a recordar esses
dias de vadiagem, à solta, a beber onde sabíamos onde havia que beber e comer
uma dieta variada, a meter conversa com este ou com aquele, ou aquela, naquela
forma tão nossa de meter o nariz com os outros da nossa espécie, deu-me uma
imensa vontade de chorar. Devo ter dormido tão pouco, ou são mais curtas as
noites e os dias aqui do que lá, porque só acordei quando o homem da casa me
fez umas cócegas nas orelhas. Nestas orelhas que são um espanto para toda a
gente. Ainda não tinha dito mas, como sabem ainda sou novo, mas as minhas
cores, o preto brilhante, o alaranjado mate, o branco nítido, vestindo-me o
corpo de pelo sedoso, esmeram-se numas orelhas contidamente pendentes, ornadas
por uma cabeleira matizada que põem as meninas dos olhos delas a estremecer
quando me vêm, e eu, de língua de fora, o brilho dos pelos laterais nasais, os
bigodes para ser mais claro, já a denunciarem a antecipação do gozo que aquela
admiração delas me suscitava e me dava garantias. Resumindo, não é para me
gabar, mas reconheço que somos os quatro, sem termos contribuído em nada para
que assim seja, uma perfeição caprichosa da natureza. Como estarão os meus
irmãos neste momento? Quando nos separámos, as diferenças entre nós eram
mínimas, os putos votavam quando nos queriam, querendo-nos todos, e essa
votação cerrada grudava ainda mais a nossa fraternidade.
O casal, homem e mulher, habitavam naquele
apartamento com dois gatos, um gato e uma gata, que passavam os dias meio
adormecidos empoleirados num palanque de dois andares, assim uma espécie de
bengaleiro com suportes para anichar felinos. Eu passara a ser, portanto, o quinto
habitante da casa.
O homem saía de casa de manhã cedo, trabalhava a
uma hora de distância, ia a pé, depois de autocarro e comboio, depois de tomar
o pequeno-almoço e deixar o mesmo para a mulher que aparecia na sala cerca de
uma hora depois. Antes de sair para o trabalho, o homem ainda me levava, preso
pela trela a dar a volta para satisfação das minhas necessidades naturais.
Durante o dia, a mulher saía para fazer compras,
mercearias em geral, e lá ia eu com ela pela trela. Voltava, limpava-me as
patas, e, já!, ordenava ela, tinha de me enroscar no capacho a ver passar o
tempo, a dormitar, a sonhar com a liberdade perdida para sempre. Tinha ordem
para me levantar só à hora do almoço, quando ela mandasse avançar. Estava o meu
almoço preparado, agora já não comia cascas, comia uns cozinhados que, com a
fome que tinha e a espera a que era o obrigado pelas tabelas dela, se não eram
grande coisa, a mim sabiam-me assim-assim, melhor que as cascas, em todo o
caso. Bebia, comia, dava a voltinha da mijinha, patas limpas à entrada e, volta!
para o capacho! Ela tinha traçado uma linha imaginária que eu passei a
reconhecer porque, se por qualquer razão me movesse até à proximidade dessa
linha invisível, ouvia repreensão pela certa, tão ríspida e dura que me parecia
que a mulher usava invisível altifalante. Se eu estava ali mesmo ao lado por
que ralhava ela tão alto numa terra onde, à noite, nem os cães se ouvem ladrar?
Passavam-se assim os meus dias, mais imobilizado
no capacho que os gatos no bengaleiro, autorizados a sair e entrar, quando lhes
desse na real gana, através de uma gateira instalada na porta que dava para as
traseiras, e dali para a rua. Mas até os gatos deviam ter recebido dela
instruções precisas porque não se ausentavam por tempo que lhes permitissem
mais que distender as patinhas, para as mijinhas e, para os cocós, tinham o
cesto das pedrinhas.
A dada altura, passei a acompanhar no passei
matinal o Urs, um vizinho velhote, reformado, que passeava a sua Cherry. Foi um
progresso considerável para o ego de quem até ali estava condenado a quase um
dia inteiro sentado no capacho. Compreensível mas lamentavelmente, o Urs
aparecia com a Cherry para o meu passeio matinal mais tarde do que aquela hora a
que o homem da casa me proporcionava a saída para a mijinha da manhã antes de
sair para o trabalho, e a mulher não se dignava abrir a porta do quintal para
eu poder fazer à minha vontade o que toda a gente costuma fazer logo que se
levanta, era obrigado a apertar, a apertar, até que o Urs batesse à porta e eu
me pudesse levantar, e saísse, de trela a puxar pelo Urs até ali acima, aquela
curva onde começa o relvado. Mas antes, farejava, farejava,
farejava, a ver se o sítio continuava conveniente, e só depois dava conta
da minha higiene matinal. Íamos por aqueles caminhos e veredas, se já tínhamos
saído de sítio por onde pudessem passar veículos, bicicletas, automóveis, ou
coisas do género, ainda que raramente, o Urs soltava a trela da coleira, e eu tinha,
pela primeira vez naqueles sítios, autorização para dar uma corrida para trás e
para a frente, as vezes que eu quisesse, enquanto ele não entendesse assobiar
para que voltasse para junto dele. Vinha logo, ele dava-me uma cookie e comia
outra, fazia-me uma festinha, falava comigo, e eu aproveitava o intervalo de
relaxe para outra mijinha aqui, e logo uma cagadinha ali à frente...
Eh!Eh!Eh! Vá lá, Urs abre lá o saco, apanha e dobra para dentro. Isso,
agora dá um nó e mete no cagão. Não há por perto? Aguenta até que apareça.
O Urs costumava por no bolso enquanto não aparecesse o cagão. Aquecia-o, penso
eu. O Urs era um tipo catita. A Cherry nem tanto. Não era má cachopa, mas com
aquele ar de quem estava a olhar sempre contra o governo, nem alegrava nem
chateava, passava pelos outros como se não os visse. Eu, não. Cada encontro era
uma confraternização. Cheirávamos-mos como e onde é da praxe, abraçávamo-nos, e
corríamos como doidos de alegria. Nisto, o Urs era parecido comigo. Cada
encontro dava para uma conversa alongada, que eu não entendia porque, já sabem,
não nasci aqui, trouxeram-me de longe. O Urs não é do tipo que passa,
gutureja grüezi, e está feito. Não. Em cada encontro punha a escrita em dia. Já
no físico, parece-se mais com a Cherry: aquele andar a tombar para um lado e
para o outro, ou o copiou da Cherry ou a Cherry o copiou dele, vá lá a gente
saber quem é que começou a balançar-se primeiro. Toda a gente me conhecia. Não
admira: sou civilizado, cordato, gosto que me cumprimentem, que gostem de mim,
e correspondo.
A mim, coube-me a sorte, ou o azar, nunca
se sabe o que o futuro nos reserva, não é? de vir para um sítio ao pé de uma
montanha, com um grande lago ao fundo, parece-me que já tinha dito isto, e mais
montanhas, encavalitadas umas nas outras, do outro lado do lago. Por ali
pode-se caminhar entre as árvores, ouvir a passarada e farejar relva, há relva
à volta ao longo de todos os caminhos.
Há uns tempos, fizeram um encontro de famílias,
uma ideia boa que não posso deixar de registar. Lá fui encontrar-me com os meus
irmãos. É sempre bom o reencontro familiar, não acham? Mas fiquei triste porque
não vimos lá os nossos pais, eles adorariam, pelo menos tanto como nós, ver a
família reunida. Mas, apesar daquela mágoa, foi, ainda assim para mim um dia de
rara felicidade, sou do sul, já disse, e a gente do sul gosta destes encontros.
Foi uma festa em grande, sim senhor. Reconheci os meus irmãos logo à distância,
claro. Todos me gabaram a pele sedosa, o ar lavado, a elegância.
Disse-lhes o mesmo, como é norma nestas circunstâncias, mas não fui franco com
todos eles. Deveria ter sido? Dois deles pareceram-me pouco disciplinados, e,
na altura, confesso, tive inveja deles, daquela indisciplina, mas talvez eles
estivessem mais empolgados com o reencontro, não somos todos iguais, mesmo se
nascidos da mesma ninhada. Aliás, nem toda a gente aqui é disciplinada. Dizem
que são, mas não é verdade. O Urs, por exemplo, é disciplinado. Sempre que
encontra um saco de plástico no chão ou uma lata vazia no meio da erva, pega
neles e coloca-os no caixote do lixo. E pragueja. Coloca, mas pragueja:
Estúpida gente! Gente estúpida! Depois faz-me umas festas e dá-me outra cookie.
De quem o Urs não gosta mesmo nada é dos gregos. Volta e meia, gregos à parada
para uma ensaboadela! Lá terá as suas razões mas não sei se os gregos o ouvem.
Desconfio que não.
Hum! Cheira-me, a partir daqui deste meu posto
de observação no capacho, que para a semana vai haver alterações. O Urs tem
sido o meu companheiro nestes passeios matinais pelo campo desde há algum tempo
porque, se bem percebi, a mulher da casa está à espera de bébé, percebe-se isso
agora pelo crescimento da barriga, e o homem sai de manhã para o trabalho, tem
de apanhar o autocarro e o comboio, volta à tarde, só está livre para me
acompanhar nas passeatas ao fim do dia, depois de ter ajudado a fazer o jantar
e arrumar a cozinha, e aos fins-de-semana. Não nasceu cá, no fim de contas é
emigrante como eu, mas entre ele e o Urs, quanto ao que a mim diz respeito, não
há grandes diferenças, deixa-me livre para as minhas correrias pelo campo e
também gosta muito de conversa com a vizinhança.
Há dias, a mulher, com a barriga crescida como
eu nunca a tinha visto antes, saiu de casa durante dois dias ou três, quando
voltou não tinha tanta barriga, tinha nascido a bébé. Encheu-se a casa de
alegria, uns dias antes a mulher tinha cantado lindamente umas dez canções a
celebrar a alegria do futuro próximo e o marido acompanhado o canto tocando
guitarra, a última, se bem me lembro foi a última, foi cantada pelos dois.
Vieram-me as lágrimas aos olhos, vocês podem não acreditar mas vieram-me as
lágrimas aos olhos, nem só os humanos têm sentimentos, a diferença é que os
deles às vezes não são bons.
Para ajudar, a mulher pediu o auxílio dos pais
do homem, gente na casa dos setenta, não menos, que eu não sei contar mas sei
avaliar, que vieram de longe, lá do sul, estava dito, e que, durante um mês,
trabalharam como moiros. Só saíam de casa ao fim do dia, quando chegava o
filho, para dar uma passeata pelas redondezas, que já não são as mesmas do
tempo em que eu passeava com o Urs. Não. Os avós da bébé, além de terem ajudado
a mulher a cuidar da casa e da bébé, tinham, os tolos, entretanto emprestado,
sem juros, dinheiro ao casal para estes construírem uma casa nova do outro lado
do lago. E o meu amigo Urs ficou-me do lado de lá, nunca mais o vi. As saudades
que eu tenho do meu amigo Urs!
Um abraço Urs! Beijinhos à Cherry, se ela
deixar.
Agora, que a bébé já anda de carrinho, tenho de
acompanhar a mãe e a bébé.
E, se chove? A mim, lava-me o pelo.
Que lindo que ele é!, é um setter? perguntou uma
jovem no meio de um grupo de jovens que se cruzou connosco durante a passeata
da tarde. Era frequente o espanto perante a minha beleza daqueles que
encontrávamos durante as nossas passeatas. É um setter? É um galgo árabe? É um
bernesse moutain dog?
Esta gente é racista? interrogava-me depois
durante toda a tarde no capacho. Pela terra onde nasci passaram homens,
mulheres, cães e gatos, e mais de mil e um animais de toda a espécie, visíveis
ou invisíveis pelo olho humano, vindos de
todo o mundo. Foi Deus quem criou o setter e disse, este é um setter,
depois criou um pastor alemão e disse, este é um pastor alemão, depois criou um
serra da estela e disse, este é um serra da estrela, e por aí fora? E quem
criou os vira-latas? Aí, explicam os evolucionistas, que todos descendemos da
mesma fórmula dinâmica original, e aquilo a que chamam raças são tão somente o
resultado de cruzamentos, infindáveis porque estão a acontecer em cada momento,
quantas estarão a acontecer agora neste preciso instante, alguém é capaz de
fazer essas contas? Em raças puras só acreditam os que não percebem nada acerca
da evolução das espécies. A verdade é que, no meu caso pelo menos, as opiniões
divergem largamente, e isso diverte-me imenso.
Passados que estão mais de dois anos, cá continuo no
capacho, passeata contida de manhã, passeata à tarde, passeata para correr à
vontade quando a noite chega e traz o homem de volta a casa. Depois do jantar,
ala para a mijinha, a cagadinha, e as corridas controladas, até porque não
aparecem muitos amigos a passear à noite. É a essa hora, fora de portas, que o
homem telefona aos pais. Como vão vocês por aí? Por cá já começou o inverno?
Coisas assim, tão ingénuas que eu não compreendia que não fossem feitas em casa
e não ao frio que me enregelava os ossos mas, por outro lado, me poupava uns
momentos de capacho. Mas a explicação era simples: ela não consentia, segundo a
tabela, aquela hora, não havia mais conversas em casa, fosse com quem fosse e
muito principalmente com familiares, do homem ou dela.
E perguntava-me vezes sem conta: para que me quer esta gente
em casa, se passo os dias no capacho, pouco mais que imóvel durante horas sem
conta, se mexo é porque bocejo, estendo esta pata, encolho-a, estendo a outra,
meto o nariz entre as mãos, e dormito? Olho para os gatos e lá estão eles a
fazer o mesmo que eu: comer, mijar, cagar e dormir. Para quê?, senhores, alguém
me diz? Por ter o homem que me acompanhar à rua, depois do jantar, ficava, por
ultrapassagem do horário tabelado, impedido de falar com os pais dele ou dela a
partir de casa. Com um porcelânico nada disto aconteceria, pensava eu.
Não tem esta gente inteligência ou conhecimento bastante
para saber que há gatos e cães de porcelana, obras de arte a preços acessíveis,
que não comem nem deitam fora, sem custos de cuidados médicos nem de
alimentação?
Que vantagens lhes traz o meu sofrimento, terem-me aqui
preso, sem julgamento nem sentença com trânsito em julgado, quando um de porcelana,
de todas as raças, à escolha do freguês, verdadeiras obras-primas, fariam o
mesmo efeito, e não perturbariam os horários da tabela.
É certo que, de vez em quando vêm as bébés fazer-me uma
festinha, a propósito, já me esquecia, que tinha nascido outra bébé, celebrado
o acontecimento com mais canções, estava toda a gente muito feliz, e a
felicidade deles minorou o meu desgosto de preso sem culpa formada. Não podiam
os de porcelana dispor-se às mesmas ternuras? Claro que podiam. Com que é que
se encantam as meninas senão com bonecas que não são crianças vivas? E os
meninos com o que calha à sua natureza, bonecas de pano, até, se gostam delas
desde pequeninos?
Eh! Eh! Eh! O que eu me diverti ontem! Por
um bom bocado esteve a casa cheia. A meio da tarde, dei logo conta que
vinha alguém a chegar, e não eram os velhotes do costume, hum! Era gente
jovem, e acertei, quis ir logo recebe-los à porta, mas qual quê!, cht! disse a
mulher, e apontou-me o capacho. Mas é óbvio que acertei, já tinha visto
através das portas de vidro fosco, os vultos de dois putos, o Mig e a Ri, que
eu não conhecia mas já tinha ouvido falar, dois putos assim mais para a minha
idade. Fiquei excitadíssimo, sabem? Nem todos os dias se tem tanta gente à
volta, a gabarem-nos a elegância do andar, a originalidade das orelhas, a
afabilidade do trato, a disciplina, e, melhor que tudo, miudagem que gosta de
brincar comigo. Ralharam-me por me ter excitado. Uh! não me posso exceder numa
terra destas... até nestas situações tenho de abafar a alegria e ficar muito
contido. Mas custa muito, vocês não imaginam o que custa engolir a alegria,
custa quase tanto ou mais que engolir a dor.
Ora, já disse mas nunca é demais repetir, que eu sou do sul, nascido em
terra quente, tenho as minhas exuberâncias no sangue. Demos uma passeata pelo
sopé da montanha, nada de escaladas altas, mas mal saí á rua, quem vejo eu? O
meu vizinho. Quis-lhe apresentar as visitas mas devo-me ter excedido porque a
mulher logo me ralhou, desta vez mais de modo mais duro que o habitual nela,
nada que se pareça com a pachorra do Urs, que ficou do outro lado do lago, já
tinha dito, não tinha? e a afabilidade do marido. É assim, andar com ela é um
tormento, quando nos vem à pele o sangue quente do sul. Tive de me conter, e
portei-me todo o passeio como mandavam aquelas regras. Passava por amigos e
conhecidos, e os cumprimentos não ultrapassavam a praxe. Aliás, todos os que
vejo por estas redondezas, eles e elas, estão neutralizados. Eu também.
Custa-me dizer isto, mas é verdade. De modo que, se venho com ela e as bébés,
as relações não vão além dos costumados reconhecimentos olfactivos, passe
bem e eu também. De vez em quando aparece um mais exaltado mas passa-lhe
depressa. Aqui, é assim. Já na Itália, é bem diferente. O ano passado, ou
terá sido já há dois anos? uh! como o tempo passa depressa, mas dizia eu que
fomos até Itália passar férias. Gostei. Mas vim de lá acabrunhado. Lá,
presumo, que não deve haver tantas neutralizações, de modo que
quando passava por eles, depois dos reconhecimentos olfactivos da praxe,
via-os olharem para trás a rirem-se de mim. Pior que isso, elas admiravam-me
mas cochichavam pesarosas. Tão elegante, tão cool, tão sex appeal, e
impossibilitado, coitado, que pena que eu tenho. Como é que se pode consentir
uma coisa destas, senhores? É uma prática de desorientação sexual
forçada que não deveria ser legalmente consentida. Dormi mal noites
seguidas, depois acabei por me conformar. É a vida!
Hoje, subimos a montanha de teleférico. Para mim, banal. Mas os
putos deliraram por me verem de novo. Quem não me gostou de ver, se não foi a
mim não sei a quem poderá ter sido, foi o bilheteiro do
teleférico. Antes que percebesse quantos éramos e quanto nos custava a
ida, o homem, mal encarado, parecia um agente dos serviços secretos a olhar e a
remirar, esteve naquilo um tempão. Fomos, é exagero de expressão, a mulher
não foi, as bébés não foram, a mulher, já tinha dado por isso há muito tempo,
não é muito, aliás nem muito nem pouco, receptiva a reuniões familiares. Estranho
é que me tenha levado aquela reunião com os meus irmãos. Mas vá lá a gente
entender a gente humana, pelo menos parte dela.
Depois o teleférico mexeu-se e lá fomos acima cantar os parabéns
ao Mig, que fazia anos nesse dia.
Um dia deslumbrante. De cá de cima via-se uma cenário com
dimensões e cores infinitas. Eu sei que o infinito é assim uma coisa que
ninguém sabe o que é, mas eu sei que o que admirávamos a partir daquele ponto,
a comer salsichas e a beber Coca-Cola, eu bebi água e comi uma lata de comida pré-fabricada,
era um infinito de deslumbramento sem fim, e, em mim, e suspeito que não só em
mim, senti um vazio interior, não sei onde, mas era interior, por não estar ali
a família toda, que não é assim tão grande quanto isso.
Agora não sei quando nos voltaremos a ver. É assim a vida.
Já tinha dito isto, não tinha?
Durante
qualquer coisa como dois anos, mais mês menos mês, para o caso interessa pouco
ser muito preciso, houve naquela casa uma alegria contida, o que não era de
admirar, não estávamos no sul nem à beira mar, com sol a rodos a aquecer-nos os
corações e os músculos. Escusado seria repetir, mas repito porque há gente
atenta e gente menos atenta ao que ouve ou lê, não é por mal, cada um tem o seu
ser, a sua fórmula dinâmica a funcionar consoante os ambientes onde cai a
funcionar, mas, dizia eu, escusado seria relembrar que eu continuava a consumir
os meus dias sentado no capacho, recebia umas festinhas das meninas que me
sabiam a mel, mas nunca, nunca com permissão de passar para além daquela linha
invisível que era a fronteira inultrapassável se, por desfastio ou mimos das
bébés, me levantava do capacho e queria ir atrás delas.
Continuava
no capacho como se fosse de porcelana, de plástico, de lã ou de trapos, que um
dia, há sempre um dia, terminaria em cacos ou abandonado a um canto qualquer à
espera que o tempo desintegrasse, e resignado. Apesar de tudo, via, ou parecia
ver, felicidade à minha frente, e essa visão minorava o meu desgosto.
O
homem levantava-se cedo, quer chovesse, quer nevasse, preparava os
pequenos-almoços, comia o dele, levava-me ao curto passeio matinal, nesse
aspecto melhorou-se a situação porque do lado de lá o Urs e a Cherry chegavam
um pouco mais tarde, fazia o meu xixi, voltava para casa, patas limpas, e capacho. Voltava o homem à noite, fazia ou
ajudava a fazer o jantar, e, se o trabalho o impedia de chegar às horas
tabeladas, a mulher resmungava. Ali, as meninas tinham de ir, impreterivelmente,
para a sesta às 13 horas da tarde, depois do almoço, e às 19 horas da noite,
depois do jantar. Um atraso do homem, por mais breve que fosse, ou mais que
plausíveis as razões, desarranjavam-se os horários e entornava-se o caldo.
Depois,
não sei o que se passava no andar de cima, onde dormiam todos no mesmo quarto,
ainda que a habitação tivesse três. Porquê?, não me perguntem porque não sou
bruxo nem quero levantar falsos testemunhos.
O
certo é que as discussões entre homem e mulher aumentavam de tom todos os dias,
porque eu cá em baixo, no meu capacho passei a dormir mal: pelo tom da
discussão que, suponho eu, estaria a perturbar os sentimentos das crianças pelo
menos tanto quanto me perturbavam a mim.
E
um dia, o homem farto como eu daquela querela sem sentido, disse à mulher, é
melhor ficarmos separados por uns tempos, as crianças não podem continuar a
suportar estas discussões sem sentido, ficas cá em casa com elas, eu alugo um
apartamento para mim próximo daqui, e daqui a uns tempos revemos a situação.
Até lá, cada um pode reflectir sem ter que discutir. Pago todas as despesas da
casa, já que tu não trabalhas, não tens rendimentos, ficas com o automóvel para
levar as meninas onde for preciso levá-las se a distância não for de fazer-se a
pé, em contrapartida quero ver e estar com as nossas filhas nos termos
estabelecidos na lei para estes casos, assinamos um contrato, homologável pelo
juiz. E daqui a dois anos, no máximo, se não encontrarmos melhor solução que o
divórcio, divorciamo-nos. Não será uma boa solução mas será a menos má se forem
cumpridos os acordos mutuamente aceites.
É
evidente que eu não estava presente no acto da assinatura do acordo, mas dali
do meu capacho, não tendo percebido os termos compreendi as intenções. E, nessa
noite, a primeira em que o homem não ficou em casa, houve um silêncio medonho,
tão silencioso que não me deixou pregar olho. É que, e nisso não somos de
porcelana por mais imobilizados que estejam os nossos músculos, o pensamento
não para enquanto a corda não se parte.
Só
uma vez, juro que só uma vez, e já lá vai mais de ano e meio, voltei a ver as
meninas a saírem com o pai. Em duas ou três ocasiões os encontros foram sempre
feitos na presença da mãe, por imposição desta. Depois, nem isso. Há mais de um
ano e meio que a mãe não deixa que o pai veja as filhas.
Claro
que alguns dirão, ele não deveria ter abandonado a casa, outros, mais
entroncados, culparão o homem por excesso de brandura, o mesmo é dizer por
falta de imposição pela força, se necessário fosse. É em muitas destas
situações que germinam, crescem e explodem as situações de violência doméstica.
Neste
Natal, deslocaram-se os avós, pais do filho, para visitar as netas que não vêm
há tanto tempo quanto o pai delas não as vê, e oferecer-lhes umas prendinhas,
coisas simples, apenas com o significado que a época lhes dá.
Foram
corridos, quando um estranho, que tinha aberto a porta os empurrou para a rua a
mando dela.
E
as meninas, que é feito das meninas?
As
meninas passam os dias como eu, em casa. Não sei se para elas também há linhas
invisíveis, saem para o passeio matinal, após almoço e à tarde. Raramente as
vejo brincar com outras meninas. Não vão à escola porque a mãe se julga
habilitada a ser a professora delas, ainda que tal contrarie os termos do
acordo de separação que atribui a ambos os pais a responsabilidade pela
educação das filhas.
E
não há instituições que garantam o cumprimento do acordo, o desenvolvimento
saudável e social das crianças, perguntar-me-ão. Não sei responder. Sei que não
vi, daqui deste capacho, nada de novo.
Com
tanto tempo enroscado aqui no capacho, sem mais que fazer do que pensar, penso.
Penso
e ultimamente dei por mim a perguntar-me e atormentar-me se não estará ela, a
mulher, a mãe das filhas a tramar a neutralização, a esterilização das filhas
de modo que nunca elas deixem de lhes pertencer. Sim, porque para todos os
efeitos práticos em vigor neste momento, porque a sociedade é cega, eu, os
gatos e as meninas somos os cinco propriedade exclusiva dela.
Estou
louco?
É
bem possível que esteja a ficar louco. Antes isso.
1 comment:
Pobre pet, o melhor é mesmo roer a trela e escapulir-se logo que encontre a porta aberta para não mais voltar e antes que endoideça de marasmo.
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