Tuesday, December 31, 2019

ALGUÉM ESTÁ A BATER À PORTA


31 de Dezembro de 1950

Quando hoje cheguei a casa do avô, às seis e meia como é costume, diz-me ele: Rico, hoje não vamos deitar-nos à hora habitual. É fim-de-ano e começo da segunda metade deste século. Vou ficar pelo caminho, vai ser a tua metade, temos de estar acordados, estas coisas só acontecem uma vez na vida, são poucos os que atravessam um século de ponta a ponta. Já trouxe lenha para dentro, temos quanta precisamos para manter o lume bem acesso até à meia-noite, Temos ovos para estrelar com chouriço às rodelas, temos pão, temos marmelada, eu não posso comer marmelada mas hoje vou pecar um bocadito, um dia não são dias, ainda temos também uns filhoses que sobraram da noite de natal, e, como sempre temos a nossa sopazinha, é só aquecê-la e ela aquece-nos.

O avô Alves ficou viúvo há uns meses, andava muito macambúzio e a mãe disse-me: Rico, tu é que podias fazer companhia ao avô. E, a partir dali, passei a ir para casa do avô ao sol-pôr. 
Ceamos uma sopita, geralmente acompanhada com o que mais há em cada altura do ano. Entre o natal e a entrada do fim-do-ano, temos filhoses, temos papas de porco, que são uma delícia para quem as sabe apreciar, temos torresmos, o avô não come muito porque não deve, eu como pouco porque nunca tenho fome. Mas em se tratando de guloseimas, pelo natal e o ano novo, o avô peca e eu lambo-me todo. 

Depois da paparoca, entretemo-nos a jogar à bisca lambida, ao burro, ao rapa. 
Para jogar ao rapa o avô fez um de madeira de oliveira com o canivete, cada um parte com dez feijões no bolso, e começa por ir a jogo cada um com um feijão no monte. Roda o rapa, se sai P mete um feijão no monte, se sai D, nem tira nem põe, se sai T tira um, se sai R tira tudo o que houver no monte. Talvez por o rapa estar muito equilibrado por ser bem feito demais, nunca nenhum de nós foi à glória antes do sono nos mandar para a cama.

A casa do avô tem duas janelas de guilhotina voltadas para a rua, que dão para a sala onde o avô tem uma secretária, entre as duas janelas, onde regista, diz ele, compromissos e haveres. Na parede à esquerda, há uma cómada para arrumar roupas, em cima uma talha bordada, uma jarra com flores de vez em quando, e coisas várias, algumas caixas de medicamentos. Na parede oposta às janelas, entra-se para dois quartos resguardados por cortinas. Agora, que o avô está viúvo, ele dorme no quarto da direita, eu no quarto da esquerda, o que fica mais próximo da janela de entrada na sala; antes, o avô dormia com a avó num quarto e as suas duas filhas, enquanto solteiras, no outro. Os filhos dormiam no sotão, com acesso por escada a partir da porta de entrada. Na parte oposta da casa, com vista para o quintal e para os campos, fica a cozinha e na cozinha a mesa onde se come. Quando o tempo convida, sentamo-nos no alpendre de onde se sai descendo seis degraus porque o quintal é em plano inclinado. Anexos ao quintal ficam a adega, o alambique, e, em baixo, de um lado e do outro, os alojamentos dos animais, bovinos, galináceos, coelhos, a égua e os seus arreios. Isto era dantes, agora o avô já não desce do alpendre, entregou todas as terras e actividades aos filhos. 

Geralmente, dependendo da hora do pôr do sol, deitamo-nos entre as nove e as dez, levanto-nos entre as seis e as sete. Esta noite, pelos vistos iremos estar acordados até à meia noite. Talvez, desta vez, alguém perca tudo ao rapa. Para nos mantermos acordados vamos contando histórias um ao outro, cada um inventando patranhas que nos façam rir e aquecer para que não dos deixemos adormecer.

Com as pestanas carregadas como nunca, às tantas julgo ouvir alguém bater à porta.
- Avô, estão a bater à porta?
Ele olha para mim como quem não compreende o que digo e diz, hem?
- Parece aque alguém está a bater à porta, digo eu, no mesmo momento em que se ouvem claramente batidas na porta.
- Pois assim parece. Alguém deve estar a bater à porta. Queres ir abrir?
Fiquei varado de medo.
- Eu?
- Sim, tu. És capaz de ir ver quem é que está bater à porta?
- Eu ....eu, não.
- Fazes bem. É meia noite. Deve ser o ano novo a querer entrar. Como será, não sabemos? Por cautela, não se deve abrir a porta a gente desconhecida.

Disse isto, sorriu.
- Bom ano, Rico!
- Bom ano, avô!
- Agora vamos para a cama.

Fomos para a cama mas eu, que estava com tanto sono, estremunhei com o susto das pancadas na porta e, agora, fresco como uma alface não conseguia deixar de recordar o ar maroto do avô quando me perguntara e insistira se eu era capaz de ir abrir a porta.
Bati três vezes na madeira da cabeceira da minha cama e,
- Avô?, perguntei no meio da noite escura. 
- Han? O que é?
- Penso que deveria ir abrir a porta ao ano novo.
Deve ter sorrido, porque fez um compasso de espera até responder.
- Na! Não vale a pena. Afinal, com ou sem a porta aberta, ele já entrou. Ah! Ah! Ah! Bom ano Rico! 
- Bom ano, avô!

Monday, December 30, 2019

CLUBE DOS MATATUDO


-  É do kremeline? .... Ligava-me ao sr. Putine, faz favor. Diga-lhe que por ordem do Presidente do Catar desejo falar com ele.
- Sr. Putine? ... Sou o ministro das relações externas do Catar. 
- ...
-  Sr. Putine? ... Ah não? Pois, mas sua majestade, o Emir não pode vir.
-  ...
-  Sr. Putine? ... Então está bem. Diga ao sr. Putine que sua majestade Emir do Catar pretende fazer uma encomenda de, para já, uma dúzia de Avangardes... Está bem, eu espero.
- ...
- Para que quer o Catar uma dúzia de Avangardes? Para um campeonato mundial de tiro à lua ... Está bem eu espero.
- ...
- Posso explicar tudo bem explicado o que o sr. Putine quiser. No Catar somos como um livro aberto. ... Está bem, eu espero.
- ...
- É verdade que não somos uma potência nuclear, nem queremos ser. Mas também não somos uma potência no futebol e vamos receber o Campeonato Mundial de Futebol em 2022. Temos dinheiro, uma coisa que é sempre fundamental nestas organizações. Daí querermos aproveitar a oportunidade para antecipar esse importante evento mundial com a organização no próximo ano do primeiro campeonato mundial de tiro à lua ... Está bem, eu espero.
-...
- Participarão neste campeonato os membros efectivos do Clube dos Matatudo. ... Está bem, eu espero.
-...
- São membros efectivos do Clube dos Matatudo todos os que dispõem de arsenal nuclear capaz de destruir o planeta num abrir e fechar de olhos. ... Não, o Catar não pertence ao clube, só organiza o primeiro campeonato de tiro à lua....Está bem, eu espero.
- ...
- O objectivo deste campeonato é o de proporcionar aos seus membros a possibilidade de exercitarem o seu desporto favorito e já não existirem na Terra alvos que mereçam a honra de um tiro dos membros do clube.
- ...
- Tudo o que é caça grossa está praticamente extinta e se algum dos membros se distrai e dá um tiro num elefante, ou num tigre, ou num crocodilo cai-lhe em cima a opinião pública. De modo que, como o sr. Putine diz ter disponíveis uns hipersónicos Avangarde que podem alcançar a lua em meio dia, segundo cálculos do nosso Al-Goritmo, com controlo da trajectória em tempo real e fotografias das posições alcançadas, ocorreu-nos lançar esta ideia inquestionavelmente original e susceptível de grande sucesso. Só precisamos de, pelo menos, uma dúzia de Avangardes. ... Eu espero, sim.
-...
- Foguetões, já experimentámos, sim, mas são uma sensaboria, muito demorados e erráticos e o associado Matuto 1, o mais experimentado, atingiu com um foguetão, contra todas as regras do clube, o Mar da Tranquilidade. Com o agravante de, pelo caminho, quase ter atingido um satélite artificial que nos garante  o uso dos telemóveis, do gps, e de tantos outros electrónicos sem os quais as nossas vidas seriam desesperadas. Temos um código de ética e o sócio só não foi irradiado porque foi o fundador do clube e dispõe do maior arsenal de mísseis, mas não tem o Avangarde nem terá tão cedo. Se tivesse, já se sabe, o negócio seria dele... Espero, sim.
-... 
- Pois essa é também uma vantagem deste campeonato. Quanto mais tiros se mandarem para a lua menos cartuchos ficarão a ameaçar a Terra. Nós, no Catar, o que queremos é o bem do nosso planeta e das pessoas. Conhece outro modo melhor de dar aos sócios do clube a oportunidade para puxarem o gatilho? ... Está bem, eu espero.
-...
- Ainda bem que nos entendemos. Amanhã mesmo enviaremos a encomenda. Se o primeiro campeonato do mundo de tiro à lua for o sucesso que esperamos, avançaremos para o campeonato de tiro a Marte. E depois, sempre por aí fora. Só precisaremos, neste caso, que o Avangarde melhore ainda mais a sua perfomance.

Sunday, December 29, 2019

ENTRE O NATAL E O ANO NOVO


Leio no Expresso de ontem:


A Rússia diz ter desde esta sexta-feira no seu vasto arsenal de mísseis um que é bem mais potente do que todos os outros existentes no mundo. Vladimir Putin garante que o Avangard pode viajar até 27 vezes mais rápido do que a velocidade do som e chegar a qualquer ponto do planeta.”

Idêntica notícia foi transmitida, pelo menos, pela BBC News, pelo Washington Post e pela Aljazeera.
Aliás o Washington Post publicava na última semana do ano passado a informação de que a Rússia estava prestes a juntar ao seu arsenal atómico um míssil nuclear hipersónico. Putin anunciara que o primeiro ensaio tinha sido bem sucedido.
Não serão fake news.
E, no entanto, não tiveram o impacto na opinião pública que o lançamento do primeiro satélite artificial lançado em 4 de Outubro de 1957 pela, então, União Soviética, levado pelo foguetão Sputnik. Os norte-americanos reagiram com o seu primeiro satélite em 31 de Outubro de 1958, ganhando a corrida espacial com  a chegada à lua, com um voo tripulado, em 20 de Julho de 1969, há 50 anos.

É incontestável que a corrida espacial é entusiasmante; já a corrida aos armamentos nucleares uma ameaça tão apocalíptica parece que, por autodefesa do precário equilíbrio mental do mundo, é melhor que não se fale nisso. Com o apocalipse ao virar da esquina o que pode fazer o cidadão comum?
A ameaça de uma destruição maciça da espécie é, pelo menos, tão provável e mais iminente que a destruição do planeta pelas alterações climatéricas mas nenhuma outra Greta Thunberg (para citar a figura mais saliente dos protestos pela destruição da Terra) não suscita qualquer revolta popular global talvez porque, querem acreditar como uma fé inamovível,  o terror de um holocausto global continuará a conter aqueles que têm acesso aos comandos dos arsenais nucleares.
Mas se assim continuará a ser, se o equilíbrio do terror manterá os mísseis sossegados, por que razão continuam a crescer os arsenais e as negociações para a sua redução bloqueadas?
Peter Sellers parodiava em 1964 Dr. Strangelove, num filme de Stanley Kubrick, o desencadear de um ataque norte-americano à Rússia por um general enlouquecido. Como comédia, terminava bem.
Enquanto o mundo considerar que o senhor Putin, o senhor Trump, até o supremo líder Kim Jong-un, ou outros quaisquer que lhe sucedam não são mais do que comediantes da treta, talvez um dia a espécie humana se extinga a rebentar de riso.


Paroquialmente, colegas e amigos trocaram entre si anualmente copiadas mensagens de Boas Festas e Feliz Ano Novo. Até que alguém picou com intencional ironia no Orçamento de Estado para 2020 e, como rastilho, pegou fogo, brando, a uma discussão serôdia entre as virtudes visíveis do capitalismo e a ressurreição da boa nova comunista. Como esperável, ninguém arredou pé das suas convicções cristalizadas ou da sua fé impenitente.
Curioso é que, também neste caso de cada qual olhar para o seu umbigo, ninguém reparou que o senhor Xi Jinping é líder até querer de uma ideologia por estudar: o capitalismo comunista ou, para quem preferir, o comunismo capitalista.



Friday, December 20, 2019

FRONTALIDADE E FALTA DE VERGONHA


“A intenção do Partido Democrata de adiar o arranque do julgamento — que era dado como certo para o início de Janeiro — começou a ser discutida depois de alguns constitucionalistas terem escrito artigos de opinião nos jornais a defenderem essa hipótese. Mas ganhou um argumento de peso quando o líder da maioria do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell disse, com todas as letras, que não seria um jurado imparcial no julgamento do Presidente Donald Trump”- c/p aqui

Wednesday, December 11, 2019

EVOLUÇÃO


"... Uma pintura rupestre com pelo menos 44 mil anos encontrada numa gruta na ilha de Celebes, na Indonésia, é a pintura figurativa mais antiga que se conhece. E não só: é também a representação mais antiga de uma cena de caça e a primeira em que se mistura o corpo de humanos com o de animais. Estas são as conclusões de uma equipa de cientistas da Austrália e da Indonésia num artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Nature. Há pouco mais de um ano a mesma equipa tinha anunciado que a pintura figurativa tinha à volta de 40 mil anos e era da ilha de Bornéu ..." - cf. aqui


Compare-se este encontro com o entusiasmo despertado pela colagem com fita gomada de uma banana esta semana numa exposição em Miami.

Tanto que se tornou viral.





Pedra encontrada na África do Sul tem o desenho humano mais antigo 



Pedra descoberta na caverna de Blombos, no litoral da África do Sul, tem linhas em pigmento vermelho que foram desenhadas há cerca de 73 mil anos 

Linhas vermelhas na lasca de pedra formam o desenho mais antigo já encontrado

Uma pequena lasca de pedra marcada por linhas entrecruzadas vermelhas de pigmento ocre cerca de 73 mil anos atrás, encontrada em uma caverna do litoral sul da África do Sul, representa o que arqueólogos classificaram nesta quarta-feira (12) como o exemplo mais antigo que se conhece de um desenho humano.
O desenho abstrato, que lembra vagamente um jogo da velha, foi feito por caçadores-coletores que viveram periodicamente na Caverna Blombos, que tem vista para o Oceano Índico e se localiza cerca de 300 quilômetros a leste da Cidade do Cabo, disseram os pesquisadores. Ele é ao menos 30 mil anos mais velho do que os desenhos mais antigos conhecidos.
Embora pareça rudimentar, o fato de ele ter sido esboçado tanto tempo atrás é significativo, sugerindo a existência de capacidades cognitivas modernas em nossa espécie, o Homo sapiens, durante uma época conhecida como Idade da Pedra Média, segundo os pesquisadores.
O desenho de linhas cruzadas feito com ocre, um pigmento usado por nossa espécie há ao menos 285 mil anos, consiste de uma série de seis linhas retas cruzadas por três linhas ligeiramente curvadas. A lasca de pedra de textura áspera mede cerca de 3,86 centímetros de comprimento por 1,28 centímetro de largura.
"O término abrupto de todas as linhas nas bordas do fragmento indica que o desenho original se estendia sobre uma superfície mais larga. O desenho provavelmente era mais complexo e estruturado em sua totalidade do que nesta forma truncada", disse o arqueólogo Christopher Henshilwood, da Universidade de Bergen, na Noruega, e da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, que conduziu a pesquisa publicada no periódico científico Nature.
"Hesitaríamos em chamá-lo de arte. Com certeza é um desenho abstrato, quase certamente tinha algum significado para seu criador e provavelmente formava parte do sistema simbólico comum entendido por outras pessoas do grupo", acrescentou Henshilwood.
Entre os outros artefatos da Caverna Blombos de idade semelhante estão peças de ocre gravadas com desenhos abstratos que lembram aquele desenhado na pedra e contas cobertas de ocre. Datados de 100 mil anos atrás, os artefatos incluem uma tinta vermelha à base de ocre.
"Todas estas descobertas demonstram que o Homo sapiens primitivo do sul do Cabo usou técnicas diferentes para produzir desenhos semelhantes em meios diferentes", disse Henshilwood.
O Homo sapiens surgiu mais de 315 mil anos atrás na África, migrando mais tarde para outras partes do mundo.
Copyright © Thomson Reuters.

Tuesday, December 10, 2019

BANANA POR 120 MIL DÓLARES


Nunca tinha ouvido o nome dele, até ontem: Maurizio Catellan.
Deste artista lia-se no Público "Artista "com fome" comeu banana de 120 mil dólares de Marizio Catellan. Mais uma breve exploração na internet e constatei que a notícia já tinha dado a volta ao mundo vezes que ninguém será capaz de contar.
Afinal o Maurizio Catellan, que eu não conhecia, já anda a expor as suas criações em reputados museus desde, pelo menos, meados da década de 90.

Entre outras: 

e, agora, Comedian com banana.


Mais surpreendente do que a comédia da banana que vale 120 mil dólares, que o Maurizio colou com fita gomada numa parede de uma exposição em Miami e outro artista, norte-americano papou, para excitação de multidões de admiradores destas coisas, é a história de América, contada aqui.
 
Resumidamente,

Catellan criou a sanita de ouro em 2016 para o Guggenheim Museum de Nova Iorque e foi instalada
numa das casas de banho do museu. Segundo informações dos serviços de guarda colocados para segurança da peça, (feita com 103 quilos de ouro, que em Setembro deste ano valia 4 milhões de dólares, como obra de arte poderá valer seis milhões), mais de 100 000 visitantes esperaram na fila para ver América.
Em Setembro de 2017, da Casa Branca solicitaram ao museu que emprestasse Landscape With Snow de Van Gogh para um dos quartos privados de Donald Trump. O curador do museu declinou o pedido mas ofereceu o empréstimo da sanita de ouro, América.
Da Casa Branca não veio resposta à proposta do museu.

Mas há mais sobre a América para quem quiser continuar a ler.

Assim vai o mundo. O espectáculo da  arte é um espelho dele.

Sunday, December 08, 2019

BEM AVENTURADOS SÃO OS PARDAIS



Hum!!!!!, .... comprimidos??? Senti pairar no ar um som qualquer, ... comprimidos ..., será comprimidos? E, se for ou se não for, que me importam os sons, que me importa a luz, que me importa seja que diabo for? Não sei se durmo se estou acordado, agarrou-se-me esta dúvida ao pêlo desde que ensaiei fugir e borreguei no momento decisivo. A partir daquela tarde, apoderou-se de mim esta indolência que me adormece o corpo todo, já não distingo, não me interessa distinguir, o dia da noite, o calor do frio, enfio o focinho entre as mãos, enrolo-me na manta, e atravesso o tempo à espera de nada. Estou velho, velho e doente. Que idade tem ele? Quinze, disse ela há dias, mas faz mal as contas para disfarçar o meu envelhecimento acelerado nos últimos tempos. Sei que sou velho mas não tanto quanto pareço. Talvez tenha dez, quanto muito onze. Nos últimos três anos envelheci uns seis, há muito que não vejo, não quero ver, o reflexo  da minha imagem, se acaso passo por onde me podia ver. Que é feito do meu pêlo preto,  laranja e branco, sedoso, orelhas com madeixas fartas, mescladas de laranja e branco, pendentes, que se arrebitavam ao menor sinal de sentido? A última vez que me vi na água do lago não me reconheci. Aquele não era eu, e agora, certamente, ainda menos que nunca. Sonho repetidamente os mesmos sonhos, sonhando que são sonhos os azares em que me envolveram. Os comprimidos, os comprimidos, ... sonho ou pressinto que a velha os perdeu outra vez? Uma vez, quando contei à Cherry que ... não sei se foi à Cherry se foi à Gipsy, deve ter sido à Gipsy, nunca tive grandes conversas com a Cherry, a Cherry era pouco dada a conversas e, por outro lado, há muito tempo que não vejo a Cherry ... quando contei à Gipsy que andava meio zonzo, mas feliz, porque engolira uns comprimidos da velha, ela, que ouve e regista todas as conversas que capta por onde passa, avisou-me que os comprimidos podem dar-nos uma fólega aos desesperos mas, a pouco e pouco, vão arruinando a nossa memória. Tanto melhor, pensei eu, pior que as situações desesperadas são as recordações que não se apagam. Que me vale agora recordar os tempos em que fui feliz, porque era novo e livre, farejava para comer e namorar, e me trouxeram para aqui onde não tenho préstimo nem amigos? Há uns dois meses que não vejo a Gipsy, a Gipsy é quem me ia dando algumas dicas do que ouvia em casa ou no caminho por onde a levavam a passear, além de que há televisão lá em casa, a primeira vez que ela me falou em televisão e explicou do que se tratava andei uns tempos desconfiado que a Gipsy ou acreditava em bruxas ou no céu dos gambozinos. Mas pus-me atento, e confirmei que sim, que era verdade, aqui e ali, nos caminhos por onde passava vi de relance umas caixas e dessas caixas saía gente a dizer coisas. A Gipsy é, quero dizer era, a minha informadora, sem ela, o mundo que eu imaginava pelo que via e ouvia não tinha sentido, era um caminho repetido de banalidades e pequenas intrigas de amigas e amigos; com as informações da Gipsy, e aqui tenho de esclarecer que Gipsy é codinome, eu nunca denunciaria as minhas fontes de informação, consegui perceber o que se passara no interior desta casa há três meses onde passei a vegetar há uns dez anos. Foi a Gipsy quem me explicou o estranho caso que eu desconhecia, que tinha saltado para os jornais e televisões, e tudo se tinha passado a alguns metros dos meus bigodes sem que os meus sensores olfactivos e auditivos se tivessem activado. Culpas ou vantagens da sobredose de comprimidos da velha, que engoli há tempos, da última vez que ela passou por cá, o certo é que, nos momentos de lucidez que perpassam por mim para me afligir de vez em quando, consegui reunir as peças de um puzzle, que é o mundo em que vivo, se ainda vivo e não sonho que sonho uma realidade surreal num outro mundo a girar em ondas ultramagnéticas de quinta dimensão. 
Contou-me a Gipsy, não querendo ela acreditar que, estando eu dentro da casa quase o dia inteiro, não tivesse percebido que polícias tinham vindo cá a casa e levado as gémeas com eles. É estranho, Gipsy, é muito estranho, mas pode ter uma explicação plausível. Estou velho, como sabes, e vivo sem saber se vivo, os meus sentidos estão frouxos, provavelmente estão tão quase mortos que já não funcionam como deviam, não ouvi, não vi, nenhum odor estranho entrou no raio de acção do meu faro debilitado. Mas posso imaginar que as gémeas não tenham sido arrastadas, à noite, de casa, que a mãe tenha sido surpreendida, durante um passeio de rotina com as filhas, e convidada a acompanhar os polícias destacados para conduzir as crianças para local fora da presença obecessivamente absorvente da mãe. Se assim foi, não ouvi, não vi, não me apercebi de nenhum modo o que se passou, até porque tudo se terá desenrolado longe da minha, agora débil, capacidade de alcance, mas parece-me bem. Parece-me bem que as tenham retirado de um ambiente de subjugação a excentricidades que, só não via quem não queria ver, estavam a transtornar a personalidade daquelas crianças, tornando-as criaturas de um mundo absurdo e, portanto, mentalmente suicida. Mas é revoltante que, só passados três anos,  tenham decidido libertar as crianças. Não sabiam os médicos pediatras, os psicólogos, os   psiquiatras, os juízes, até os vizinhos, que a mãe sofre de uma maluqueira qualquer?  Sabiam. Sabiam e sabiam isso há muito tempo. Eu, que nessa altura ainda tinha o ouvido afinado, escutava a toda a hora, desde o princípio do isolamento das crianças, os impropérios da mãe sanguessuga contra tudo e contra todos porque ela e só ela sabia o que era o melhor para as suas filhas, e, em circuito fechado, quem melhor sabia o que convinha às crianças eram elas mesmas. Apoiava-a insistentemente na obstinação patológica de isolamento a velha dos comprimidos através de conversas telefónicas que quando pareciam que iam terminar continuavam até parecerem que iam terminar outra vez, mas não.
É ela culpada pelos rombos psicológicos que infligiu nas crianças durante um período tão longo? Como estou aqui amarrado a este capacho por incapacidade de deslocação interna e não tenho saído diariamente mais do que o mínimo tempo necessário para levantar a perna ou encolher a coluna nos sítios, muito próximos, do costume, como e durmo e, quando não durmo nem sonho, penso. O pensamento não pára, pensamento parado só a dormir de olhos abertos, e isso não consigo. De modo que desde há uns tempos a esta parte, penso que as culpas, sejam elas de quem forem, andam geralmente mal atribuídas. O doido tem culpa de ser doido? E, sendo doido, é culpado dos actos criminosos que possa cometer? Disse-me a Gipsy que ouviu lá em casa que para emendar os distúrbios ou mal formações do criador do universo e viver em sociedade a espécie humana inventou regras e a polícia, mas pelo que se vê a cada passo, falha mais vezes que acerta. Já agora, a propósito de culpas e culpados, diz-me Gipsy se o feio tem culpa de ser feio? E se o bonito, tem culpa de ser bonito? Pois não. Eu nasci bonito, agora estou velho já não sou bonito, e ninguém, com justiça justa, me pode culpar de ter nascido bonito e de, com a idade e a prisão a que fui condenado por nenhuma lei justa, ter ficado feio. Por que nasci bonito? Por um acaso para o qual não mexi uma palha. Por que me tornei feio? Porque não há modo de travar a nossa viagem pelo tempo nem evitar as consequências, boas ou ruins, que encontramos na rota. 
Por ser bonito, toda a gente admirava o meu porte, o meu pelo, o brilho das minhas cores, a vivacidade inteligente dos meus olhos, encantava-se, e eu e meus irmãos, que também não eram feios, fomos vendidos e trazidos do calor e da maresia, onde brincávamos, corríamos, lutávamos, roubava-mos até, porque era preciso, para estas paragens brancas e tanto tempo frias, compulsivamente parados como esfinges à espera de raros momentos de desentorpecimento das coxas. O Pimpas, da nossa idade, de bonito só tinha o nome, de resto era feio, tão feio que ninguém o quis, lá ficou, a divertir-se na praia, a espantar as gaivotas com corridas de alta velocidade, a dormir à sombra se o calor aperta, a espojar-se na areia da praia a regalar-se com o calor quando o sol anda mais baixo, a fugir quando rouba para comer e a namorar a sério. Nunca mais vi o Pimpas, não sei sequer se ainda é vivo. De qualquer modo, o Pimpas, pelas minhas contas deve ter, até agora, feito pelo menos uns duzentos filhos que lhe deram não menos que quatro mil netos, e perco-me nas contas se quero contar-lhe os bisnetos, trinetos, tetranetos, e por aí fora, com o sangue e as fuças do Pimpas, que ninguém compra, e assim detêm o privilégio monopolista da reprodução exponencial da sua linhagem. Feia? É o que dizem os da espécie humana, da mesma espécie dos que me compraram para me enclausurarem e condenarem a morrer neste capacho, por ter sido por eles considerado lindo. E, com essa irrazoabilidade, cortaram-me cerce a possibilidade de povoar as redondezas de filhos, netos, trinetos, tetranetos, bonitos como eu. E, como eu, desaparecem os pintassilgos e todas as aves canoras e vistosas condenadas a cantar engaioladas, os animais da selva abatidos pelo imbecil mas irreprimivel vício de posse congénito na espécie humana. Às vezes penso que sinto uma enorme inveja do Pimpas mas logo me pergunto se é inveja este querer ter nascido feio como ele. Quando há já algum tempo disse isto à Gipsy ela deu uma gargalhada, e, disse, sempre que nos encontramos vens com a mesma ladainha. 
É verdade que me repito mais do que devia se não me atormentassem as recordações daquilo que vi e que não posso testemunhar senão à Gipsy. Inutilmente, bem sei, porque vivemos em mundos separados dos humanos que nos acorrentam sem outra razão para além do instinto de posse da sua espécie. Eu não me sinto acorrentada, respondeu-me a Gipsy. Livre? Como podes ser livre se tens dono? Aliás, dois, ou quatro se contarmos com os dois filhos do casal. Não tenho dono nem donos, tenho acompanhantes! Desta vez, a gargalhada foi minha. E a trela? Decoração, respondeu-me ela secamente perante a evidência da sua real condição, a conversa ficou por ali, e eu passei a ruminar as minhas conjecturas intermináveis, que abandonado aqui no capacho sem ouvinte nem acompanhante, subjugado a uma tirania de isolamento infame que ninguém quer ver. E desconfortável por ter confrontado a Gipsy com a resposta do cão vadio ao cão com trela na fábula antiga que ela há algum tempo me contou.
Hum! ... afinal para onde levaram as gémeas? Não sei. E como há uns dois meses que não vejo a Gipsy porque nem eu saio daqui porque estou preso e a Gipsy não vem até cá porque tem trela, a minha ignorância é total e, como precisa de alimento, alimenta-se de hipóteses e suposições. O telefone toca todo o dia, é, suponho, a velha dos comprimidos, do que falam não sei porque, já disse, agora ouço muito mal, e porque a doida suspeita de tudo e todos, desconfia talvez que sou espião infiltrado e refugia-se no andar de cima quando o telefone toca. 
Houve tempo em que as ideias se me atropelavam para a saída, agora, talvez porque se tenha partido a mola do tambor das recordações, não vislumbro hipótese de voltar a ver as gémeas, e a minha vida ficou sem qualquer sentido. Por que me pôs o criador no mundo e, ainda por cima, bonito para ser comprado e agora preso, prematuramente cego, surdo e mudo por falta de exercício e atormentado pela maluqueira de uma carcereira perversa, talvez  sem culpa? Recuo na memória e recordo-me em imagens que vêm à superfície continuamente dos tempos do país do sol e do mar, das tropelias de putos a aprender a safarem-se para sobreviverem, quantos andarão ainda por lá? Talvez o Pimpas, se não o Pimpas certamente vários descendentes dele. Mas é  pelas gémeas que o meu coração suporta as minhas angústias. Por que me abandonaram aqui? Porque já não presto, porque já não corro? Porque já não vou e volto vezes sem fim quando saíamos a passear e éramos cinco numa família feliz? Ou já terei morrido e o que de mim sobra a desfazer-se é uma nuvem onde o criador guarda os registos das suas criaturas?



  

Monday, December 02, 2019

MISSA


MISSA, de Leonard Bernstein,
Ontem e anteontem na FUNDAÇÃO GULBENKIAN


Leonard Bernstein

Admirável.
A música, e os poemas.
Para quem possa estar interessado em compreender a complexa mensagem que Bernstein procurou transmitir com esta obra, numa época em que a guerra no Vietname era um problema central da política norte-americana, pode ler, por exemplo, aqui essa intenção que o compositor exaltou com a sua música, heterodoxa para a época.

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PURGATÓRIO

Esteve no D. Maria II.
Mais uma excelente encenação de "O Bando".

Com um pequeno senão: O facto de não serem projectadas na tela lateral as palavras do coro para melhor entendimento dos ouvidos menos afinados. Na mesma tela onde projectavam imagens da actualidade, dispensáveis porque a obra de Dante é sempre actual.


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Friday, November 15, 2019

IN VINO DA VINCI

Old wine in new bottles Leonardo da Vinci’s personal vineyard has been re-created

And the wine is ready to drink

Nov 14th 2019

LEONARDO DA VINCI is remembered as many things—artist, inventor, scientist. “Boozer”, however, is rarely included on the archetypal polymath’s astonishing CV. That might change now that scientists have resurrected da Vinci’s own vineyard.
Da Vinci was a great lover of wine, “the divine liquor of the grape”, as he called it. So much so that Ludivoco Sforza, the Duke of Milan, offered him a vineyard as payment for “The Last Supper”, which he painted for the refectory of the Convent of Santa Maria delle Grazie in Milan in 1498. It survived for centuries after his death, until it was destroyed by a fire started by Allied bombs in 1943. With it was lost any hope of seeking inspiration from the same liquid source that once fuelled the painter of “Mona Lisa” and the inventor of the helicopter.

That is, until 2007, when Luca Maroni, an oenologist, decided to excavate the site in the hope that some vine-roots had survived the fire. He recruited Attilio Scienza, an expert on viniculture, and Serena Imazio, a geneticist, and they began to dig. Finding some roots intact, the team subjected them to extensive genetic testing at the Università degli Studi in Milan. In 2009 they identified da Vinci’s grapes as Malvasia di Candia Aromatica, a variety that is still grown in Italy today.
That discovery set off a painstaking recreation of da Vinci’s vineyard. Dr Imazio scoured Italy to find grapes similar to the DNA profile of the roots, bringing them back to Milan and copying the original layout of the vineyard as exactly as possible. Located in the gardens of the Casa degli Atellani, just two minutes’ walk from “The Last Supper”, it has been open to visitors since 2015.
The vineyard produced its first harvest in September 2018. Now, after a long wait, da Vinci’s wine is ready to drink. A first 330 bottles, based on a design found in da Vinci’s Codex Windsor, will be auctioned later this year. For those not lucky enough to grab a bottle, the vineyards of the nearby Castello di Luzzano, also thought to have been the property of the Duke of Milan, produce a wine made from the same type of grape and inspired by da Vinci. You can enjoy a glass after a pleasant stroll through his vineyard. Light and floral, you can almost taste in it a hint of Leonardo’s renaissance.

This article appeared in the Europe section of the print edition under the headline "Old wine in new bottles"

c/p Economist