Saturday, January 27, 2018

ASSÉDIO



- Quer saber uma coisa?
O Robalo chegava a casa por volta das sete, já a sogra tinha o jantar adiantado, a filha, mulher do Robalo, uma hora depois, o sogro, quando não estava fora, de serviço, depois da volta da tarde, cerca das cinco estava na sala que dava para a rua, e que era prolongamento de um quarto, a ler o jornal de ponta a ponta e, até que a mulher dissesse o jantar está pronto, entretinha-se com as palavras cruzadas.  Ele está convencido por a fazer as palavras-cruzadas é um tipo culto, troçava o Robalo, que mantinha uma relação tensa com o sogro com quem partilhava o apartamento. 

Numa tarde de Outubro, quando o hóspede num quarto interior subalugado um mês antes entrou em casa, o Robalo convidou-o para uma limonada no quintal das traseiras, um espaço atribuído ao primeiro andar do prédio, entrincheirado entre os prédios vizinhos. Temos de ir na limonada, acabaram-se as cervejas e do vinho que compram cá para casa não bebo nem que me paguem. 
Tinham instalado ali uma mesa redonda, com quatro bancos à volta, em ferro pintado de branco corroído pela ferrugem,  e, logo que se sentaram, atira o Robalo com aquela pergunta em voz baixa, 
- Quer saber uma coisa? Estive ontem com uma senhora que me disse que o conhece. 
- A mim? Estranhou o hóspede que já fosse conhecido numa cidade grande e aonde chegara há tão pouco tempo. 
- Os acasos andam por todo o lado, filosofou o Robalo, e eu encontrei uma sua conterrânea, sabe aonde? No Ritz Bar. Pois o meu amigo não entra em antros da má vida, já sei. Costumo ir ao Ritz com a rapaziada aqui do bairro, só para beber uns copos, não pagamos para ir para a cama, isso não. Um dos do grupo conhece o gerente, temos desconto nas bebidas. Sentámos-nos e, é fatal, senta-se logo a seguir uma mariposa de serviço para facturar pelo menos mais um copo, a dividir por todos, pouca coisa a cada um. Ela poisou ao meu lado e, passado pouco tempo, já me estava a fazer as perguntas do costume, querem casar ou arranjar alguém que lhe pague as contas. Ora eu sou casado, arrependido, mas sou casado, e, como lhe disse, a lei do grupo só consente que, para a cama, só por amor. Para desviar conversa, perguntei-lhe de onde tinha vindo, e ela disse. Como os acasos andam por aí por todo o lado, pelo que me disse, ela e o meu amigo são conterrâneos, se ela não mentiu. Disse-lhe que tínhamos lá em casa um hóspede que, por acaso, veio do mesmo sítio. Quem é, como é, às tantas disse-me que sim, que o conhecia, que o conhecia do tribunal... Do tribunal? O nosso jovem e inocente hóspede já andou metido em tribunais? Não acredito, disse-lhe eu. Há neste acaso peças que não se encaixam. Não é nada disso em que estás a pensar, disse ela. Quem andou metida em tribunais fui eu, o teu hóspede trabalhava no tribunal nessa altura. Não pode ser, disse eu, o rapaz, agora, ainda não tem vinte anos...Sim, na altura em que o vi por lá, teria dezasseis ... É possível. E eu tinha vinte. Agora estou com vinte e cinco. Pensei, é treta, mas não percebia por que havia ela de mentir quando o normal naquele ambiente é mentir para esconder. E com dezasseis anos já se trabalha no tribunal da vossa terra? E ela respondeu, parece que sim, mas o melhor é perguntar-lhe a ele. Isto faz algum sentido? perguntou o Robalo, baralhado com o puzzle.
- Faz. Pelo que me disse, lembro-me dessa mulher.
- Ah, conhece-a? Então ela não mentiu?
- Não, não mentiu. Já agora, diga-me: perguntou-lhe por que razão andou pelo tribunal há nove anos?
- Não perguntei. Devia ter perguntado?
- Supunha-o mais curioso... 
- Mas como é que o meu amigo, quando tinha dezasseis anos, já trabalhava num tribunal?
- E o Robalo que idade tinha quando começou a trabalhar?
- Com treze. Mas não trabalhava num tribunal... Era paquete, moço de recados, num despachante oficial, levava papeis de um lado para o outro. 
- E com dezasseis, o que fazia?
- Como, entretanto, fiz o primeiro ciclo e parte do segundo, aos dezasseis anos registava a entrada e saída de correspondência, saía para ir aos correios ou aos bancos levar documentos.
- Então já vê: Com dezasseis estávamos mais ou menos a fazer o mesmo.
- Hum! Alguém trabalha num tribunal com dezasseis anos? Desculpe, mas não acredito.
- Eu conto-lhe.

No Verão de 58, tinha completado o ensino secundário profissional, mas as hipóteses de emprego local não eram muitas. De modo que, para ir fazendo alguma coisa, aceitei um trabalho pontual no tribunal, sem remuneração porque não havia verba no orçamento. No primeiro dia de Setembro apresentei-me no local de trabalho, no tribunal. Tinham-me dito que a pessoa a quem me deveria dirigir normalmente não chegava antes das dez, mas seria conveniente chegar lá por volta das nove, não fosse dar-se o caso de o escrivão chegar mais cedo que o costume, escrivão de direito é o responsável pelos processos judiciais que correm por cada secção do tribunal. O comboio chegou às oito e meia, da estação até ao tribunal era um pulo de cinco minutos, o candidato a uma carreira judicial teve tempo para assistir, a duzentos metros dali, ao reabastecimento de gasóleo numa traineira que já tinha passado pela lota a deixar o pescado da noite. E às nove estava à porta do tribunal. A partir das nove e meia entraram vários funcionários, eu não fazia a mínima ideia que papel desempenhava cada um deles naquele teatro, nenhum me perguntou o que estava eu ali a fazer. Foi só, quase às dez horas, quando passou um sujeito, quarentão, com ar bem-disposto, era oficial de diligências, vim a saber depois, que me pergunta se procurava alguém. Supunha eu que fosse o escrivão e disse-lhe ao  que ia. Sorriu, disse-me que o seguisse, entrámos numa sala, resguardada do exterior por um balcão,  e, para lá do balcão, duas secretárias, uma encostada ao fundo, na outra, no lado direito sentava-se um rapaz, vinte e poucos anos, alto, que logo reconheci porque era um dos melhores jogadores de basquete de um dos clubes da cidade, esforçando-se para cozer um processo. Viva o povo trabalhador, desculpe se o ofendi! disse sorridente o meu guia ao rapaz, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o cumprimentar. Diz-me aqui este jovem que o convocaram para recuperar os escandalosos atrasos dos processos judiciais, é verdade? Não sei de nada, respondeu o rapaz com sorriso cúmplice, tem que esperar que o chefe chegue.
O escrivão, já sabia, normalmente não aparecia na secção antes das dez, onze horas, consoante a animação da discussão no Café da Madame, enquanto fumava uma cigarrilha assinava as juntadas aos processos de documentos em páginas dactilografadas, e intercaladas pelo ajudante, o basquetebolista fora de horas, que os descosia para voltar a coser com sovela e fio de sapateiro, aparando com tesoura de alfaiate, para garantia de inviolabilidade, as folhas menos bem alinhadas durante o cozimento. Constava que o escrivão passava as tardes com as bailarinas que actuavam à noite no Casino…
- Nem só o Robalo anda na má vida …
- Pois, pelos vistos, não.
- Devia informar o meu sogro … Mas continue, estou a gostar de ouvir…Isso que me diz é tudo verdade ou o meu amigo anda a escrever um romance?
- Disse alguma coisa esotérica?
- Não, penso que não. Mas, e a miúda? Quando é que aparece a miúda?
- Agora … O escrivão entrou, passava já das onze …
- De cigarrilha pendurada na boca …
- Ah, não! O escrivão só puxava pela cigarreira depois de sentar-se na secretária. Deu os bons dias ao ajudante, só depois reparou em mim. Talvez este jovem possa dar uma ajuda nas querelas, que lhe parece?
Parece-me bem.
Óptimo. Tem aqui um trabalhinho para um mês. Dito isto foi sentar-se à secretária a fazer o costume: assinar juntadas.
- Juntadas,  meu amigo já falou várias vezes de juntadas, o que é isso?
- E a miúda pode esperar?
- Não, não, vamos ao que interessa.

O trabalhinho que o escrivão me atribuíra era a dactilografia em folhas soltas, para posterior encadernação, dos manuscritos das sentenças lavradas em processos-crime. Para os meus dezasseis anos, grande parte dos casos eram enredos que, na altura, só eram permitidos no cinema a maiores de dezoito anos. Resumindo, a incumbência era uma seca mas, aqui e ali, empolgante. Preponderavam os casos de estupro, homicídios voluntários e involuntários, injúrias pessoais graves, ofensas às autoridades, furtos à mão armada. Enfim, depois de três meses a dactilografar considerandos e sentenças, no fim do Verão, o tribunal ficou com o livro das querelas em dia e nem um obrigado como paga. De todo aquele tempo debruçado sobre uma velha Remington apenas me sobrava um sonho, ser advogado.
- É para isso que o meu amigo veio até cá. Diga lá, então senhor doutor o que se passou com a pequena. Se não é matéria confidencial …
- Não, não estou a cometer qualquer inconfidência. O caso foi, na altura, há seis anos, muito comentado no local onde os intervenientes viviam. Curiosamente, tendo sido muito falado, não foi controverso porque foram bem conhecidos os factos, circunstância que se reflectiu numa unanimidade no essencial dos depoimentos ouvidos em tribunal e com base nos quais ditou o colectivo de juízes ditou a sentença.
- Hum! Diga lá, então, o que é que se passou com a miúda. 
- É uma história comum, aliás todas as histórias têm ingredientes comuns, cozinham-se sempre com os mesmos, o amor e a fome, que condicionam os comportamentos da espécie humana há muitos milénios. O que torna as histórias diferentes é a forma como são contadas. 
- Percebo que o meu amigo já começou a treinar conversa de advogado... E a história, quando começa a história?
- Como lhe disse, fui dactilógrafo de sentenças durante um mês. À medida que ia terminando a dactilografia de um caso, que frequentemente incluíam dezenas de páginas manuscritas, devolvia o processo e entregavam-me outro. Um dia, mais ou menos a meio do mês, entra na secção a senhora que você encontrou ontem no Ritz, acompanhada de advogado, a solicitarem certidão dos termos da sentença de um julgamento. Eu estava embrenhado na empreitada, só dei pela presença dela quando o basquetebolista nas horas vagas me perguntou qual o número do processo que estava naquele momento nas minhas mãos, para concluir que ainda não tinha sido dactilografado. Deduzi que o processo da senhora, agora no Ritz, … a propósito, perguntou-lhe o nome dela?
- Disse-nos, quando se sentou, que se chamava Nini. Nome de guerra, está visto. Como é que ela se chama?
- Para si, é a Nini. Tem algum interesse em saber o verdadeiro nome?
- Não, nenhum. Continue, continue …
-Deduzi que poderia receber o processo dentro de cinco, seis dias, dependendo do volume de páginas dos processos ainda à frente na fila que combatia. E assim aconteceu. Eu conhecia grande parte dos acontecimentos em pormenor, como lhe disse eram do conhecimento público da vizinhança dos intervenientes.

Eram dois casais vizinhos, a casa de uns em frente da casa dos outros, em casas modestas encostadas em banda, térreas, telhados de duas águas, duas janelas em frente, no meio a porta de entrada, nas traseiras, que davam para os quintais, a mesmo alçado. Eles, operários, saem de manhã, voltam à tarde nos dias compridos, à noite quando são curtos. Elas ocupam-se com as tarefas domésticas, o acompanhamento dos filhos, o cultivo de alguns legumes na horta no quintal. De um lado, o casal tem duas filhas, a mais velha tinha, naquela altura, vinte e três anos, já estava casada, a mais nova, tinha completado o ensino secundário profissional, procurava emprego e, entretanto, ajudava a mãe.
No outro lado da rua, o casal tinha um filho, vinte e oito anos, na altura, sempre desempregado, sem habilitações porque desistira a meio do ensino secundário e uma profissão manual era por ele e pelos pais considerada desprestigiante, mas quem o visse, bem vestido, cigarrilha na boca, e muita prosápia ao volante de um carocha vermelho, e não o conhecesse, diria que o homem vivia bem abonado. Vivia à custa dos esforços e restrições dos progenitores, era um gavião bem emplumado a sobrevoar para se atirar em voos picados sobre as pombas confiantes.
A mãe da Nini tinha conseguido manter a filha mais velha fora do alcance da rapina do filho da vizinha à custa de muita conversa e, durante algum tempo, de acesa discussão.
Mas que mal lhe faz o rapaz?
A mim, por enquanto nenhum. Faz mal aos pais, muito mal mesmo, e isso dói-me tanto como se fosse comigo.
O problema é deles!
Mas tantas ouviu que desistiu, e, quando a mãe viu casada a mais velha, armou as barricadas à volta da mais nova e continuou a tapar os ouvidos aos lamentos da vizinha, que, dizia ela, nunca mais via o filho amparado, com um emprego, com uma mulher que o acalmasse, retirando-o daquela vida baldeada entre umas e outras, sem rumo nem futuro.
- Já estou a ver onde é que isso vai dar …
- Não é difícil. A todas as histórias, só diferem na forma e nos detalhes. E você já sabe onde que foi parar, por agora, a Nini.
- Mas continue, continue, senhor advogado de acusação…
- De acusação, porquê?
- Porque é muito evidente que, pelo andar da carruagem, percebe-se que o gavião fez o que lhe manda a natureza. 
- Mas não como está a pensar.
- Então conte o resto. Mas mais rápido que daqui a pouco está a minha sogra a chamar-nos para um cachucho frito com arroz de tomate. Gosta?
- Se for fresco …
- Cá em casa é tudo fresco, menos eu. Ou o contrário, segundo o meu sogro. Mas conte, conte …

- Um dia, ao fim da tarde, tinha a mãe saído de casa por uns instantes, por uma razão qualquer que agora não consigo precisar mas que não é crítica para apreciação dos acontecimentos, e dito à filha …
- À Nini.
- Disse à Nini que olhasse pela sopa que estava a cozer, não fosse a fervura ir além do que devia ou começasse a faltar a água na panela. Com certeza, mãe, vá descansada. Passado pouco tempo, deixou a fervura de se fazer ouvir, o gás tinha-se esgotado na botija. Onde é que está a botija sobressalente? Estava também esgotada. E, foi então, que Nini se recordou que a culpa era dela, a mãe tinha-lhe pedido que encomendasse outra botija, ela tinha-se esquecido e, agora, daí a pouco chegaria a mãe, pouco depois o pai para jantar, e a sopa só meia cozida. Que fazer? Pedir à vizinha, por empréstimo, a devolver com botija nova no dia seguinte. Não seria a primeira vez que isso acontecia, várias vezes a vizinha tinha pedido idêntico favor à mãe dela. E lá foi a Nini ao lado de lá da rua à procura da botija. Bate à porta, ninguém responde, mas a porta só está encostada. Vizinha?! Está em casa?
Ninguém responde. E a botija ali mesmo ao lado do fogão. Ainda pensou em carregar com ela, voltaria logo que pudesse a desculpar-se do abuso e a assumir o compromisso. Certamente que a vizinha não se iria zangar, ela que, segundo palavras frequentemente repetidas, considerava a Nini como se fosse sua filha. Estava a Nini naquela levo não levo quando, aparece, saído de um dos quartos voltados para as traseiras da casa, de tronco nu e a apertar a braguilha das calças, o gavião.
Estremeceu de susto a Nini, ia a pedir desculpa e sair quando entra a mãe dela, e vê o gavião naquela preocupação, que ela considerou subsequente à violação da filha. E gritou, desalmadamente: Socorro! A minha filha foi violada! Um escândalo público que atingia irremediavelmente para sempre a imagem da Nini. Que terá pensado o gavião nos momentos subsequentes ao pregão sem fundamento? Ele nunca tinha considerado envolver-se com a miúda, que conhecia desde sempre e, que a seus olhos, continuava uma garota simpática, meio atrevida, mas uma criança ainda. Além do mais, menor, com menos doze anos que ele, não apetecia ao gavião mergulhar em águas que lhe queimassem as asas. Demorou algum tempo mais a compor as calças, o suficiente para Nini pensar que, de nenhum modo, ela já sairia dali como entrou. A mãe tinha, involuntariamente, guiada pelas aparências e pela obstinação aparentemente frustrada de manter a filha bem longe do gavião, lançado sobre a honra da filha um anátema indissolúvel. Em estado de choque, desfazia-se a Nini em lágrimas convulsivas, e o gavião olhar para ela de cérebro parado, fez o que o instinto da sua condição humana o incitou a fazer. Acercou-se dela, acarinhou-a, e acabaram no quarto por se enlaçar os dois.  
Implorou a mãe ao filho, durante horas, perante o espanto mudo do pai, que se dirigisse à casa em frente, e pedisse perdão aos pais e a filha em casamento. O gavião recusou-se, negando culpas e sugerindo que tinha assumido outros compromissos. 

Em tribunal, ninguém negou a versão pública dos factos. O gavião foi condenado a casar com Nini. Em alternativa, aguardava-o uns anos de prisão e uma multa pesada à ofendida, por ser menor. Aceitou casar. No mesmo dia em que foi lida a sentença, desapareceu para parte incerta.
Até hoje.

Monday, January 22, 2018

OS RECUSADOS EM 1863



Obras do "Salon des Refusés" (1863) estão até ao próximo domingo no Kunsthaus de Zurique

No dia em que em Washington DC, - vd. aqui -  e em outras cidades norte-americanas, desfilavam muitos milhares de mulheres, e homens, repudiando a misoginia de que Trump é exemplar impune, 
reteve a minha atenção um quadro recusado de Degas (na realidade um sketch que veio mais tarde a traduzir-se numa obra mais conseguida, agora na National Gallery de Londres) baseado em escritos de Plutarco. O tema insólito mostra jovens espartanas a desafiarem rapazes para uma competição (con-test, na legenda e inglês).




ANTROPOLOGIA*

 

anthropologie.com

Antropologia

* Obs. -  Em consequência de rearrumações, o manequim mudou de local  

Thursday, January 18, 2018

O BRÊXIT E A COR DOS CARROS BRITÂNICOS


Há correlação entre o estado de humor dos britânicos e a cor dos seus automóveis?
Estará o Brêxit a contribuir para a recente tendência das cores escuras?
Parece que sim, se acreditarmos nesta análise.


Wednesday, January 17, 2018

PRESIDENT TRUMP ACHIEVED A PERFECT SCORE ON A COGNITIVE TEST



"A avaliação a que ( o Presidente Trump)  foi submetido ( a seu pedido) incluía pedir-lhe que dissesse o nome de vários animais, desenhasse, com a sua mão, um relógio a uma indicada hora,  copiasse um cubo e recordasse uma pequena lista de palavras" aqui



CONTA-ME, POR FAVOR, QUALQUER COISA COM PIADA



2008, Junho, 18


- Olá!
- Olá! Já chegaste?
- É como vês, já cheguei todo.
- Isso é óptimo. Em casa o que é de casa, no trabalho o que é do trabalho.
Podes ajudar a trazer o resto das compras que ficaram lá em baixo, no carro?
- É para já, mas antes tenho uma novidade para dar-te …
- Boa ou má?
- A melhor que poderíamos esperar hoje! És avó!
- Avó? Porquê?
- Porque o Alexandre é pai.
- O Alexandre é pai? Desde quando?
- Desde hoje, se bem entendi.
- E quem é a mãe?
- Ah, isso não sei …
- Como é que não sabes?
- Não sei porque ele não disse …e eu não perguntei.
- E nem sequer lhe perguntaste como ela se chama.
- Não, não perguntei, … não me ocorreu perguntar … ele meteu a chave à porta, eu supus que eras tu, e disse olá para saberes que já estava em casa, ele disse olá, perguntou por ti, e foi à cozinha, ouvi-o abrir o frigorífico, passado um bocado, voltou aqui, sentou-se naquele sofá pequeno, nunca sei como se chama aquilo, a mastigar qualquer coisa, talvez umas empadas, se tinhas empadas no frigorífico ficaste sem elas … e, a mastigar as empadas, se bem me recordo tinha uma em cada mão, disse, pai, agora és avô. Não sei se não percebi ou pensei que, de repente, estava a sonhar, e ele, perante o meu espanto mudo, e a continuar a mastigar a empada, repetiu, pai, agora és avô, agora tens um neto.
- E tu ouviste, e não perguntaste nada.
- Não, não perguntei nada. Não estava à espera, e o embate da surpresa bloqueou-me a capacidade de perguntar. Sabes como é: fiquei literalmente de boca aberta.  
- Parece inacreditável!
- Talvez, mas foi assim mesmo. Eu estava recostado aqui no sofá, os braços e as pernas estendidas para os lados, exactamente como estou agora, a descansar o corpo e as ideias, a olhar lá para fora, sem querer ver alguma coisa, só a olhar, sabes como é, todos sentidos adormecidos mas a visão em modo de meio acordada. Talvez tenha passado pelas brasas, mas não tenho consciência disso. Estava muito cansado. Sabes a que horas me levantei esta manhã? Ouvi o sinal das sete no rádio quando liguei o motor do carro, às dez estava a atravessar a ponte da Arrábida. Só parei ao quilómetro 84 para uma bica, uma sanduíche de queijo e um copo de água. Ainda não eram onze quando começou a reunião com o cliente. Sete, eram sete à volta da mesa a cravar-me com dúvidas … durou até às duas. Mas estão satisfeitos com os resultados das acções em curso. No Norte trabalha-se no duro. Eles têm alguma razão de queixa na subalternização ao poder político centralizado em Lisboa. É gente boa a gente do Norte Convidaram-me para almoçar, mas, aquela hora, o que me apetecia era descansar. Entrei num café-restaurante, lá perto, comi uma sopa de legumes, estava bem boa, e uns carapauzinhos fritos com arroz de tomate, assim como tu costumas fazer, não tão bom, mas quase, quase, uma cerveja, soube-me tudo lindamente. Quando entrei no carro, eram três da tarde, estive a dormitar durante meia hora, se tanto, e depois pus-me a caminho. E, na volta, voltei a confrontar-me com esta vida que levo, a correr daqui para acolá, para quê e em nome de quê? Só voltei a parar ao quilómetro 84, o 84 é o nosso quilómetro, de um lado e doutro. Repeti a dose da manhã, café, sanduíche e copo de água. E às sete estava no Instituto. Aula dada, vim para casa, cheguei cá, já passava das oito e meia, ele deve ter entrado meia hora depois. Estou a contar-te isto e a tentar explicar-me também a mim o modo como reagi. Pai, agora és avô, agora tens um neto… Fiquei bloqueado? Não sei se fiquei bloqueado, … o que eu fiquei foi extasiado, cheio de um contentamento tão grande que me impediu perguntar fosse o que fosse. Podia, devia, no mínimo, reconheço, ter-lhe perguntado pelo menos qual é o nome da mãe do … nosso neto. Não ter feito algumas perguntas parece não fazer qualquer sentido. Mas só agora, quando me colocas perante o absurdo do meu esquecimento, tento conseguir explicar-me, a mim e a ti, porque não fiz uma pergunta tão óbvia. Porque não fiz essa pergunta nem qualquer outra. Fui fulminado pela notícia, aliás devo dizer-te que nem sequer estou certo que ele tenha dito neto ou neta. É espantoso, pois é... mas foi assim mesmo. Eu estava cansado, ele entrou, nem boa tarde, a mãe não está?, não a mãe ainda não chegou, hoje é dia de chegar mais tarde, ela às sextas atrasa-se sempre um bocado, tem de passar pelo super para comprar coisas para a semana, aos fins-de-semana cai lá meio mundo, e ela sempre embirrou com as filas de espera ... mas o que é que trás por cá? Há quanto tempo não te púnhamos a vista em cima, está tudo a correr bem contigo? O emprego, a saúde, estás em forma? Tudo em ordem, disse ele, e foi à cozinha. Fomeca, hem?, disse eu quando o vi entrar a mastigar,  estavas com fomeca, aposto que a estas horas ainda nem almoçaste ...almoçaste? Não respondeu que sim, nem que não, disse que tem andado bastante ocupado no trabalho ...é bom, é bom, disse-lhe eu, trabalho nos tempos que correm é uma coisa escassa, convém agarrá-la bem. Hum!hum!, também tenho uma coisa para vos dizer... Aí ele fez um compasso de espera perante a minha cara expectante, e depois disse, queria dizer-vos que agora têm um neto! Ou terá dito neta? Pai, agora és avô, agora tens um neto. Não sei se ele disse neto ou neta, mas penso que disse neto, mas não garanto. Levantei-me, e perguntei-lhe depois de o abraçar: Estás a falar a sério? Estou ... estou ... disse ele, agora tenho de sair, tenho de ir até à maternidade, depois ligo a dar mais notícias. E saiu ...saiu e eu caí aqui no sofá, imóvel e extasiado até tu entrares e me despertares do meu deslumbramento. Um neto? Um neto! Acredita que me belisquei para confirmar que estava vivo e acordado. Por que é que não lhe perguntei quem é a mãe?  À procura de uma resposta a primeira que encontro é esta: não me ocorreu. Mas para explicar porque não me ocorreu já tenho de recorrer a uma introspecção com resultados que não passarão de justificações que receio não considerarás plausíveis tendo em conta a minha habitual tendência para não perguntar se não me dizem. Penso que neste caso, e estou a pensar alto o que conscientemente não pensei antes, não fiz qualquer outra pergunta porque a alegria de saber que tinha um neto, ou neta, tanto faz, para mim tanto faz, bloqueou-me a tentação de fazer perguntas. Talvez porque o inconsciente receasse que qualquer pergunta suscitaria uma resposta que não poderia aumentar o meu contentamento. E, não podendo aumentá-lo, só poderia reduzi-lo. Talvez tenha sido isso, que achas? Ocorre-me, enquanto digo isto, que deve ter sido uma reacção semelhante aquela que experimenta o desportista de bancada quando é informado que o seu clube ganhou. Imagino que nele entra tanto contentamento que, momentaneamente, não lhe cabe mais informação, o resultado, a qualidade do jogo, os marcadores dos tentos, o comportamento do árbitro, tudo isso ele esquece e só mais tarde discute com os amigos durante a semana... Sim eu sei que o exemplo é pífio, até porque eu sou uma nulidade na matéria, mas foi o que me ocorreu. Mas posso imaginar outros. Neste caso, reconheço que fui excessivamente desprendido do conjunto dos acontecimentos por me ter agarrado com unhas e dentes a uma notícia que me encheu de júbilo! De imediato, não olhei para trás, para quem é ou deixa de ser a mãe do meu neto, ou da minha neta, aliás, do nosso neto, ou da nossa neta, vê lá como tanto regozijo me toldou o raciocínio e atribuiu-me a mim, só a mim, o nosso neto, ou a nossa neta. De imediato, comecei a sonhar, acordado, mas a sonhar. E era esse sonho que vieste interromper. Um sonho em que já via o meu neto, o nosso neto! ou a nossa neta, a entrar para a faculdade. Estava a fazer essas contas, a considerar probabilidades, esperança de vida, tudo isso, e estava quase a concluir que estando hoje à beira dos sessenta, com alguma sorte chego aos setenta e oito e ainda vejo o nosso neto, ou neta, na universidade. Não é maravilhoso? E em dezassete, dezoito anos, meu Deus, o percurso que eu vislumbrei, quase dia a dia, quase hora a hora, que iremos percorrer juntos! Sim, é verdade que quando nasceu o nosso filho o meu entusiasmo não foi tão patético. Não pensei no futuro, dele e do nosso, naquele momento. Éramos novos, éramos imortais, o nascimento era esperado, mesmo quando enfermeira veio cá fora informar que tudo tinha corrido bem, fiquei feliz, imensamente feliz, mas, coisa curiosa, não perguntei se era menino ou menina, lembras-te? Agora foi diferente, completamente diferente. Esperavas um neto?  Não esperavas. Qualquer um de nós já tinha interiorizado a ideia que a descendência, pelo nosso lado, acabava connosco. E, de repente, sem avisar, nem agoniar, nem berrar, tenho, temos, um neto. Não é maravilhoso? E quem é a mãe do meu, do nosso, neto? Boa pergunta. Telefona-se ao pai.  


Sabes como ele é, como sempre foi, aliás, tímido, introvertido, meio distraído, … não, não sai a ti … talvez saia um pouco a mim …Está bem, admito que seja, nesse aspecto, parecido comigo. Supunha que ele estivesse no hospital … quando saiu daqui disse que ia para o hospital, não disse? Sabes onde está agora? Em Santa Apolónia! Vai embarcar daqui a cinco minutos no Alfa para o Porto. Já ficámos a saber alguma coisa: a mãe ou é do Porto ou estava lá na hora do parto. E eu que estive lá há meia dúzia de horas! Não tens nada contra as mulheres do Porto, pois não? Ah! Perguntei-lhe como se chamava a nossa nora, mas ele, ou porque o ruído à volta não o deixava ouvir bem, ou porque nora é palavra em desuso, ou porque, para ele, a situação é tão nova que a palavra é estranha, perguntei-lhe como se chamava a mãe do nosso neto. E ele percebeu, percebeu, e sabes o que me respondeu: o que é que isso agora interessa? Devia ter dito alguma coisa?
Pensando bem, o nome da mãe é o que menos interessa para sabermos quem ela é. Tanto vale ser Maria como Joana ou Joaquina. Aguardemos que ele telefone.

Que horas já são? Já é tarde, não achas? O que é que o impede de telefonar? Sim, sim, bem sei que há situações em que a minha ansiedade exagera, nesse aspecto não tem nada a ver comigo … Ele sabe que estamos, naturalmente, ansiosos por saber mais alguma coisa sobre o que se está a passar neste momento. Já telefonei para a CP e de lá disseram-me que o rápido para o Porto saiu apenas com quinze minutos de atraso, nada que não pudesse recuperar durante a viagem, deve ter chegado antes da meia-noite. Desculpa ter-te acordado, mas não consigo dormir, e não paro de dar voltas na cama, já passa das três da manhã, e nem sabemos para onde podemos telefonar. Vá lá, dorme que eu também vou tentar fazer o mesmo no sofá da sala para não voltar a acordar-te. Saio às sete e meia, vou dar a aula das quintas, às oito, depois sigo para Castelo Branco. Tenho de estar lá para uma reunião às duas da tarde. Liga-me logo que ele telefonar. Vou estar sempre com o telemóvel ligado.  


Ligou agora mesmo. Estás sentado? Ainda bem. Então ouve: Não nasceu um neto ou uma neta, nasceram dois gémeos. Um casal!
Um neto e uma neta. Estão bem. A mãe está bem, os bebés vão estar na incubadora, mas por pouco tempo, umas horas apenas, disse a enfermeira. O Alexandre está radiante, claro, pelo menos tanto como nós. Se estás a sair agora de Castelo Branco sugiro que vás daí para o Porto, eu apanho o comboio que chegar lá mais cedo, e, logo que souber a que horas vou sair daqui, telefono-te e combinamos a hora e o local onde nos podemos encontrar. Depois te contarei mais pormenores, os que sei, porque ainda não sei muito mais. De tão excitado com o nascimento dos filhos, o Alexandre ainda não teve tempo para estar comigo por uns momentos a sós com ele. Talvez logo, ou amanhã se chegarmos tarde, ele nos conte aquilo que não sabemos, que é quase tudo, salvo a grande notícia do dia, somos avós, e logo de dois ao mesmo tempo.

- Vinte para a meia-noite …
- Já é muito tarde para irmos ficar em casa. Devíamos ficar num hotel, aqui. E, logo de manhã, saíamos tranquilos. Sinto-me desconfortável a viajar a estas horas, nunca gostei de viajar à noite.
- Também não aprecio muito, mas tenho uma reunião no Instituto às nove da manhã, e não posso faltar. Agora, só agora, depois de tantos anos que já levo a leccionar, decidiram que tenho de fazer um mestrado … e depois o doutoramento. Se não, rua com ele!
- Como é que vais aguentar essa sobrecarga se já andas preso por cordéis …
- Vá lá, vá lá, não me desanimes. Ainda não estou para cair para o lado. Sinto-me bem. Às vezes devia dormir mais, é verdade, mas tenho-me aguentado bem, não?
- Devias voltar a fazer o exame da apeneia.
- Vou fazer, agora vou fazer. Já na semana que vem.
- Hum! Só porque agora tens um neto?
- Que ideia!
- Nunca te vi tão decidido a ir ao médico como neste momento. Talvez a nossa vida tenha mais sentido quando vemos prolongar-nos na descendência. Talvez … Que te parece?
- Não é, penso eu, a descendência uma condição necessária para valer a pena viver. Há quem crie e procrie, há quem não procrie, só crie, e, nem por isso, a sua vida deixa de fazer sentido. A criação, a criatividade, para o bem e para o mal, é o que mais distingue a humanidade dos outros bichos. Procriar é um rastilho da natureza a provocar o seu crescimento. Procriar é instinto, a criação é a parte estimulante da vida. É por isso que sonhei com a oportunidade de ajudar a criar um neto quando me esgotava numa carreira, relativamente bem remunerada, mas que eu começava a sentir vazia de sentido.
- E agora aqui vamos nós a correr ao serviço de sua majestade, a tal carreira vazia de sentido …
- Que, a partir de agora, passou a fazer sentido.
- E não podia ser feita de manhã, daqui a poucas horas?
- Se cá ficássemos teríamos de nos levantar às quatro e meia para sairmos do hotel nunca depois das cinco e meia. E esperar que não houvesse problemas de trânsito, e há quase sempre dificuldades na entrada, de manhã, em Lisboa. Vamos a conversar todo o caminho, faz-se a viagem sem problemas. Do que precisamos mesmo é de uma conversa animada. Para começar, com que impressões ficaste dos pais da … como é que, afinal, ela se chama?
- Vera. É impossível que não tenhas ouvido ou já te tenhas esquecido.
- É um bom começo. Não é impossível que não tenha ouvido. Como sabes, já tenho algumas deficiências auditivas. E, se ouvi, como não sou brilhante a memorizar nomes, esqueci. Mas, que te pareceu a mãe dela? E, já agora, o pai?  
- A senhora pareceu-me um nadinha presumida. Mas não tivemos assim tanto tempo juntos para avaliar …
- Não foi assim tão pouco tempo, começámos a jantar às oito, saímos do restaurante às onze e meia, …
- O pai pareceu-me uma pessoa sensata, é mais velho que ela quinze anos, não sei se deste por isso. Gosta de comer mas também gosta de cozinhar, lá em casa quem cozinha é ele…
- Percebi que é, que foi engenheiro electrotécnico, agora está reformado. E ela?
- Trabalhou numa agência de viagens até há pouco tempo. É muito viajada. Tanto que fartou, e agora só sai de casa para jogar tarot com as amigas.
- E a Vera, o que é faz a Vera?
- É pianista. A mãe também toca piano.
- Pianista profissional?
- Fiquei com essa ideia. O Alexandre conheceu-a no Algarve, há dois anos, no verão, num hotel onde ele se hospedou. Ela tocava no piano-bar.  
- Hum! Pianista em piano-bar… Noutros tempos era arte masculina.
- Já não há artes masculinas.
- Pois não, e ainda bem. Anda o Alexandre assim com tanto dinheiro para se hospedar no Algarve em hotéis com piano-bar?
- Não faço a mínima ideia. Há tantos anos que não vamos ao Algarve no verão…
- Há dois anos, dizes tu … Mas há dois anos não estava ele como supervisor da construção de um supermercado no norte? Já vivia no Porto nessa altura, não vivia?
- Devem ter passado a viver juntos no Porto a partir desse verão. Acabou o verão, ela voltou ao Porto, e juntaram-se - Ele disse-te isso?
- Não! O Alexandre nunca disse o quer que fosse sobre isso, e agora também não teve tempo … ainda que quisesse dizer. É uma suposição minha.
- Faz sentido. E ela, o que é ela faz agora?
- Não faço a mínima ideia. Provavelmente, toca piano, ensina piano … Dentro de algum tempo, saberemos. Gostaste de ver os teus netos?
- Que pergunta! Gostei, claro que gostei muito.
- São parecidos com o Alexandre, não são?
- Com dois dias de vida, achas que já podes ver parecenças?
- Eu acho. Tu, não?
- Hum! Com boa vontade, sim. Com muito boa vontade. Os nascituros parecem-me todos iguais. Para mim, e para já, o mais importante é que aqueles dois bebés são meus netos.
- E meus!
- Também, também são teus, é verdade.
- E dos pais dela …
- É uma propriedade partilhada …
- Que ideia é essa, propriedade partilhada?
- Então os netos são meus, também são teus, mas também são netos dos pais dela. Meus, teus, deles, … não são?
- Brincamos às palavras?
- Por que não? Distraímos o sono e encurtamos o tempo da viagem. Queremos ter filhos, queremos ter netos, porquê? Será por instinto de preservação da espécie que os humanos se reproduzem? Ou por ambição individual de garantia de continuidade? Ou por instinto de propriedade?
- Que disparate!
- Talvez, mas tens de concordar que dentro da espécie humana os comportamentos são frequentemente bizarros do ponto de vista dos que se conformam com os padrões considerados normais. Tive uma colega, cheguei falar-te do caso, não sei se recordas, que, quando a empresa mudou de local, ela passou por uma crise neurótica que a abalou bastante apenas pelo facto de lhe terem distribuído uma secretária, uma mesa de trabalho, que não era a sua, repara bem, a sua secretária, no local anterior. O instinto de propriedade explica, muito mais do que à primeira vista supomos, os comportamentos humanos.
- Há muitos tipos de paranóia, esse é um deles.
- O instinto de propriedade observa-se até nos mais pequenos. Quantas vezes não vimos já crianças à bulha por causa da posse de brinquedos? É assim, desde que nascemos. Há dias, contava-me um homem com duas filhas gémeas, têm agora quatro anos, que as miúdas disputam a propriedade dos seus vestidos, que os pais consideram iguais, se numa delas, por engano, a mãe ou o pai vestem uma com roupa que elas consideram pertencer à outra. Como é que elas distinguem o que, para os pais, é igual, os pais não sabem, mas elas sabem.
Por capricho da natureza saíram-nos em sorte dois netos ao mesmo tempo quando já não tínhamos esperança nenhuma de ser avós. De um momento para o outro ficámos mais ricos. Eu sinto isso. Tu não sentes?
- Se a riqueza de cada um aumentasse com o número de filhos não estavam a decrescer os nascimentos.
- Esta riqueza não se mede apenas pelo número mas pela qualidade do número. Nas classes médias para garantir a maior capacidade possível aos filhos o número conforma-se com as possibilidades do casal.
- É uma perspectiva muito redutora a um sentido materialista da vida…
- Não disse nada de novo.
- …onde não entra o amor …
- Entra, claro que entra…
- Boa piada! Boa, mas pífia.
- …entra mais tarde…
- É precisamente o contrário. Os filhos são a concretização do amor …
- São, ou devem ser?
- O amor é dádiva, é um sentimento diametralmente oposto ao sentimento de propriedade. Salomão entregou a criança à mulher que renunciou à posse do filho para garantir-lhe a vida.
- Concordo inteiramente…
- Estás baralhado, não estás?
- Creio que não. A mãe só teria perdido a criança se ela tivesse sido partida ao meio. Mantendo-se viva, a criança continuaria a ser sua, pronome possessivo em sentido afectivo, onde quer que esta se viesse a encontrar.
- Que horas são agora?
- Meia-noite e meia. Estamos dentro do horário.
- Francamente, não sei se esta conversa me distrai ou me faz sono …
- Inventemos outra!
- A tua teoria do possessivo …
- …afectivo …
- … para a explicação da reprodução da espécie humana é hilariante. Ocorreu-te agora para não adormeceres ou já tinhas pensado nela? Afinal se temos os nossos filhos e os nossos netos, também temos os nossos tios e as nossas tias, os nossos sogros e as nossas sogras, os nossos amigos e os nossos inimigos, a nossa saúde e as nossas doenças, …
 - …O Pai Nosso e Nossa Senhora …
 - A vida num registo contabilístico?
 - Não, de modo algum. Mas penso que concordas que perpassa por cada ser consciente um fluir constante de emoções que vão alterando, por vezes dramaticamente, positiva ou negativamente, a sua sensação de felicidade ou bem-estar. O nascimento dos nossos netos, sinto-o como uma dádiva da sorte que aumentou muito o gosto da minha vida. Porquê?
- A humanidade reproduz-se por instinto de continuidade da espécie? Então porque se matam os indivíduos uns aos outros? Por instinto de continuidade da espécie ou pela ambição de continuidade na descendência de cada indivíduo?
- A reprodução não decorre de um instinto mas de uma sequência ditada pela evolução biológica das espécies. O instinto de continuidade só acontece mais tarde. No passado, aliás, não tão longínquo assim, medindo o tempo pela escala da evolução da espécie humana, a procriação acontecia sem planos nem quaisquer outros meios contraceptivos. A natureza compensava com elevada fertilidade a elevada mortalidade precoce.
- Portanto …
- Portanto, do relacionamento natural entre sexos opostos resulta a sobrevivência e a multiplicação da espécie.
- Crescei e multiplicai-vos!
- Sim, foi assim mesmo. Nesses versículos bíblicos resumem-se os ditames primordiais ordenados pela natureza.
- E o amor não entra na peça.
- Entra, já te disse que entra …
- Não dei pela entrada. Talvez tenha passado momentaneamente pelas brasas.
- O que é o amor?
- É química, agora dizem que é química. Que te parece?
- É dádiva, disseste tu, e eu concordei, é uma entrega. Mas antes de haver amor, a atracção que conduz, ou não, às relações sexuais entre indivíduos é o resultado de um processo químico que mobiliza os recursos hormonais sem que, à priori, haja qualquer intenção procriadora, e o amor, quando acontece, só acontece mais tarde.
- Não há amor à primeira vista.
- Não, penso que não. Poderá haver paixão, atracção descontrolada, amor, creio que não.
- O Alexandre conheceu a Vera no Algarve, não sabemos nada sobre o que aconteceu entre eles no espaço de dois anos, soubemos anteontem que tinham nascido dois gémeos, nossos netos. Quando é que aconteceu o amor?
- Não sei. Pode não ter ainda acontecido. Tu sabes?
- Mas isto entende-se? Ficas extasiado porque, inesperadamente, sabes que és avô e até consideras que, por esse motivo, ficaste mais rico, mas duvidas que esse acontecimento seja fruto do amor entre os pais dos teus netos.
- Não digo que duvido, digo que não sei. A natureza provoca o acasalamento mas o acasalamento não pressupõe o amor.
- É muito freudiano.
- É? Nunca li Freud.
- Inversamente, pode haver amor sem acasalamento.
- Hoje, com os meios contraceptivos que existem, só tem filhos quem quer. E só por amor, julgo eu, um casal quer ter filhos.
- Os contraceptivos permitem a evidência do amor. É isso?
- Não percebo a tua pergunta.
- Quando não existiam contraceptivos, mas apenas alguns cálculos falíveis, podia ou não ter existido amor na relação que fecundou. Agora, porque existem os contraceptivos, se bem entendi o teu raciocínio, se há nascimento é porque há, ou houve até ao momento da concepção, amor entre os que o conceberam. Ou entendi mal?
Antes, não havia possibilidade de prova …
- Que horas são?
- Quase uma.
Há dias, li algures que alguns psicólogos evolutivos …
- O que é isso?
- Suponho …
- Não tens a certeza.
- Não. Não tenho a certeza, mas suponho que propõem a explicação das características mentais e psicológicas como adaptações e, portanto, resultantes da evolução humana, da selecção natural e da selecção sexual…
- …
- Já dormes?
- Não. Fechei os olhos para ver se percebo onde queres chegar.
- Quero chegar a casa antes das três …
- Diz lá, então, o que dizem os evolutivos.
- Os psicólogos evolutivos defendem que os humanos antigos, que viviam do que a natureza lhes oferecia, viviam em bandos recolectores que não eram compostos por famílias de casais monogâmicos. Não existia propriedade privada nem parentalidade. As mulheres poderiam ter relações sexuais com diversos homens, e mulheres, ao mesmo tempo e todos participavam na criação dos filhos. Como nenhum homem podia ter a certeza absoluta de qual das crianças era sua, todos dedicavam a mesma atenção pelos mais pequenos.
- …
- Os que defendem esta teoria argumentam que as frequentes infidelidades e divórcios são resultado da transição da vida em bandos comunais para a vida em famílias nucleares, sujeitas a relações monogâmicas incompatíveis com a natureza da evolução biológica …
- O quê?! Os evolutivos defendem o fim da monogamia?
- Defendem que a monogamia é contra natura.
- E a ti, o que te parece?
- É uma teoria.
- Sei. Mas parece-te …digamos, aceitável?
- Não me parece nada. Não sou psicólogo. Recordei-me disto porque, segundo alguns psicólogos, …
- Evolutivos …
- … evolutivos, o homem primitivo reproduzia-se por instinto de relação sexual desprovida da exclusividade que sustenta o princípio da família monogâmica. E o amor, enquanto dádiva e dedicação, era conjunto, as responsabilidades paternais partilhadas, o conceito de parentalidade ignorado.
- E a evolução vai no sentido de voltar ao princípio, porque a família é um instituto social contra natura …
- Não, não me recordo de ter lido isso, mas parece evidente que o instituto familiar apresenta sinais progressivos de fractura. Até onde prosseguirá o avanço dessa tendência demolidora, ninguém saberá. Por agora o edifício ainda parece suficientemente robusto mas a evolução da espécie só é perceptível à distância remota de milhões de anos e a evolução social equilibra-se entre avanços e recuos.
- Em conclusão …
- Só concluo que são agora duas e um quarto e estamos agora a menos de meia hora de casa.
- Estou podre de sono.
- Quem me dera poder dizer o mesmo.
- Mas tu disseste que fazíamos a viagem de noite para teres a certeza de poderes estar amanhã a horas no Instituto. O que é que te impede de dormires pelo menos umas poucas horas descansado?
- Não sei, a verdade é que não sei.
- Mas que excitação! Toda a gente tem netos. Ou pensas que só tu tens netos?
- Nem toda a gente, mas quase.
- Há quem tenha dezenas…e não sei se serão mais felizes por isso. Pensas que te saiu a sorte grande?
- Como sabes, nunca joguei. Sempre pensei que a sorte grande traz sempre grandes complicações ao sortudo.
- E um neto, não?
- Estás pessimista?
- Esquece e adormece.
- Se houvesse interruptores do pensamento à venda, comprava um.



2016, Dezembro, 24


- Então?
- Então, nada.
- Nada? A polícia não foi lá?
- Foi, claro que foi. Mas não encontrou ninguém em casa. Ela deve ter saído com os filhos há dois ou três dias para parte incerta, a acreditar no que disse o homem da mercearia em frente.
- Outra vez!
- Disse que os viu sair, não se recorda se há dois ou três dias, e não deu contas que, entretanto, tenham regressado. E que à noite não tem vislumbrado sinais de luz no interior da casa. Portanto, deve ter saído, para onde, não se sabe. Enfim, o costume … Quantas vezes é que já entrou nesta cena?
- Tantas, que até já lhe perdi a conta.
- Eu, não. Tenho tudo apontado.
- Tudo? Tu apontas tudo?
- Já te tenho dito que estou a apontar tudo. Se não já tinha caído para o lado. O Alexandre, por onde anda?
- Saiu daqui há duas horas, quando a chuva abrandou. Tem estado um temporal medonho. Há carros de bombeiros a correr por todos os lados. Não me lembro de outra véspera de Natal assim. Para nós, então, é aterradora. Foi até lá abaixo ver como vai a corrente da ribeira que passa junto à casa. A casa é dele, mas é, sobretudo, a segurança dos filhos que mais o apoquenta.
- E tu, soubeste mais alguma coisa?
- Soube que as crianças há já um mês que não têm ido à escola.
- E o que é que tem feito a directora?
- Disse-me que lhe telefonou várias vezes, mas ela só atendeu uma, perguntou-lhe se as crianças estavam doentes, como as crianças não tinham ido à escola poderiam estar doentes, não é? Mas não, respondeu ela, as crianças estavam muito bem de saúde, que não havia nada a recear, que tinha decidido voltar a ser ela a educadora dos filhos porque para isso tem habilitações mais que suficientes … Quanto ao convívio com outras crianças, garantiu que leva os filhos a conviver com outras crianças da idade dela …
- Onde?
- Como é que ela sabe?
- Devia ter perguntado.
- Podia … poder, podia, não sei se devia, não sei. Ninguém quer embrulhar-se em problemas que não lhe dizem directamente respeito.
- É a total ausência de sentido moral colectivo. Cada um que se desenrasque.
- É a sociedade que construímos.
- Disseste que o Alexandre saiu há duas horas … já devia ter voltado, não?
- Com este dilúvio é bem possível que a enchente da ribeira possa chegar ao rés-do-chão.
- Hum! E a polícia não o terá visto?
- Não devem ter visto. Se tivessem visto ter-me-iam dito, não te parece?
- Foste lá com eles?
- Não fui com eles mas fui atrás deles. Mas também não importa assim tanto.
- Eu penso que importa … a casa é dele, os filhos são dele, é bom que a polícia saiba que o preocupa a segurança dos filhos. Por acaso, não está ninguém em casa …
- Não sabemos …
- A polícia diz que não encontrou lá ninguém.
- Arrombou a porta?
- Não, não podia. O mandato judicial não os autoriza a tanto. Mas o que é que queres dizer com isso? Que ela poderia estar lá dentro e não abrir a porta à polícia?
- É evidente. Para mim é evidente, já fez isso várias vezes. Estava em casa, viemos a saber mais tarde que estava em casa, mas não abriu a porta. A nós, nunca abriu a porta.
À polícia já tem aberto, mas limpa o rabo com as intimações da polícia.
O polícia, como a professora, como a pediatra, limitam-se a cumprir os mínimos. Imagino a repetição da cena: os polícias chegam, um toca a campainha duas ou três vezes enquanto o outro olha para o chão a ver se não vê nada, ninguém responde porque as crianças estão intimidadas e intimadas a estar em silêncio, e os polícias dão meia volta a caminho do posto, de mais a mais estava a chover, podiam molhar-se muito, e não há verba na esquadra para mudanças de roupa.
- Falaste com a pediatra?
- Falei. Foi muito evasiva, no estilo não me comprometam. Disse que as crianças estão benzinho, vá lá saber-se o que é que isso quer dizer, talvez quisesse dizer que podiam estar melhor, continuam no quartis mínimos, em peso e altura, mas os pais também nem são altos nem fortes. Perguntei-lhe se sabia que tipo de alimentação está ela a dar-lhes, porque, disse-lhe eu, ela é tão convencida em ciências de nutrição como em ciências pedagógicas. Mas a pediatra não tinha registo dos hábitos alimentares da mãe nem do tipo de alimentos que está a dar aos filhos. É outra a sacudir as mãos, e não a comprometam…
Depois de os polícias terem voltado à esquadra não soubeste o que pensam eles fazer agora? Vão voltar lá ou dão mais este mandato judicial por cumprido? Não falaste com o chefe? Demoraste-te tanto tempo por lá …
- Falei, falei. Mal vi os polícias regressarem, encostei o carro ali perto, e entrei no posto.
O chefe tinha saído. Quando voltaria, ninguém sabia. Sentei-me e disse, posso esperar.
Daí a pouco entraram dois guardas a segurar um rapaz, dezassete, dezoito anos, alto e forte, cabelo rapado, algemado. Percebi depois que tinha sido apanhado a bater na namorada, à saída da escola. Um banco à entrada de uma esquadra de polícia é um local com uma visão nítida sobre algumas das mais correntes mazelas da sociedade. Uns minutos depois, quando o agressor já tinha sido levado dali, da entrada, entraram no posto dois estrangeiros com queixas de terem sido roubados no metro. Reparava eu nos estrangeiros meio espantados perante a burocracia exigida pela denúncia do roubo que os deixara sem documentos nem dinheiro, quando um agente me tocou no ombro e me fez sinal para o acompanhar. Percorremos um corredor, não mais que dez, quinze metros, se tanto, o agente bateu na porta ao fundo, abriu a porta, levantou-se para vir ao meu encontro, o chefe da esquadra. Aliás, a chefe, uma oficial jovem, na casa dos trinta, não mais que trinta e cinco anos, completamente fora do estereótipo com que nos habituámos a visualizar os comandantes da polícia.
Que posso fazer por si?, perguntou-me ela.
Não sei, respondi eu, mas gostava de lhe contar a razão porque estou aqui.
Se não demorar mais que vinte minutos, conte, tenho uma reunião a seguir, disse ela.
Aproveitei a oportunidade e desabafei, ainda que soubesse à partida que não iria obter qualquer apoio.
E contei-lhe a nossa história, tantas vezes repetida a quem nos pergunta e não compreende, porque é incompreensível, como é possível que alguém, mãe ou pai, possa sem justa causa, impedir a presença do outro progenitor junto dos filhos de ambos.

Disse-lhe:
Há oito anos, recebemos, eu e a minha mulher, a mais extraordinária notícia, porque também a mais inesperada das notícias das nossas vidas. O meu filho anunciou-me que era avô. Fiquei tão cheio de contentamento que não me cabiam naquele momento quaisquer interrogações que, a propósito, vim a reconhecer pouco depois, deveria ter feito. Um êxtase daquele tamanho leva algum tempo a interiorizar e, quando caí em mim, o meu filho tinha saído a correr para a maternidade, e eu não soube dizer à minha mulher, que entrou em casa pouco de pois, mais do que eu apenas sabia: éramos avós, pela primeira vez, quando já tínhamos, aos sessenta anos, perdido a esperança de ter um neto.
Afinal tivemos dois, gémeos, um casal. Naquela hora, sentimo-nos os avós mais felizes do mundo.
No dia seguinte, estávamos no Porto para ver os nossos netos na maternidade. Curiosamente, quando nos acercámos dos pequenos berços, eu disse, cheio de satisfação, para uma senhora que estava ao lado: são os nossos netos! Ela olhou para nós, de modo inexpressivo, e disse: Não, estes são os meus! Mas não houve disputa das crianças. Daí a momentos, apareceu o nosso filho e fez as apresentações. Os gémeos eram os nossos netos e também netos daquela senhora. Convidámo-los para jantar no dia seguinte.
Vivemos quatro anos felicíssimos, apesar de alguns sintomas de comportamento para nós inabituais mas que levámos sempre à conta das nossas diferenças de idade. Se o casal se sentia feliz, nós também. Ainda que, como disse, estranhássemos que, por exemplo, ela não aceitasse os repetidos convites que fizemos para nos visitarem, que recusasse participar em convívios alargados das duas famílias, que nunca nos convidasse para participar nas festas de aniversários das crianças. Até que um dia, ainda hoje não sabemos porquê, a mãe das crianças recusou continuar a coabitar com o pai dos filhos de ambos.
- E que disse ela? Que os divórcios são cada vez mais frequentes…
- Não, não disse. Manteve-se sempre calada mas atenta. Tanto que não atendeu o telefone nas duas vezes que tocou. E continuei.
Aconteceu um clique qualquer, chamo-lhe clique porque não sou psicólogo nem psiquiatra, e as crispações constantes nas relações do casal tornaram insuportáveis a vida em comum. O meu filho foi forçado a sair de casa, que adquiriu com dinheiro e crédito obtido por ele, para salvaguardar na medida do possível, naquelas condições, o equilíbrio psicológico das crianças.
Subscreveram então um acordo de separação, homologado por um juiz, que prescrevia as responsabilidades do nosso filho, que suporta integralmente as despesas porque ela não tem quaisquer rendimentos, viemos a saber depois que nunca teve actividade remunerada regular, e o direito de visita e convívio com as crianças e de participação nas opções de modos da sua criação, nomeadamente da sua educação. Mas, desde então, só o pai cumpre as suas obrigações porque a mãe passou a recusar todo e qualquer contacto do pai com os filhos. É claramente um exemplo de alienação parental, um caso extremo, em que não falta sequer a recusa da visita dos avós paternos aos seus queridos netos. Hoje, véspera de Natal, tentámos mais uma vez ver os nossos netos e oferecer-lhes as lembranças típicas desta época do ano. Nunca deu resposta às nossas tentativas de contactos telefónicos, aos nossos e-mails, às nossas cartas enviadas sob registo. Hoje, não nos abriu a porta, depois não abriu a porta aos agentes. Mas pior, bastante pior, que a tortura que esta recusa nos causa, ao nosso filho e a nós, é a personalidade das crianças que está a ser profundamente ferida.
Só, então, ela me interrompeu: - Informaram-me que a mãe não estava em casa.
- O homem da mercearia disse que já não a vê há dois ou três dias. O que não quer dizer que ela não se encontre lá dentro com as crianças, obrigadas ao máximo silêncio quando a campainha toca.
- Não temos indicação judicial para arrombar a porta.
- Entendo perfeitamente. Contudo, se partirmos do princípio que não está em casa teremos de admitir que estaremos perante um caso de rapto … um crime de rapto, melhor dizendo.
- Não nos compete fazer essa avaliação.
- Então, desculpe-me a insistência, quem pode?
- O Juiz. Vamos enviar a tribunal relatório dos resultados das diligências de hoje. E aguardar. Há que aguardar.
- Não temos feito outra coisa durante estes anos de ansiedade e desespero.
- Falei com os agentes que fizeram a diligência por ordem do tribunal, o vosso caso é suficientemente conhecido aqui nesta esquadra. Quantas vezes já foram agentes nossos entregar à mãe das crianças a ordem para cumprir a decisão do juiz?
- Doze. Todas frustradas. No início, quando estava em casa e decidia abrir a porta aos agentes, dizia que sim que ia cumprir, mas não cumpria. Agora invoca que as crianças não querem estar com o pai, que detestam o pai, um caso típico de manipulação facílimo neste caso, as crianças têm apenas seis anos. Não estamos perante um caso de violência doméstica, violentíssima, se pesarmos os danos causados psicológicos causados ao meu filho mas também, sobretudo, às crianças? Não estamos perante um duplo crime que atinge com a maior brutalidade a personalidade futura das crianças?
- Não me compete, aliás as minhas funções impedem-me de fazer quaisquer comentários acerca do que me disse, e que aqui conhecemos muito bem. Cumprimos, neste caso, as decisões do juiz, não ficamos aquém, não podemos ir além. Somos parte do poder executivo, compete aos juízes a interpretação das leis, compete ao parlamento legislar. Sinto muito não poder ajudá-lo.

E assim me despachou.
- Pura perda de tempo …
- Nunca se sabe. Temos sempre concordado que o silêncio joga contra nós e a favor dela.
- E, agora, que fazemos?
- Vamos embora logo que o Alexandre chegue. Já tentaste saber pelo telemóvel se ainda vai tardar a chegar?
- Estou preocupadíssima com ele. O telefone toca, toca, toca, mas o Alexandre não atende.
- Talvez nem tenha o telemóvel com ele. Não é invulgar esquecer-se do telemóvel ou estar a pilha descarregada.
- Pode ser.
- Disseste que ele tinha ido ver como ia a corrente da ribeira junto à casa.
- Foi o que ele me disse quando saiu daqui.
- Vou até lá.
- Não desapareças tu também.
- Não desapareço, fica descansada. Se, entretanto, chegar o Alexandre ou tiveres notícias dele, telefona-me de imediato.

- Já estás de volta???
- Quando ia a sair quando recebi uma chamada da polícia …desculpa-me, mas estou com dificuldades em respirar …o …o …o …o Alexandre está preso …está no posto da polícia …
- Do mal, o menos. Antes preso que desaparecido …Vá lá, descansa um pouco, tenta respirar normalmente, …se ele está preso, depressa o hão-de soltar …Entretanto, vou ligar para a recepção a ver se nos indicam um médico …
- … Médico nenhum …
- Porquê?
- Porque … não quero ficar doente …
- Boa piada …Está bem, não se pede que venha um médico. Então, descansa um pouco, e só me dizes o que sabes quando te sentires a respiração normalizada …está bem? Aliás, vou proceder de outro modo: telefono para a polícia a perguntar porque se encontra preso o Alexandre. Se me disserem que tu estás informado dir-lhes-ei que estás em estado de choque…
- …estou…estou …


2016, Dezembro, 25

- Vamos!
- Vamos aonde? O médico recomendou que não devemos fazer hoje a viagem…que é preferível esperar até amanhã. Até porque amanhã, logo de manhã, uma vez esclarecida a confusão dos polícias, a chefe do posto libertará imediatamente o Alexandre. Não há nenhuma dúvida acerca do assunto. Houve um quiproquó, os guardas já reconheceram isso, não libertam hoje o Alexandre porque só a chefe do posto tem autoridade para o fazer. Aliás, foi ela quem deu ordens para que, para além dos dois guardas que foram bater à porta e deram meia volta para o posto, outros dois ficassem de vigia às traseiras da casa para observarem se havia movimento lá dentro. O Alexandre foi apanhado como suspeito de tentativa de intrusão quando observava a corrente da água a engrossar na ribeira. É uma situação caricata, ninguém tem dúvidas, o Alexandre disse quem era e a razão porque estava lá, mas os guardas tinham ordens a cumprir e o cumprimento das ordens é uma tarefa que implica deduções subjectivas. Aqueles guardas, deu-lhes para ali. Para apresentar serviço ou por outro motivo qualquer, entenderam levar o Alexandre para o posto e a chefe que decidisse. Mas, em véspera de Natal, a chefe tinha saído mais cedo, e os contactos estão estritamente proibidos, salvo casos de força maior, e, para os guardas em serviço no posto, o caso do Alexandre não é enquadrável, para utilizar as palavras do agente que atendeu o telefone. Presumo que a ti te disseram o mesmo.
- Disseram-me exactamente a mesma treta.
Agora já me sinto melhor, tu conduzes, fazes-me esse favor, conduzes durante toda a viagem …prefiro ir a viajar, a ver a paisagem aparecer e desaparecer, a ouvir música, temos alguns bons discos no carro, não temos? de música clássica, está a apetecer-me ouvir Bach, …Não quero ficar aqui encurralado durante o dia de Natal …
- Podíamos estar com o Alexandre. Estou certa que os guardas nos deixarão estar com ele …
- Com ele, como?
- Lá no posto …
- Não, não, e não! Não me peças isso por favor! Penso mesmo que o Alexandre prefere estar só do que nos ver os dois encurralados com ele. Estar com ele para quê? Para chorarmos os três? Podemos falar com ele pelo telefone?
- Penso que sim.
- Se admites que os guardas nos deixariam estar com ele nos curros também tens de admitir que permitam que possamos falar com ele pelo telefone. Quem permite o mais permite o menos …é, ou era, dos livros …
- Vamos lá então, se assim queres!
- Quantas vezes já fizemos, com o mesmo propósito, esta viagem?
- Pelas minhas contagens, é a quinquagésima nona viagem.
- Não pode ser.
- Essa é boa. Por que é que não pode ser?
- Porque as viagens de volta são sempre de número par. Ninguém volta sem ter ido.
- Tens toda a razão. É a sexagésima.
- Continuas a escrever todos os acontecimentos relacionados com esta vergonha da justiça. Até as viagens?
- Tudo, continuo a escrever tudo.
- E isso não te amargura mais?
- Não, de modo algum. Escrevo para não ter que suportar constantemente a dúvida de poder esquecer alguma coisa. Mas não me parece boa ideia levar toda a viagem a recalcar o mesmo assunto. Vou colocar “Arte da Fuga” aqui no gira-discos …
- Gira-discos…Há tanto tempo que os discos deixaram de girar.
- Pois é, agora vivemos na idade do laser …Então, faça o favor de entrar Master  Johann Sebastian Bach na idade do laser…Que tal?
- Divino.
- Onde é que estamos?
- Quase a chegar ao quilómetro 84. Queres que pare para beber uma bica e comer qualquer coisa?
- Tu queres?
- É como tu quiseres. Se quiseres, paro. Se não, continuamos.
- Prefiro continuar. Não estou a sentir-me muito bem. Prefiro ir directo para casa. Há lá alguma coisa que se coma?
- Há sempre. Mas se tomasses agora qualquer coisa, talvez te sentisses melhor. Digo isto, mas tu decides. Hoje és tu que decides. Dormitaste, percebi que dormitaste.
- Como é que sabes? Ressonei?
- Um pouco. Quando não pões a juca, percebo logo se estás a dormir ou acordado…
- A juca …onde é que tu foste arranjar esse nome?
- É uma piada. Penso que já te contei. Contei, tenho a certeza.
- Talvez. Conta lá outra vez. Conta-me, por favor, alguma coisa com piada.
- Como sabes …
- Andaste num colégio de freiras …Até aí, recordo-me …
- Não andei, passei por lá, apenas durante três meses. Ao fim de três meses disse à minha mãe que não queria voltar para lá depois das férias do Natal …Tinha sete anos, e a minha mãe aceitou o meu pedido. Nunca mais voltei ao colégio das freiras…
- E a juca, como é que aparece a juca? Já me disseste, recordo-me que já me disseste, mas agora não me lembro.
- A Juca era uma freira, Irmã Maria de Jesus, Juca para usos internos. Era ela a professora do ensino primário, era a nossa professora. Quando a Juca aparecia fazia-se um silêncio total. Poderíamos ouvir as moscas zumbir, se houvesse moscas no inverno. Com aquela idade, eu imaginava as freiras como uns seres de outro mundo, vestidas de capa preta sobre roupões brancos, como as andorinhas, capazes de voar de um lado para o outro, a alimentar-se do ar. As casas de banho tinham entrada directa a partir do refeitório, e, no refeitório, o silêncio só era perturbado pelo soprar a sopa, que vinha sempre quente demais. Um dia, vimos a Juca levantar-se da mesa e entrar na casa de banho. Passados uns momentos, ouvimos um estridente pum! Que ecoou pelo meio do silêncio do refeitório. E a santidade etérea das freiras que a minha imaginação criara caiu redondamente no chão naquele momento. 
Apesar da imagem da personagem penso que é mais simpático chamar juca que máscara aquela coisa que ajuda a respirar. O que é que tu achas? Não achaste piada? Conto-te isto porque costumavas achar piada …
- Não estou a sentir-me bem. Onde estamos?
- A chegar a Alverca.
- Não! Não! Não!
Não me deixes?
Ouviste?
Estás a ouvir-me?
Diz-me que me estás a ouvir!!!
Por favor!....
Por favor!...
Por favor! ….
Não me deixes só!!!
Não!!!!……………………………………………………………


*(Primeira parte de um pesadelo que cruza casos reais de alienação parental, uma forma, frequentemente violentíssima, de violência doméstica)