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- Também discordo da invasão da Ucrânia, mas ...
- Aquilo não é invasão, aquilo é arrasamento, genocídio; o que os russos estão a fazer é uma destruição de cidades inteiras, atingindo indiscriminadamente não só instalações militares como edifícios civis, incluindo hospitais, maternidades, escolas, centros comerciais, zonas residenciais, bombardeados por mísseis disparados de longas distâncias. ..
- São imagens horríveis, sem dúvida. Mas não devemos confundir Putin e a governo do Kremlin com o povo russo ...
- ... o ditador dá ordens para disparar para objectivos calculados com grande precisão que os meios de localização hoje permitem, e o míssil sai, e dentro de segundos o objectivo é atingido, os edifícios destruídos, as notícias são conhecidas em todo o mundo livre, os mortos, os feridos, e o ditador rebola-se contente e feliz. E o povo aplaude!
- Não sei se o povo aplaude ...
- É o que dizem as sondagens feitas por instituto russo de idoneidade reconhecida: oitenta por cento dos russos está do lado de Putin e dos seus capangas. Os russos, na sua esmagadora maioria batem palmas aos sucessos da pontaria dos seus mísseis disparados de longas distâncias.
- Há quem discorde ...
- Há, desde que não se manifeste. Aqueles que se manifestam ou são presos ou envenenados à distância, sempre bem longe do refúgio do assassino,
- Não pode menosprezar-se o facto de grande parte do território russo fazer parte do continente europeu e a sua cultura. Grandes nomes da cultura europeia eram russos: Tolstoi, Dostoievski...
- Dostoievski, um nome maior da literatura russa e um dos maiores da cultura europeia, foi condenado a trabalhos forçados na Sibéria, acusado de conspirar contra o czar. Há outros grandes nomes da cultura russa e da cultura europeia, não só no campo da literatura e da música; Pushkin, Tchekhov, Gogol, Tchaikovsky, Rachmaninoff, Stravinsky, Prokofiev ...Prokofiev morreu no mesmo dia que Stalin mas a sua morte não foi desde logo anunciada para não ofuscar as homenagens que o regime prestou ao ditador. Mas que luminosidade se projectou sobre a cultura de um povo, na sua imensa maioria ignorante e servo? Quase nenhuma, se alguma existiu. O mesmo se pode dizer da literatura e da música durante o regime soviético, durante o qual aqueles que ousassem contestar o regime ou emigravam ou eram perseguidos e desterrados para a Sibéria. Leu o Arquipélago de Gulag?
. Não podemos ostracizar nem desvalorizar a cultura russa...
- Obviamente, não. Mas a maioria do povo russo que apoia Putin não o faz por orgulho nos seus poetas, escritores, compositores, músicos, artistas, mas por admiração pela ambição desmedida de um ditador querer conquistar o mundo. É a ele que bate palmas, não bate palmas a Dostoievski. Aliás, esta situação não tem nada de original, tem-se repetido ao longo dos séculos. Quem aplaudiu de forma acéfala Hitler, Mussolini, e outros ditadores menores, não foram povos com culturas recheadas de nomes que iluminaram o mundo mas se apagaram quando o delírio do povo os fez matar e morrer por causas apenas movidas por promessas de fortuna e poder que os demagogos nunca podem cumprir? Goethe, Thomas Mann, Dante, Beethoven, e tantos outros? Não aplaudiram os franceses, entusiasticamente, as tropas nazis a desfilarem nos Campo Elíseos? Não todos, evidentemente. Mas de que lado estava naquele momento o povo francês? Quantos, dos que aplaudiam Hitler nos Campos Elíseos eram o povo francês? Os que resistiram, relativamente poucos, na clandestinidade?Vítor Hugo,Voltaire, Claude Monet, e tantos outros, quem inspiraram naquela época de vergonha que nem a Marselhesa motivou?
- Putin não é Hitler.
- Não, Putin não é Hitler, porque Putin é muito mais perigoso com as armas, sobretudo o arsenal atómico de que dispõe e que Hitler não tinha. Hitler, mesmo que quisesse, no momento em que se viu encurralado no bunker com os seus mais fiéis, não podia eliminar a espécie humana. Putin pode.
- Não acredito nisso.
- Acreditar é uma questão de fé, de esperança, se quiser, mas não tem fundamentação científica. Acreditar, em muitas circunstâncias é motivador, noutras pode ser irresponsabilidade e até crime contra as vítimas da ausência de acção em tempo oportuno.
- A decisão de usar o armamento atómico não depende apenas dele.
- Ninguém sabe como uma decisão dessas será tomada, agora ou algum momento no futuro, para desencadear uma guerra atómica. O que se sabe é que instintivamente o ser humano tem como objectivo imediato salvar a pele e apoiar a decisão do comandante para não considerado traidor e eliminado imediatamente se manifestar desacordo.
- Estás a ser demasiado pessimista. O pessimismo não faz bem a ninguém. Desafiar Putin pode desencadear a guerra nuclear e o stock nuclear existente em todo o mundo é, provadamente, mais que suficiente eliminar a espécie humana.
- Então a alternativa é deixá-lo avançar até onde ele quiser ir? Subserviência global?
- Não sei dizer. E tu, sabes?
. Sei que enquanto não for totalmente desmantelado o arsenal nuclear, com Putin ou outro Putin qualquer, subsistirá a a ameaça de extermínio da espécie humana.
- Utopia ...
- Será utópico, mas é a única forma de garantir a sobrevivência da espécie humana. Passa, no entanto, pela consciencialização global (deprimente, reconheça-se) de que a humanidade está à beira de um precipício que o equilíbrio do terror, com corrida aos armamentos nucleares durante a "guerra fria", tornou mais evidente.
- Consciencialização global ... O que é isso?
- Exacatamente o contrário da ignorância global que os povos têm deste perigo.
- E se tivessem, o que acontecia?
- Os russos, por exemplo, não apoiariam um ditador que desde o começo do arrasamento da Ucrânia, que ele começou por chamar a 23 de Fevereiro, uma operação militar especial na região do Donbas, e ao mesmo tempo avisava ter colocado o sistema nuclear em estado de alerta, precisando o seu ministro dos estrangeiros que não se tratava apenas de uma decisão de dissuasão mas de acção imediata se e quando assim entendessem. Os oitenta por cento da população russa que apoia Putin tem conhecimento de que a operação especial se tornou numa operação de arrasamento e terror? Não é credível que não tenha. De outro modo por que razão apoiaria Putin se dos efeitos possíveis da ameaça não sobrará ninguém?