Sunday, January 14, 2018

OS MEUS TIOS

(Ao Artur M., que me contou uma história diferente)

                                    

Estávamos sentados no alpendre voltado para o quintal da casa a olhar a chegada da primavera a pintar-se no pomar e no jardim que o Tio plantou ali desde quando, há anos sem conta, ele e a Tia se mudaram para lá. Para acompanhar a conversa a Tia tinha fervido água e, com duas rodelas de limão e uma torrada de um papo-seco, tínhamos um chá quentinho para toda a tarde. E senti que a tranquilidade da tarde musicada pela passarada e pelas abelhas a compor aquele quadro, era, para além da minha presença, o melhor lenitivo para a amargura que a despedida inesperada do Tio tinha deixado na alma da Tia. O que é a alma Tia?, perguntara-lhe, um dia, era ainda garoto. A alma é o que sentimos, se sentimos temos alma, estás a ver? E os animais, têm alma? Pois claro que têm. Todos os seres vivos têm alma, menino. As flores também? Aí, a Tia tinha desviado a conversa. Não os via há três anos, tinha cancelado todos os compromissos para poder estar ali com ela, ainda que os tempos da viagem e os atrasos nas ligações de voos me tenham obrigado a chegar atrasado à despedida do Tio. Aqueles tios, sem filhos, tinham-nos adoptado, a mim e ao meu irmão, seis anos mais novo que eu, quando o pai e a mãe desapareceram num acidente de viação. Na falta de filhos, a Tia tinha dado lar aos instintos maternais rodeando-se de uma prole zoológica mesmo antes de nós, os sobrinhos, termos passado a viver com eles. Cães, tinha dois, vadios, recolhidos na rua, sem raça definida mas com atitude bastante para a Tia garantir que eram setters irlandeses, com pedigree, nunca se preocupara em confirmar-lhe a linhagem, três gatas e três gatos, uma galinha, a Virgínia, e um coelho branco, o Pimpão. Para além deste quadro permanente, o zoo doméstico contava regularmente com convidados ou seguidores do efectivo privado, aos quais a Tia dedicava igual carinho e distribuía o mesmo sustento.  
A partida do Tio foi, para mim, e para o meu irmão, que deve chegar aqui ainda esta tarde, inesperada, as notícias de que nos ia dando conta nos últimos tempos não referiam qualquer preocupação com a sua saúde, mas dizia-se inquieto com o comportamento da Tia que, palavras suas, não ia andando bem, sem adiantar mais. Quando se reformou, passou a dedicar a maior parte do seu tempo à horta e ao jardim. Dizia ele, que era dos serviços externos, e ela, dos internos, e que se davam bem com a partilha. Dez anos mais novo que a mulher, tinham-se conhecido quando o Tio, que era polícia, durante um serviço de ronda ao quarteirão, conseguira apanhar um gatito, que ela mimava no colo, dera um salto para a rua. Entre ambos tinham os anos estabelecido um acordo implícito, nem a Tia questionava o Tio sobre as suas actividades, incluindo as deslocações ao exterior, expressão dele para almoços com amigos e antigos colegas na esquadra, nem ele reparava na dimensão e no crescimento do zoo nem dava sinais de pouco satisfeito com a liberdade concedida aos bichos em todos os cantos da casa. Quando não vagueavam pelo quintal ou pelas redondezas, sem que a Tia receasse contactos exteriores que lhes arruinassem o pedigree, os caninos sentavam-se em imobilidade de porcelana esfíngica neste alpendre onde discorro com a Tia temas triviais ao mesmo tempo que se me desfilam na memória estas recordações. Os gatos, quando não estavam por fora, deambulavam preguiçosamente pela casa ronronando à volta dos passos da Tia, a Virgínia, quando não debicava no quintal, a testar os limites da pachorra do Tio, ensaiava tentativas em voos frustrados para saltar o muro que dava para o quintal vizinho onde cantava um galo. Mas era o coelho branco, enorme de velho, sempre enrolado nos braços da Tia, que desfrutava o calor do carinho dela. De ver, durante os anos em que vivemos nesta casa, aquela quase umbilicalidade  com o bicho, insinuou-se-nos, a mim e ao meu irmão, a ideia de que coelho cozinhado era petisco para antropófagos. Estava o desfile das minhas recordações neste ponto e a conversa numa discreta lisonja minha sobre o bom aspecto da Tia, não me queixo da aparência, disse ela, estou cada vez mais gorda, mas agora é tarde para voltar ao que era, quando, a rodar o corpo para se voltar para trás, chamou, Oh!, Olegário, traz-nos mais um pouco de açúcar, este limão assim é uma amargura. Não veio o açúcar nem o Olegário, a conversa continuou como se aquele parêntesis sem sentido não tivesse acontecido, mas o insólito bloqueou-me por instantes o fluir das recordações. E, só então, dei conta que, desde que chegara não vira cão nem gato em casa, nem galinha no quintal, nem sombra do Pimpão no regaço espaçoso da Tia. Por um momento ínfimo, assaltou-me a dúvida óbvia, felizmente ultrapassada em velocidade por um relâmpago de clarividência, e repôs-se-me na mente a projecção do passado, agora sobressaltado pela entrada de um Olegário desconhecido.     `
Aquela casa, mais do que um zoo, era uma maternidade zoológica, só não procriavam o Tio e Tia por razões desconhecidas, a Virgínia por falta de golpe de asa, o Pimpão por não sair do colo da Tia. Cães e gatos cresciam e multiplicavam-se, a Tia continuava a usar o processo com que encontrara o Tio para fazer chegar a cada lar do lugar exemplares com raça garantida pela supervisão da criadora. À noite dormiam todos no mesmo quarto: na cama, o Pimpão, os tios e os gatos, aos pés da cama os caninos, a Virgínia empoleirada no alçado traseiro da cama. Ao fim de duas horas, estavam as divagações a mostrar cansaço, quando entrou em casa o meu irmão. Já não nos víamos há anos, estávamos ambos na mesma, reconhecemos com recíproca falta de verdade, ele, por residir mais próximo que eu, visitava os tios com alguma frequência, uma vez por ano, às vezes duas. Ao rosto da Tia veio a felicidade, logo traduzida em lágrimas de contentamento, de ver novamente juntos os sobrinhos. Durante as nossas duas horas de conversa, ela não recordou o Tio e eu evitei tocar, mesmo que de passagem, no súbito acontecimento que nos roubara o Tio. Chegado o meu irmão, nas conversas agora trocadas a três, a morte do Tio continuou ausente.
Sabes quem é um tal Olegário, perguntei ao meu irmão quando a Tia se levantou para, disse ela em tom de confidência, ir começar a fazer o jantarinho para os seus meninos. Olegário? Ah! Tu não sabias?
O Olegário foi o primeiro marido da Tia. Morreu de tifo por ingestão de uns tremoços que ela tinha comprado na praça. E, ela, não comeu? Não, ela nunca gostou de tremoços. Já agora, esclarece-me mais uma coisa: da última vez que cá estive, a casa continuava a ser o zoo em que ambos tínhamos vivido. Hoje, não resta nenhum exemplar, porquê?
Resta um, respondeu ele, suponho que ainda reste o Pimpão, os outros foram desaparecendo por força da idade e destrambelhamento do siso da Tia. Não te apercebeste disso? Sim, quando ela chamou pelo Olegário. Está sempre a chamar pelo Olegário, desde há algum tempo … o Tio nunca te disse nada? Disse, disse vagamente, dizia que ela não ia andando bem, só isso. E, não andando ela bem, começou ele também a dar de lado. Sempre foi pequeno e magro, mas, ultimamente, definhava enquanto ela enlouquecia e engordava. As coisas precipitaram-se quando, certo dia, aqui há dois anos, mais ou menos, ela encontrou na rua um gato abandonado, com um inchaço enorme na cabeça. De quem era o bichano, ninguém sabia nem queria saber. Ninguém, salvo ela. Levou o animal ao veterinário, foi examinado, com todos os meios complementares de diagnóstico disponíveis, o caso era grave, vai custar-lhe caro minha senhora, avisou o clínico, responsabiliza-se pela conta? Com certeza, respondeu ela, e, irmão, foi uma batelada que colocou a propriedade desta casa em risco, o Tio foi obrigado a contrair um empréstimo dando a casa de hipoteca, na volta, ela ficou mais louca e ele gravemente deprimido. Tanto que, um dia, melhor dizendo, uma noite, agarrou na Virgínia, que tinha o hábito de cantarolar quando ouvia o galo da vizinha a cantar à meia-noite, e apertou-lhe o gasganete, e, era uma vez uma galinha chamada Virgínia. Se bem me recordo, foi a partir dessa altura, ou pouco tempo depois, que só o Pimpão se manteve sobrevivente. Terá morrido, entretanto, não sei, mas é o mais certo, de outro modo estaria, como sempre no regaço da Tia. Foi neste momento, precisamente quando o meu irmão
baixou a voz para completar a frase que a Tia apareceu, sorridente, de ar estranhamente  jovial para a idade que tem,  para informar os seus meninos, ao mesmo tempo que tirava o seu avental de cozinheira, que o jantarinho estava pronto. Adivinhem o que vão jantar?
Adivinhámos ambos, imediatamente, por ser a mais óbvia, ainda que ao mesmo tempo a mais insólita, a resposta. Adivinhámos e sentimos ao mesmo tempo um vómito tão sufocante que nos deixou prostrados por largos instantes que, vá lá saber-se porquê, provocaram na Tia um histérico ataque de riso que a fulminou de engasgo.  

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- E o Tio? Sabes de que morreu o Tio?
- Sufocado.
- Sufocado, como?
- Foi esse o resultado da autópsia.
- O resultado, percebo, mas a causa, qual foi a causa?
- Inconclusiva.
- Terá sido ela … que o abafou?
- É possível.
- E isso não é crime?

- Talvez. Mas a criminosa, se foi ela, é claramente inimputável.  

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