Sunday, February 10, 2019

TUNISINOS ANOS 90






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TIREM-ME DAQUI, POR FAVOR


Escondidos os comprimidos, deu-me uma vontade estranha de voltar a dormir. Nunca tal me tinha acontecido, quando o sol nasce desperta-me deste nem durmo nem estou acordado, o corpo pede-me a higiene matinal, e enquanto a louva-a-deus não baixa do piso de cima com as crianças, contorço-me no capacho, depois que chegam levanto-me a apertar, a apertar, até que sua excelência se digne colocar-me a coleira e me leve ao sítio do costume. Já tinha contado isto, não tinha? Pois tinha, o que não tinha contado foi o que me aconteceu depois.
Dizia eu que os comprimidos me deram uma sorna que nem abrir olho me apetecia, se os abri foi para que não ficassem os comprimidos à vista das crianças e fossem estas contar à velha onde ela os tinha metido. Eu não sabia o que me ia acontecer quando fosse apanhado naquela modorra em capacho encharcado, mas, pelo sim pelo não, talvez tivesse outra oportunidade de me entregar a novas delícias de um sono profundo e sonhos de chorar por mais, não sei porque os toma a velha, a mim tornaram menos insuportável o mundo cão - curiosa expressão, estaria o seu autor a pensar em mim? - para onde, não sei quem nem porquê, me atirou, de modo que, escondidos os comprimidos, ao meu alcance, dei meia volta no capacho e deixei-me embalar sem travões outra vez pela soneira. Tanto que nem dei pela descida da louva-a-deus e das crianças, só abri um olho, que logo se fechou sem eu mandar, quando pressenti um espanto de boca aberta a espetar-me um olhar esgazeado. A partir daqui não vi nem ouvi mais nada, já disse que se me abriu um olho por conta própria, que assim como se abriu se fechou, depois entrei em modo telepático, ou talvez tenha voltado a sonhar, o certo é que só dei conta que estava acordado no consultório do médico onde levo as vacinas, vim a saber depois que a louva-a-deus, quando me viu ainda a dormir aquelas horas, o capacho encharcado, e não acordar com sacudidelas que me deu no corpo, não sabia se eu estava morto se vivo, telefonara ao doutor a pedir instruções, o clínico não acertou diagnóstico à distância com informações vagas, disse que só vendo podia pronunciar-se, e aí fomos nós a caminho do consultório, mãe e filhas à frente, eu na gaiola, atrás, aproveitei para dar o salto e voltar para a minha terra quente e cheirosa todo o ano, cheia de sol, de cor, de maresia. Dose dupla. Quando me viram de novo junto deles, perguntaram-me os meus irmãos, os meus primos, os meus sobrinhos, já sou tio, não sabia mas já sou, os meus pais, claro, os meus pais não podiam faltar, nem os meus tios, nem os amigos, toda a vagabundagem do porto queria saber se, desta vez, tinha vindo para ficar. Voltaram a perguntar-me se lá no sítio para onde me tinham levado as coisas eram tão boas como se contava ali, paparoca fina e a horas, assistência médica garantida, ambiente aquecido no inverno e refrigerado no verão, e eu ouvia-os e sorria, não queria que lamentassem a minha sorte de emigrante forçado e angustiado, tudo o que eles ouviam dizer era verdade mas não trocava nada daquilo por aquele sítio, o nosso sítio, e sem mas nem mas não lhes dizia porquê.
Estava eu excitadíssimo com a perspectiva do retorno a casa quando, vá lá saber-se porquê, ouço o médico perguntar à louva-a-deus, enquanto tentava arreganhar-me um olho, se a urina no capacho tinha coloração normal ou apresentava vestígios de sangue.
Ela não sabia, a urina tinha-se ensopado no capacho, se havia vestígios de sangue não eram evidentes, até porque estando eu deitado em cima da sopa, se houvesse pinta de sangue teria certamente secado no corpo. Mirou-me o médico o pêlo enquanto me apalpava a barriga, e mais abaixo, e depois disse que, pela apalpação externa e pelas aparências, não me encontrava nenhuma anormalidade, teria que recorrer a outros procedimentos, apalpação interna, para isso precisava bloquear-me os movimentos,  ela devia manter-se junto para me sossegar mas não era recomendável que as crianças presenciassem o acto.
- Por quê?, admirou-se a louva-a-deus enquanto dizia de si para si, mas que ideia mais estúpida!
- O que tenho a fazer provoca algum sofrimento no paciente, que vai estrebuchar, e isso  ferirá, creio eu, a sensibilidade das suas meninas ...
- Hum! Não pode ser. Nem elas nem eu aceitamos, seja em que circunstância for, separar-nos!
- Nunca?
- Nunca.
- Mas ... as meninas não frequentam a escola?
- Frequentam em "home schooling"
- Em casa...
- Em casa. Nunca me separarei das minhas filhas ...
- Já percebi. Mas eu não falei em separação. Há aqui ao lado uma pequena sala onde as crianças podem entreter-se com jogos ou com leitura enquanto os adultos acompanham a observação clínica dos pacientes.
- Impossível. Não me separo delas nem por um instante que seja. Elas podem assistir!
- Poder, podem, mas eu não gostaria de violentar com a minha actuação a sensibilidade das crianças.
(Nem a privacidade dos pacientes ..., disse eu mas nem o vet nem a louva-a-deus ouviram. Eles nem a eles se sabem ouvir)
Desistimos, por agora, de procedimentos complementares, vamos fazer umas análises ao sangue, às fezes e às urinas, e depois veremos como devemos proceder. Aliás suspeito que o paciente sofre de melancolia.
- Melancolia?
- Sim, melancolia, apatia, tristeza profunda. Talvez devesse consultar um psiquiatra ou um psicólogo.
- Psiquiatra ou psicólogo?
- Talvez melhor começar por um psicólogo.
- Mas há psiquiatria e psicologia veterinárias?
- Há, há. Acha estranho?
- Um pouco, e tenho uma péssima impressão deles. 
- Dos psiquiatras?
- Para mim psicólogos e psiquiatras são classes de incompetentes.
- Mas não ignora, certamente, que há casos de animais que chegam a desistir de viver se desaparece o seu tutor. Há milhares de casos impressionantes de dedicação dos animais ou gratidão pelas pessoas que os acarinham. Eles têm sentimentos, e os sentimentos podem sofrer perturbações. Vejo aqui na ficha clínica que o paciente tem dez anos... Já não é novo.
- Mas antes nunca ele demonstrou qualquer sinal de apatia, pelo contrário sempre demonstrou grande vivacidade e motivação para sair a passear. Hoje, pela primeira vez, estava a dormir quando descemos do primeiro andar para o rés-do-chão. E, mais preocupante que isso, só acordou aqui. ... 
... O doutor acredita na reencarnação?
- Se eu acredito em quê?
- Na reencarnação, ... em vidas sucessivas?
- Francamente, não sei do que fala. Disse-me que nunca se separa das suas filhas ...
- Nunca.
- Disse-me também que quando desce sempre encontrou o paciente muito vivaz...
- Sim. Com grande vivacidade, foi o que eu disse.
- Dá no mesmo. Mas será vivacidade ou ansiedade que caracteriza o comportamento dele? A que horas sai com ele para o passeio da noite?
- Deitamos-nos cedo, nunca depois das nove horas da noite.
- E de manhã a que horas o levam para o passeio matinal?
- Cerca das nove da manhã.
(É arguto este vet, daria um bom detective)
- Podemos, então, concluir que o paciente, que já não é jovem, tem de suportar um período de doze horas sem urinar ...
- Foi sempre assim, desde que está connosco, está habituado.
(É mentira! Quando a família estava unida, o homem da casa levava-me a fazer o xixi da manhã antes de ir trabalhar, cerca das seis e meia, e cerca das onze da noite para o passeio nocturno com mijinha a essa hora. Contas feitas, tinha um intervalo de sete horas e meia. Depois deu-se algum transtorno na cabeça da louva-a-deus e o homem, um benza-o-deus, saiu de casa saturado de tanta impertinência da mulher, entregando-lhe tudo por amor às filhas, eu incluído.)
- Até esta manhã, pelo que me disse.
- Sim, até esta manhã.
- Penso que o paciente, por razões de idade e prolongado período de acumulação de fezes e urinas, senão também por outras que averiguaremos mais tarde quando conhecermos os resultados, observou pontual incontinência urinária que pode, a partir de agora, passar a ser regra se não lhe reduzir o período de contenção. Vive em apartamento, suponho?
- Habito uma vivenda.
- Tem jardim?
- Sim temos um pequeno espaço.
- Cem metros quadrados...
- Um pouco mais.
- Cercado?
- Sim, cercado.
- Por que não deixa o paciente no exterior, instalado numa cabine confortável, de modo que possa sair e recolher quando ele quiser?
(Ora aqui temos um vet à maneira. Se me vejo nas traseiras dou o salto sem olhar para trás. Se o chip bufar logo se verá)
- Hum! É difícil, as crianças estão muito habituadas a vê-lo na sala.
(É mentira, passo os dias no capacho, há muito tempo que ninguém repara em mim. Se, por acaso raro, entra alguém e eu me preparo para os ir receber, como manda a boa educação, logo os visitantes recebem aviso para nada de festas no bicho porque não o queremos excitado. Um dia, há mais de um ano, estiveram cá em casa dois jovens, dei conta disso no meu primeiro relatório, e até esses foram instruídos a não me tocar. Foi preciso um deles apanhar  a louva-a-deus de costas para eu receber uns miminhos.
Nunca mais os vi. Por onde andarão eles a estas horas? Por que se evaporam tão rapidamente, como sonhos bons, os raros momentos de felicidade à minha volta?)
- Quer dizer, se bem percebo, que o paciente passa os dias a bocejar de tédio num canto da sala em cima de um capacho ...
(Bruxo!)
- Saímos de manhã para uma volta nas proximidades...
- Uma hora?
- Depende do estado do tempo. Podem ser duas, pode ser meia hora.
- Compreendo, o paciente dissolve-se em tédio.
- Dissolve-se?
- Metaforicamente, claro. Concretamente, esgota-se pelo esforço de uma imobilização forçada.
(Subscrevo)
Disse que saem os quatro ...
- Os quatro? Quatro, como?
- A senhora, as duas crianças e o paciente. O paciente sai convosco para esse passeio breve?
- Sai, sai. Claro que sai.
- Encontra-se nesse passeio com quantos indivíduos da espécie dele?
- Não percebo.
- Presumo que durante o passeio a senhora se cruze com outros passeantes e, nessas oportunidades, o paciente confraternize com outros indivíduos da sua espécie.
- Sim, sim, acontece.
- Com que frequência?
- Posso saber onde quer chegar?
- Avaliar o isolamento forçado do bicho. É por essa razão que lhe pergunto quantas vezes por dia, em média, tem o paciente oportunidade de confraternizar, conviver, com outros, amigos antigos ou recentes.
- Duas, três, por aí.
(Mentira. Agora só fala com uma amiga quando a amiga aparece, o que é raro, com um cachorro, um lulu de trazer ao colo)
- Durante quanto tempo?
- É assim tão importante entrar nesses detalhes?
- É importante perceber em que medida o isolamento em casa é, de algum modo, compensado ou não pela convivência no exterior. O paciente pode, para além do sofrimento de contenção urinária forçada estar em situação de prolongada carência de afectos.
- Não, não pode ser.
(Pode, pode!)
- Se bem percebi o seu universo de relacionamento é muito limitado e essa limitação atinge o paciente.  
- Limitado? Porquê limitado?
- Disse-me que sai de casa uma vez por dia, durante uma, duas horas, meia hora se o tempo não está convidativo, presumo que também sairá para fazer compras, mas a quase totalidade do seu tempo vive-o no espaço da sua casa  com as suas filhas, e o paciente dorme e boceja. É isso?
- ...
- Bom, temos de avançar na preparação das análises. Do sangue, vou de imediato fazer uma colheita. Preciso que agarre, bem agarrado, o paciente, é só uma pequena picada mas ele pode assustar-se e tentar libertar-se impedindo-me de fazer a colheita.
(Vá lá vet, prometo portar-me bem, o efeito dos comprimidos é prolongado... Portei-me bem, hem?)
A recolha das fezes não coloca problemas e para as de urinas tem aqui um folheto explicativo de como deve proceder.
(Fico curioso)
Traga-me as análises e eu mesmo me encarregarei de as fazer chegar ao laboratório, a menos que a senhora possa passar por lá. A morada está no fim do folheto explicativo. Voltamos a ver o paciente de hoje a uma semana. Convém-lhe?
- Não me convém nada, vou ver o que posso fazer. Depois aviso.
- Devo avançar com as análises ao sangue? Não posso reter aqui a recolha feita mais do que durante umas escassas duas, três horas.
- Não sei.
- Não sabe? Quem sabe?
- Não sei. Quanto devo?
- Pague por favor na recepção.

Na recepção pagou a consulta e, manifestamente contrariada, as análises ao sangue.
E aqui vamos nós de volta ao presídio. Continuo com uma soneira ... Talvez venha novamente ao meu encontro a liberdade de sonhar.

Não sei se a sonhar se por telepatia ouço o que pensa a louva-a-deus a caminho de casa, as observações  do vet deixaram-na de rastos. Ou o homem é doido ou quer dar com ela em doida. Período muito prolongado de  contenção urinária ...
(sim, sim, e não sabe ele do sofrimento de imposição de espera pelo almoço colocado à minha frente, a pouco mais de um metro de distância do meu nariz, enquanto não recebo ordens para avançar),
... falta de convivência, o que é isto? quem se julga ele para definir o que é melhor para o equilíbrio psíquico, a confusão dos encontros ou a serenidade da contemplação em sossego dentro de portas? Melancolia ... Psicólogos ... Psiquiatras, aposto que este indivíduo, apesar de veterinário, nunca teve animais de companhia. Devia ter-lhe perguntado, mas não perde pela demora, pergunto na próxima. Na próxima? Mas por que há-de haver próxima, o paciente está velho, ameaça-me passar a molhar a partir de agora, o capacho todos os dias, em consultas, análises e o mais que se verá, ... não tenho dinheiro para tanto... Tudo contado, parece-me que a melhor saída é mesmo comprar uma cabine e deixá-lo à solta no jardim.
(Bravo!)
E talvez ele decida dar o salto e ir por aí fora por conta própria.
(Hum!Hum! Não sei se isto é sonho, telepatia ou desejo enorme)

Chegados a casa, o capacho foi metido no contentor do lixo, agora deito-me numa manta velha, muito usada em tempos por cima da relva quando havia idas até ao lago, mas aceitável. Já eram horas de almoço e, surpresa das surpresas, recebi ordens para avançar logo que a tigela foi colocada à minha frente. Mas não me apetece comer.
Vieram, mãe e filhas, tentar dar-me comida na boca! Mas não comi. Não por birra, que é mais fraca que a fome, mas porque me sentia enjoado, todas drogas têm efeitos colaterais, ouvi um dia o Urs dizer isso a um amigo, na altura não percebi, agora creio que sei o que é.
- O que tem ele, mãe?, perguntou a filha mais nova
- Tem melancolia, respondeu a filha mais velha.
- O que é melancolia?, insistiu a mais nova.
- Não sei, precisa de ir ao psiquiatra.
- E depois?
- Depois fica bom.
Não fui ao psiquiatra mas voltei ao veterinário. Devo ter lambido mais comprimidos que a conta porque no outro dia de manhã só não acordei molhado na manta porque a louva-a-deus desceu muito mais cedo que o costume, abriu-me a porta, deixou-me cá fora, e voltou para cima.
Com o ar fresco da manhã e o cheiro da terra, da erva, de tudo à volta, fiquei mais inebriado do que com a toma dos comprimidos na noite anterior e que, entretanto, já deviam esgotado o efeito. Alcei a perna em sítio que não era o meu, necessidades satisfeitas por agora, dei uma volta à vedação a ver se havia saída. Não havia, a única possibilidade de sair dali era saltar por cima da rede. Três tentativas, três insucessos e três esfoladelas no lombo.
O preço da liberdade é sempre elevado, ouvi o Urs dizer um dia a outro amigo, tenho de contar com isso para não desistir agora que lhe senti os custos mas também as vantagens de me soltar da coleira. Sentei-me junto à porta a aguardar que me mandassem entrar, o frio começou a arrefecer-me o corpo habituado ao ambiente aquecido no interior da casa, ainda apanho uma pneumonia, as feridas começavam a pedir tratamento, receava que a louva-a-deus reagisse mal, e  das duas, uma, ou me abria a porta das traseiras e me libertava pela porta da frente ou recolhia as amostras para análises e voltava ao vet. Não me libertou, fez uns curativos nas feridas. Almocei mais cedo que o costume, e, de barriga confortada, dormi toda a tarde.
Não voltei aos comprimidos, com a saída matinal a horas convenientes, a paparoca sem sofrimento de espera com ela à vista, uma semana depois voltei à consulta do vet. A recolha das urinas, segundo o folheto explicativo, redundou quase em desespero da louva-a-deus depois de lhe ter caído quase toda a micção fora do recipiente, demasiado estreito para quem não guia com a mão a direcção.
As análises não indiciavam qualquer maleita, como se tem portado o paciente, assim-assim, respondeu a louva-a-deus, que deu conta da ocorrência de feridas no lombo logo no primeiro dia em que, seguindo as sugestões do doutor, me tinha posto no jardim cerca das seis e meia da manhã durante meia hora, se tanto, a temperatura baixou bastante e ela ainda não tinha comprado a cabine.
- Não repetiu nos dias seguintes?
- O quê?
- A observação de mais feridas.
- Não.
- E quanto a comportamento, nota-lhe algumas alterações?
- Dorme todo o dia, penso que passa as noites acordado.
- Hum! Deve passar as noites a pensar ...
- A pensar o quê?
- Ah, isso não sei, nem tenho meio de saber. Mas que é estranho, que é interessante, lá isso é. As feridas parecem-me curadas. Se ele não voltou a tentar saltar a vedação ... Sim porque as feridas resultaram de tentativas desesperadas de fuga.
- Acha?
- Não vejo outra razão. Continuo a pensar que o paciente sofre de melancolia
(E ele a dar-lhe com a melancolia ..., pensou louva-a-deus) Falta-lhe convivência durante o dia e, por isso, dorme. Disse-me que ele não dorme de noite. Que indícios tem disso?
- Se dorme de dia ...
- Talvez não durma, talvez apenas esteja de olhos fechados pela tristeza de estar preso quase todo o dia. Ponha-se no lugar dele ...
- Quem, eu?
- É uma forma de dizer. Que faria se fosse obrigada a passar os seus dias num ambiente fechado sem possibilidade de conviver? A reacção dele não será significativamente diferente da de um preso numa cela onde mal se pode mexer. Não tendo mais que fazer, fecha os olhos e pensa. E parece que dorme, mas não dorme, regra geral congemina uma estratégia de fuga como qualquer preso que prese a liberdade.
- Acha isso?
- Se não achasse não dizia. Por que é que ele se arranhou na vedação? Pense nisso. O paciente sofre da ausência de convívio. Pelo que me disse concluo que também o seu relacionamento social, e o das suas meninas, é muito exíguo, o vosso mundo é muito pequenino. É feliz assim?
- Sou, sem dúvida.
- E as suas meninas?
- Felicíssimas!
- Óptimo. Toda a regra tem excepções. O nosso paciente é mais normal.
- !!!
- Não me interprete mal, por favor. Quando digo mais normal quero dizer mais em linha com o comportamento da generalidade dos indivíduos da sua espécie, que segue o comportamento padrão.
- Muito bem. Quanto lhe devo?
- Pela consulta de hoje não deve nada.

De volta a casa, dentro da gaiola, não sei porque me engaiola ela sempre que vamos de carro, o que pensará quem me vê? Que sou um supeito criminoso a caminho de julgamento ou um criminoso julgado culpado de volta ao presídio? É deprimente. Desta vez mantive os olhos bem abertos para reter imagens do trajecto. 
Está mais que decidido, tenho de sair desta clausura onde há mais de três ou quatro anos, já lhe perdi a conta, perde-se sempre a noção do tempo quando a vida é uma seca, estou condenado a envelhecer neste canto da casa, em paralisação forçada, uma condenação por crime nenhum. Tenho que sair daqui, de há uns tempos a esta parte, não me larga esta ideia, mas todas as hipóteses congeminadas em dias e noites a fazer contas e esquemas me embrenham num labirinto que, quase sempre, me conduzem a um recâmbio ao ponto de partida porque, lá está, o chip anda comigo e não é por muito me coçar que o estupor se avaria e a polícia fica sem saber quem sou. 
Mas tenho que sair daqui!
Quando der o salto, não sei quando nem como, mas acredito que um dia essa oportunidade passará por mim, tenho de conhecer as ruas das proximidades para escapar à perseguição da polícia quando eles forem informados da minha fuga ou,  mesmo sem essa informação, me encontrarem sozinho fora de casa. 
Vinha eu a matutar nisto na gaiola quando vejo, a uma distância de trinta metros, se tanto, no outro lado da rua onde a louva-a-deus costuma fazer as compras para a casa, aquele benza-o-deus que louva-a-deus quer destruir. A ele, a mim, às filhas, ... enfim, até o vet já percebeu o que se passa.
Durante o passeio antes do almoço, fujo. Só tenho que perceber melhor as ruas por onde praticamente não passa gente aquela hora. A  partir de agora, toda a atenção é pouca, logo que a oportunidade surja dou o salto.

Excitado com a ideia da fuga, esta noite passada não preguei olho e durante o dia senti-me molengão, se quero pôr-me ao fresco não posso ir para a voltinha antes de almoço sem os olhos bem abertos, portanto a fuga tem de esperar por melhor oportunidade. 
E se volto a não dormir esta noite? E na outra? E na outra? Se os comprimidos me meteram o vício no corpo, deverei lamber mais um ou dois para acalmar, dormir todo o sono em falta e ficar bem preparado para fugir quando for preciso? Hum! Lambo um ou dois? Ou três? É melhor experimentar dois, se um não resulta e tenho de tomar dois depois, gasto três, um rombo no stock da velha, que não sei quando volta, ... E se a fuga não resulta e fico sem droga?, .... é melhor lamber dois... 

... Está uma manhã linda, de sol por todo o lado, viemos dar a volta da manhã, o tempo está quente mas não muito, está um dia daqueles em que as meninas experimentam correr pelo caminho fora, e eu, ocasionalmente sem coleira, acelero a corrida, mas sou logo repreendido e intimado a voltar para trás, e volto, passo pelas meninas vezes que não conto, que também voltam a correr atrás de mim, e vou e volto, e vou e volto de cada vez mais longe, até ao limite do bosque, até que volto para embrenhar-me no bosque, de onde não volto. 
Vou aguardar por aqui o dia inteiro, os sentidos em alerta máxima, até que a noite chegue e esconda os meus passos no caminho até à casa onde reside nos últimos dois, três anos, o meu amigo. Sim, sei onde ele mora, estive lá um dia, um dia de Natal, o dia de Natal mais sombrio da minha vida.
Vou chegar lá, e bater à porta para lhe dizer, - suave milagre-, aqui estou!

- Milá! Milá! Milá! ...
- Milá! Milá! Milá! ...
- Milá! Milá! Milá! ...
... .... ... ... .... ... .... .
Chamam-me, mas o grupo não se separa, e eu corro no sentido contrário de onde ouço chamarem-me. Volto quando sinto que voltam para trás a caminho de casa. As meninas, agora, chamam por mim a chorar....

E eu a chorar acordo quando ouço a louva-a-deus a descer para o breve momento da minha higiene matinal.

Friday, February 01, 2019