Wednesday, January 10, 2018

AMANHÃ, O FIM DO MUNDO




1951, Verão


A bola, de borracha, veio a pingar-lhe por cima, amparou-a com o peito, fazendo-a descair para o pé esquerdo, que a fez voar em arco rasante por cima do olhar desconsolado dos rapazes, caindo para lá do muro no quintal do Jacob. Ouviu-se, pouco depois, o rosnar do cão a tentar abocanhá-la, e ninguém se voluntariou a saltar a barreira, arriscando uma dentada numa perna ou, talvez pior, ficar sem calças nem cuecas, puxadas pelo mastim. Também ninguém protestou, e muito menos se lembrou de informar o rematador que, agora, a bola era de borracha e havia regras novas, jogo baixo e em jeito, nunca em força, quem atirasse a bola para o quintal do Jacob ou ia buscá-la ou comprava outra. Sentaram-se no chão, resignados, esperando que o autor do remate descontrolado dissesse alguma coisa. Ele tinha chegado do trabalho, parara para ver o jogo entre os miúdos com quem em tempos alinhava a jogar e ditar regras porque era o mais velho do bando, a bola viera ter com ele, não se mexera um milímetro para lhe tocar, ninguém sabia como aquilo acontecia, mas acontecia vezes sem conta, entre ele e as bolas haveria algum íman escondido que explicaria o fenómeno que os espantava.
Deitou a bicicleta no chão, sentou-se numa das pedras que marcavam a baliza, e disse:
o mundo vai acabar.
Ninguém abriu a boca nem tirou os olhos do chão. O que é que lhes interessava, a eles, o mundo, sabiam lá eles o que era o mundo, e, se acabasse, acabava. O que ele devia dizer-lhes era onde é que, agora que a bola estava a ser rasgada à dentada atrás daquele muro, iriam desencantar outra. Mas ele insistiu:
Pois vai, o mundo vai acabar, podem não acreditar mas vai, o mundo vai mesmo acabar, e, acabando mundo, não há mais mundo onde se possa jogar, e, não havendo mais mundo, para que servem as bolas? Sim, para que servem as bolas?
Conversa, conversa fiada, bateu na borracha de qualquer maneira, e agora vem-nos com esta do fim do mundo. Respondia-lhes o silêncio dos rapazes, e esse silêncio dizia a vontade que tinham de o obrigar, se pudessem, a saltar o muro e a trazer a bola de volta, era essa a lei em vigor, aliás, estabelecida há muito tempo por ele.
Quem quebrou a barreira e abriu o bico foi o Jó, um rapaz com o dobro da idade deles mas menos de metade de entendimento, preso da fala, não lhe saíam cês nem quês, quando aparecia jogava à baliza, mas estava proibido de defender com os pés, porque o Jó sempre que punha a pata na bola desaparecia o esférico para parte incerta.
O ´´e é o mundo? perguntou o Jó.
A garotada não quebrou o silêncio, o momento não era para piadas, e o rematador não disse o que era o mundo. Continuou o silêncio revoltado do grupo, alguns arremessavam contra o chão  pequenas pedras surgidas à sua frente, outros rabiscavam com os dedos no espaço circundante sinais da sua impotência colectiva.
Sem reacção dos rapazes, o rematador levantou-se, fixou demoradamente o olhar no grupo cabisbaixo, pegou na bicicleta, sentou-se no selim, fez rodar para trás a pedaleira, e disse: amanhã trago outra bola.
Juras?, perguntou um.
Está jurado, respondeu ele, e foi-se embora.

- Pai, o mundo vai acabar?
- Que conversa é essa, filho?
- Ouvi dizer, quando jogávamos à bola.
- De vez em quando anda por aí esse boato. Sempre andou e o mundo não acabou.
- A mãe diz que tudo o que teve princípio pode ter fim.
- Tu disseste-lhe que o mundo vai acabar?
- Não. Não disse que o mundo vai acabar, disse que tudo o que tem princípio pode ter fim. Se assim for, o mundo pode acabar. Se acaba ou não sei. Tu sabes?
- Sei que é conversa que não interessa.
- Para nada.

No dia seguinte, aquela mesma hora, entretido com outra bola que alguém tinha encontrado algures, mas sem dizer onde, o grupo já tinha esquecido a promessa do rematador quando este fez chiar os travões e parou sem desmontar nem colocar os pés no chão, exibindo as suas capacidades de equilíbrio, bazófia, qualquer deles podia fazer o mesmo se tivesse uma bicicleta sua.

E a bola? Perguntaram-lhe quando viram que não lhes trazia a bola prometida.
- Trago amanhã.
- Prometeste que a trazias hoje …
- Encomendei-a hoje. Prometi trazer hoje, mas não havia na loja. Amanhã, está bem?
Depois acabou a exibição de equilíbrio, deitou a máquina no chão, e sentou-se na pedra da baliza. Daí a pouco parava o jogo e os rapazes sentaram-se à volta à espera de notícias do fim do mundo.
- Já acabou o mundo? troçou um, e os outros riram-se.
- …
- Disseste ontem que o mundo ia acabar … Já acabou?
- Não, ainda não acabou mas vai acabar.
- Quando?
- Quando, não se sabe. Mas que vai a acabar, vai.
- Vai acabar porque tudo o que teve princípio há-de ter um fim? É por isso?
- Não, nada disso.
- Dizem que vai acabar em 2000 …
- Em 2000, em 2000 por mim pode acabar. Nessa altura já terei … já terei quase sessenta anos. Já serei um velho, se lá chegar.
- Pode acabar mais cedo.
- Muito mais cedo? Quanto mais cedo?
- Não se sabe.
- Afinal, o que é que sabes acerca do fim do mundo?
- Sei o que ouvi ontem aos camaradas. Os americanos lançaram duas bombas no Japão que arrasaram tudo à volta. Tudo. Não ficou casa de pé nem bicho vivo nem planta verde. Matou e secou tudo.
- Também as pulgas?
- Até as pulgas.
- Hum! Se matou as pulgas acredito que possa matar o mundo todo… O que eu não entendo é como é que os americanos podem acabar com o mundo sem acabar com eles mesmos.
- Aí é que tu bateste no ponto: Mais tarde ou mais cedo outros países, a Rússia, por exemplo …
- … a Alemanha…
- … Alemanha, não. A Alemanha ficou de patas para o ar e vai demorar a voltar-se…
- … a Rússia já tem uma bomba dessas, mais tarde ou mais cedo, outros países vão ter também bombas dessas e, então, quem é que pode cortar o caminho que dá para o fim do mundo?
- O Papa!
- O Papa? O Papa quer bulas e descanso…
- Este é protestante.
- E daí? Vem mal ao mundo ser protestante?
- Não, penso que não.   
- Ainda bem. Bom, vou-me andando …

Foram todos para casa, mas a ameaça do fim do mundo tinha-lhes agora tremido a indiferença do dia anterior. Eram ainda tão novos, nascidos há pouco, o mundo já era tão antigo, por que razão iria ter de acabar agora? 

- Jó, acreditas que o mundo vai acabar?
- O ´´ê?
- Não ouviste que o mundo vai acabar?
- Ouvi, ouvi …
- E, então, o que é que pensas disso?
- Disso ´´ê?
- Do fim do mundo …acabar tudo …até as pulgas …

- Es´ape eu! 

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