Sunday, April 22, 2018

O DIA DA TERRA

COR DE ROSA SHOCKING




Ouvíamos a mesma conversa durante todo o dia.
Mãe, podemos levar um? E depois, onde o púnhamos?
No meu quarto!
E tu pensas que ele se sentiria feliz durante um dia inteiro, sozinho no teu quarto? Tu vais para a escola, eu e o pai vamos trabalhar …
Podíamos deixá-lo na rua, eles aqui andam na rua …
Pois andam, mas por aqui não passam automóveis …Falamos logo à noite sobre isso com o pai. Valeu?
Valeu. Podemos levar este … se o pai estiver de acordo?

Este, era eu. A conversa não me agradava mesmo nada. Ir dali para outro lado já seria mau, pensava eu naquele momento, mas separado dos meus outros três irmãos, nem pensar. Desse por onde desse, haveria de arranjar modo de fugir e voltar para ali, para aquela ruela torta e suja, a cheirar a tudo mas sobretudo a maresia, junto ao ancoradouro onde os pescadores amarravam os barcos e remendavam as redes. Quem passava, parava e pasmava-se à frente da nossa cesta cheia de tanta ternura exposta ao sol à porta daquela casa onde nascêramos, à coca, percebemos depois, que alguém desse alguma coisa por nós. Mas era a pequenada quem mais nos mimava e queria, à viva força, levar-nos com eles.

Até ao dia em que, com mais ou menos dois meses, tínhamos deixado a cesta e vagueávamos por ali, a brincar e a morder o que calhava, que o faro recomendasse e nenhum latagão, gato ou cão, se antecipasse, passou por ali um grupo de gente de outras paragens que os nossos tinham dificuldade em entender, e, blá, blá, blá daqui, blá, blá, blá de lá, daí a dias meteram-nos, os quatro manos, numa caixa, parecida com gaiolas de pássaros tamanho extralargo, e que, embora não sendo gaiola de pássaros, viemos depois a perceber que tínhamos voado dentro dela. Aonde nos vão levar estes tipos? Nenhum de nós sabia.
Mas não havia nada a fazer, acham que havia? tínhamos sido comprados, outra coisa que não se compreende, que direito tem alguém a vender o que lhe nasceu em casa? pode vender os filhos? não pode, já lá vai longe o tempo em que em sítios incivilizados podia, agora não, acredito eu. Tínhamos sido comprados, com a garantia de que estávamos registados e preparados…
Naquela altura, nenhum de nós percebeu o que é que significava aquela coisa de estarmos preparados, só ficámos a saber quando fomos levados a um consultório veterinário, parece que é esse o nome que dão aos lugares onde preparam cães e gatos, seres de companhia, lhes chamam, não vimos lá naquele dia mais nenhuma outra espécie, deram-nos umas picas nas coxas e umas gotas pela boca abaixo, vacinas, ficámos a saber depois que eram vacinas, outra pica aqui em baixo, entre as pernas, que doeu que se fartou, na altura não percebemos porquê e muito menos para quê.

Nenhum de nós sabia qual o nosso destino, não deveria ser coisa boa porque, à despedida, ficaram os olhares dos nossos pais tão encharcados em lágrimas, tão dolorosos e acabrunhados que só de vê-los ficaram os nossos embaciados, talvez para minguar a visão e o nosso sofrimento. Não imaginem quanto nos desgostou tirarem-nos daquela nossa terra quente e luminosa e voar numa gaiola para estas bandas frias, com muita chuva, muita neve, com sol só quando o rei faz anos, porque para tanta tristeza já basta a nossa. E, como uma tristeza nunca vem só, depois de aberta a gaiola, colocaram-nos coleiras e às coleiras prenderam trelas a cada um de nós, a primeira de muitas humilhações, a que nunca antes tínhamos sido sujeitos, que viríamos a sofrer depois, e separados uns dos outros, cada um levado sem saber para onde ia e muito menos para onde iam os outros.

A mim coube-me passar a viver numa casa numa cidade junto de uma montanha, à beira de um lago enorme, mas muito mais pequeno, sem comparação possível com o mar da nossa terra. Foi em Maio, o dia estava bonito, apareceu o sol, logo que entrei em casa, o homem da casa, ou terá sido a mulher? não importa, um deles limpou-me as patas com uma toalha, um luxo! há que reconhecer as vantagens, ainda que eu nunca tivesse sentido antes necessidade nem obrigação de limpar as patinhas antes de entrar em casa. Depois colocaram-me uma taça com água, bebi-a sofregamente, já não bebia água não sei há quanto tempo, ao lado da taça da água uma taça com uns pedacitos que, à primeira vista, me pareceram de madeira. Farejei, voltei a farejar, não me repugnaram, mas não comi. E estava com tanta ou mais fome que sede. Olhei, olhei, a pedir outro prato, pelos vistos a ementa só tinha prato único, e lá acabei por rilhar os pedaços que pareciam de madeira. Não tive dores de barriga, receei que iria ter dores de barriga, mas se tive foi durante o sono porque me deu tal soneira que quando acordei percebi que o sol já tinha ido para outro lado.
Veio o homem ter comigo, fez-me umas festinhas na nuca, gostei, registo que gostei, depois prendeu a trela à coleira e saímos para a rua. Logo que me apanhei fora da porta, urinei, pouco, porque há tanto tempo sem água à vista, mas fiquei a saber que, naquela cidade, não se urina em qualquer parte. Demos uma voltinha, sempre preso pela tela quando os músculos me pediam umas corridas a sério, se não pareci trôpego foi porque, por uma questão de dignidade da espécie, fiz o que pude para disfarçar. Quando voltámos, não voltarei a repetir-me nisto, o homem limpou-me as patas, a mulher indicou um quarto onde me enrosquei num cesto, mais capacho que cesto, para ser preciso. Não voltei a beber nem a rilhar cascas nesse dia, estive umas horas acordado de olhos fechados a gravar algumas coordenadas do sítio sem sair do capacho porque estava atrelado à perna da cama daquele quarto sem gente, para além de mim. Pela primeira vez na minha vida, passei a noite sozinho. Por onde andariam os meus três irmãos aquelas horas? Já teriam bebido água, pelo menos? Ter-lhes-ia calhado tincar umas cascas ruins ou estaria algum deles ainda sem água nem cascas, pelo menos?  Estariam dentro de casa, de coleira ao pescoço e trela presa, ou à solta na rua ou num quintal? Sentia-me medonhamente só e injustamente agrilhoado, mas não me era tão doloroso suportar a minha condição do que pensar que fossem piores a deles que a minha.

Aquela hora, nos dias em que ainda não tínhamos voado, para ser preciso não tínhamos voado coisíssima nenhuma, só por muito pretensiosismo humano pode o homem, ou a mulher, dizerem que voam quando vão de um lado para o outro transportados num avião, queria dizer, então, que aquela hora, nos dias em que ainda não nos tinham levado num avião para local desconhecido, estávamos nós aconchegados, os quatro manos, num canto da rua, livres de trelas e de coleiras, a ouvir a sinfonia dos grilos e das cigarras no teatro estrelado de um Maio moço perfumado pela maresia. E a recordar esses dias de vadiagem, à solta, a beber onde sabíamos onde havia que beber e comer uma dieta variada, a meter conversa com este ou com aquele, ou aquela, naquela forma tão nossa de meter o nariz com os outros da nossa espécie, deu-me uma imensa vontade de chorar. Devo ter dormido tão pouco, ou são mais curtas as noites e os dias aqui do que lá, porque só acordei quando o homem da casa me fez umas cócegas nas orelhas. Nestas orelhas que são um espanto para toda a gente. Ainda não tinha dito mas, como sabem ainda sou novo, mas as minhas cores, o preto brilhante, o alaranjado mate, o branco nítido, vestindo-me o corpo de pelo sedoso, esmeram-se numas orelhas contidamente pendentes, ornadas por uma cabeleira matizada que põem as meninas dos olhos delas a estremecer quando me vêm, e eu, de língua de fora, o brilho dos pelos laterais nasais, os bigodes para ser mais claro, já a denunciarem a antecipação do gozo que aquela admiração delas me suscitava e me dava garantias. Resumindo, não é para me gabar, mas reconheço que somos os quatro, sem termos contribuído em nada para que assim seja, uma perfeição caprichosa da natureza. Como estarão os meus irmãos neste momento? Quando nos separámos, as diferenças entre nós eram mínimas, os putos votavam quando nos queriam, querendo-nos todos, e essa votação cerrada grudava ainda mais a nossa fraternidade.

O casal, homem e mulher, habitavam naquele apartamento com dois gatos, um gato e uma gata, que passavam os dias meio adormecidos empoleirados num palanque de dois andares, assim uma espécie de bengaleiro com suportes para anichar felinos. Eu passara a ser, portanto, o quinto habitante da casa.
O homem saía de casa de manhã cedo, trabalhava a uma hora de distância, ia a pé, depois de autocarro e comboio, depois de tomar o pequeno-almoço e deixar o mesmo para a mulher que aparecia na sala cerca de uma hora depois. Antes de sair para o trabalho, o homem ainda me levava, preso pela trela a dar a volta para satisfação das minhas necessidades naturais.
Durante o dia, a mulher saía para fazer compras, mercearias em geral, e lá ia eu com ela pela trela. Voltava, limpava-me as patas, e, já!, ordenava ela, tinha de me enroscar no capacho a ver passar o tempo, a dormitar, a sonhar com a liberdade perdida para sempre. Tinha ordem para me levantar só à hora do almoço, quando ela mandasse avançar. Estava o meu almoço preparado, agora já não comia cascas, comia uns cozinhados que, com a fome que tinha e a espera a que era o obrigado pelas tabelas dela, se não eram grande coisa, a mim sabiam-me assim-assim, melhor que as cascas, em todo o caso. Bebia, comia, dava a voltinha da mijinha, patas limpas à entrada e, volta! para o capacho! Ela tinha traçado uma linha imaginária que eu passei a reconhecer porque, se por qualquer razão me movesse até à proximidade dessa linha invisível, ouvia repreensão pela certa, tão ríspida e dura que me parecia que a mulher usava invisível altifalante. Se eu estava ali mesmo ao lado por que ralhava ela tão alto numa terra onde, à noite, nem os cães se ouvem ladrar?

Passavam-se assim os meus dias, mais imobilizado no capacho que os gatos no bengaleiro, autorizados a sair e entrar, quando lhes desse na real gana, através de uma gateira instalada na porta que dava para as traseiras, e dali para a rua. Mas até os gatos deviam ter recebido dela instruções precisas porque não se ausentavam por tempo que lhes permitissem mais que distender as patinhas, para as mijinhas e, para os cocós, tinham o cesto das pedrinhas.
A dada altura, passei a acompanhar no passei matinal o Urs, um vizinho velhote, reformado, que passeava a sua Cherry. Foi um progresso considerável para o ego de quem até ali estava condenado a quase um dia inteiro sentado no capacho. Compreensível mas lamentavelmente, o Urs aparecia com a Cherry para o meu passeio matinal mais tarde do que aquela hora a que o homem da casa me proporcionava a saída para a mijinha da manhã antes de sair para o trabalho, e a mulher não se dignava abrir a porta do quintal para eu poder fazer à minha vontade o que toda a gente costuma fazer logo que se levanta, era obrigado a apertar, a apertar, até que o Urs batesse à porta e eu me pudesse levantar, e saísse, de trela a puxar pelo Urs até ali acima, aquela curva onde começa o relvado.  Mas antes, farejava, farejava, farejava, a ver se o sítio continuava conveniente, e só depois dava conta da minha higiene matinal. Íamos por aqueles caminhos e veredas, se já tínhamos saído de sítio por onde pudessem passar veículos, bicicletas, automóveis, ou coisas do género, ainda que raramente, o Urs soltava a trela da coleira, e eu tinha, pela primeira vez naqueles sítios, autorização para dar uma corrida para trás e para a frente, as vezes que eu quisesse, enquanto ele não entendesse assobiar para que voltasse para junto dele. Vinha logo, ele dava-me uma cookie e comia outra, fazia-me uma festinha, falava comigo, e eu aproveitava o intervalo de relaxe para outra mijinha aqui, e logo uma cagadinha ali à frente... Eh!Eh!Eh! Vá lá, Urs abre lá o saco, apanha e dobra para dentro. Isso, agora dá um nó e mete no cagão. Não há por perto? Aguenta até que apareça. O Urs costumava por no bolso enquanto não aparecesse o cagão. Aquecia-o, penso eu. O Urs era um tipo catita. A Cherry nem tanto. Não era má cachopa, mas com aquele ar de quem estava a olhar sempre contra o governo, nem alegrava nem chateava, passava pelos outros como se não os visse. Eu, não. Cada encontro era uma confraternização. Cheirávamos-mos como e onde é da praxe, abraçávamo-nos, e corríamos como doidos de alegria. Nisto, o Urs era parecido comigo. Cada encontro dava para uma conversa alongada, que eu não entendia porque, já sabem, não nasci aqui, trouxeram-me de longe. O Urs não é do tipo que passa, gutureja grüezi, e está feito. Não. Em cada encontro punha a escrita em dia. Já no físico, parece-se mais com a Cherry: aquele andar a tombar para um lado e para o outro, ou o copiou da Cherry ou a Cherry o copiou dele, vá lá a gente saber quem é que começou a balançar-se primeiro. Toda a gente me conhecia. Não admira: sou civilizado, cordato, gosto que me cumprimentem, que gostem de mim, e correspondo.
A mim, coube-me a sorte, ou o azar, nunca se sabe o que o futuro nos reserva, não é? de vir para um sítio ao pé de uma montanha, com um grande lago ao fundo, parece-me que já tinha dito isto, e mais montanhas, encavalitadas umas nas outras, do outro lado do lago. Por ali pode-se caminhar entre as árvores, ouvir a passarada e farejar relva, há relva à volta ao longo de todos os caminhos.
Há uns tempos, fizeram um encontro de famílias, uma ideia boa que não posso deixar de registar. Lá fui encontrar-me com os meus irmãos. É sempre bom o reencontro familiar, não acham? Mas fiquei triste porque não vimos lá os nossos pais, eles adorariam, pelo menos tanto como nós, ver a família reunida. Mas, apesar daquela mágoa, foi, ainda assim para mim um dia de rara felicidade, sou do sul, já disse, e a gente do sul gosta destes encontros. Foi uma festa em grande, sim senhor. Reconheci os meus irmãos logo à distância, claro. Todos me gabaram a pele sedosa, o ar lavado, a elegância. Disse-lhes o mesmo, como é norma nestas circunstâncias, mas não fui franco com todos eles. Deveria ter sido? Dois deles pareceram-me pouco disciplinados, e, na altura, confesso, tive inveja deles, daquela indisciplina, mas talvez eles estivessem mais empolgados com o reencontro, não somos todos iguais, mesmo se nascidos da mesma ninhada. Aliás, nem toda a gente aqui é disciplinada. Dizem que são, mas não é verdade. O Urs, por exemplo, é disciplinado. Sempre que encontra um saco de plástico no chão ou uma lata vazia no meio da erva, pega neles e coloca-os no caixote do lixo. E pragueja. Coloca, mas pragueja: Estúpida gente! Gente estúpida! Depois faz-me umas festas e dá-me outra cookie. De quem o Urs não gosta mesmo nada é dos gregos. Volta e meia, gregos à parada para uma ensaboadela! Lá terá as suas razões mas não sei se os gregos o ouvem. Desconfio que não.

Hum! Cheira-me, a partir daqui deste meu posto de observação no capacho, que para a semana vai haver alterações. O Urs tem sido o meu companheiro nestes passeios matinais pelo campo desde há algum tempo porque, se bem percebi, a mulher da casa está à espera de bébé, percebe-se isso agora pelo crescimento da barriga, e o homem sai de manhã para o trabalho, tem de apanhar o autocarro e o comboio, volta à tarde, só está livre para me acompanhar nas passeatas ao fim do dia, depois de ter ajudado a fazer o jantar e arrumar a cozinha, e aos fins-de-semana. Não nasceu cá, no fim de contas é emigrante como eu, mas entre ele e o Urs, quanto ao que a mim diz respeito, não há grandes diferenças, deixa-me livre para as minhas correrias pelo campo e também gosta muito de conversa com a vizinhança.

Há dias, a mulher, com a barriga crescida como eu nunca a tinha visto antes, saiu de casa durante dois dias ou três, quando voltou não tinha tanta barriga, tinha nascido a bébé. Encheu-se a casa de alegria, uns dias antes a mulher tinha cantado lindamente umas dez canções a celebrar a alegria do futuro próximo e o marido acompanhado o canto tocando guitarra, a última, se bem me lembro foi a última, foi cantada pelos dois. Vieram-me as lágrimas aos olhos, vocês podem não acreditar mas vieram-me as lágrimas aos olhos, nem só os humanos têm sentimentos, a diferença é que os deles às vezes não são bons.
Para ajudar, a mulher pediu o auxílio dos pais do homem, gente na casa dos setenta, não menos, que eu não sei contar mas sei avaliar, que vieram de longe, lá do sul, estava dito, e que, durante um mês, trabalharam como moiros. Só saíam de casa ao fim do dia, quando chegava o filho, para dar uma passeata pelas redondezas, que já não são as mesmas do tempo em que eu passeava com o Urs. Não. Os avós da bébé, além de terem ajudado a mulher a cuidar da casa e da bébé, tinham, os tolos, entretanto emprestado, sem juros, dinheiro ao casal para estes construírem uma casa nova do outro lado do lago. E o meu amigo Urs ficou-me do lado de lá, nunca mais o vi. As saudades que eu tenho do meu amigo Urs!
Um abraço Urs! Beijinhos à Cherry, se ela deixar.

Agora, que a bébé já anda de carrinho, tenho de acompanhar a mãe e a bébé.
E, se chove? A mim, lava-me o pelo.
Que lindo que ele é!, é um setter? perguntou uma jovem no meio de um grupo de jovens que se cruzou connosco durante a passeata da tarde. Era frequente o espanto perante a minha beleza daqueles que encontrávamos durante as nossas passeatas. É um setter? É um galgo árabe? É um bernesse moutain dog?
Esta gente é racista? interrogava-me depois durante toda a tarde no capacho. Pela terra onde nasci passaram homens, mulheres, cães e gatos, e mais de mil e um animais de toda a espécie, visíveis ou invisíveis pelo olho humano, vindos de  todo o mundo. Foi Deus quem criou o setter e disse, este é um setter, depois criou um pastor alemão e disse, este é um pastor alemão, depois criou um serra da estela e disse, este é um serra da estrela, e por aí fora? E quem criou os vira-latas? Aí, explicam os evolucionistas, que todos descendemos da mesma fórmula dinâmica original, e aquilo a que chamam raças são tão somente o resultado de cruzamentos, infindáveis porque estão a acontecer em cada momento, quantas estarão a acontecer agora neste preciso instante, alguém é capaz de fazer essas contas? Em raças puras só acreditam os que não percebem nada acerca da evolução das espécies. A verdade é que, no meu caso pelo menos, as opiniões divergem largamente, e isso diverte-me imenso.

Passados que estão mais de dois anos, cá continuo no capacho, passeata contida de manhã, passeata à tarde, passeata para correr à vontade quando a noite chega e traz o homem de volta a casa. Depois do jantar, ala para a mijinha, a cagadinha, e as corridas controladas, até porque não aparecem muitos amigos a passear à noite. É a essa hora, fora de portas, que o homem telefona aos pais. Como vão vocês por aí? Por cá já começou o inverno? Coisas assim, tão ingénuas que eu não compreendia que não fossem feitas em casa e não ao frio que me enregelava os ossos mas, por outro lado, me poupava uns momentos de capacho. Mas a explicação era simples: ela não consentia, segundo a tabela, aquela hora, não havia mais conversas em casa, fosse com quem fosse e muito principalmente com familiares, do homem ou dela.

E perguntava-me vezes sem conta: para que me quer esta gente em casa, se passo os dias no capacho, pouco mais que imóvel durante horas sem conta, se mexo é porque bocejo, estendo esta pata, encolho-a, estendo a outra, meto o nariz entre as mãos, e dormito? Olho para os gatos e lá estão eles a fazer o mesmo que eu: comer, mijar, cagar e dormir. Para quê?, senhores, alguém me diz? Por ter o homem que me acompanhar à rua, depois do jantar, ficava, por ultrapassagem do horário tabelado, impedido de falar com os pais dele ou dela a partir de casa. Com um porcelânico nada disto aconteceria, pensava eu.
Não tem esta gente inteligência ou conhecimento bastante para saber que há gatos e cães de porcelana, obras de arte a preços acessíveis, que não comem nem deitam fora, sem custos de cuidados médicos nem de alimentação?
Que vantagens lhes traz o meu sofrimento, terem-me aqui preso, sem julgamento nem sentença com trânsito em julgado, quando um de porcelana, de todas as raças, à escolha do freguês, verdadeiras obras-primas, fariam o mesmo efeito, e não perturbariam os horários da tabela.
É certo que, de vez em quando vêm as bébés fazer-me uma festinha, a propósito, já me esquecia, que tinha nascido outra bébé, celebrado o acontecimento com mais canções, estava toda a gente muito feliz, e a felicidade deles minorou o meu desgosto de preso sem culpa formada. Não podiam os de porcelana dispor-se às mesmas ternuras? Claro que podiam. Com que é que se encantam as meninas senão com bonecas que não são crianças vivas? E os meninos com o que calha à sua natureza, bonecas de pano, até, se gostam delas desde pequeninos? 

Eh! Eh! Eh! O que eu me diverti ontem! Por um bom bocado esteve a casa cheia. A meio da tarde, dei logo conta que vinha alguém a chegar, e não eram os velhotes do costume, hum! Era gente jovem, e acertei, quis ir logo recebe-los à porta, mas qual quê!, cht! disse a mulher, e apontou-me o capacho. Mas é óbvio que acertei, já tinha visto através das portas de vidro fosco, os vultos de dois putos, o Mig e a Ri, que eu não conhecia mas já tinha ouvido falar, dois putos assim mais para a minha idade. Fiquei excitadíssimo, sabem? Nem todos os dias se tem tanta gente à volta, a gabarem-nos a elegância do andar, a originalidade das orelhas, a afabilidade do trato, a disciplina, e, melhor que tudo, miudagem que gosta de brincar comigo. Ralharam-me por me ter excitado. Uh! não me posso exceder numa terra destas... até nestas situações tenho de abafar a alegria e ficar muito contido. Mas custa muito, vocês não imaginam o que custa engolir a alegria, custa quase tanto ou mais que engolir a dor.  Ora, já disse mas nunca é demais repetir, que eu sou do sul, nascido em terra quente, tenho as minhas exuberâncias no sangue. Demos uma passeata pelo sopé da montanha, nada de escaladas altas, mas mal saí á rua, quem vejo eu? O meu vizinho. Quis-lhe apresentar as visitas mas devo-me ter excedido porque a mulher logo me ralhou, desta vez mais de modo mais duro que o habitual nela, nada que se pareça com a pachorra do Urs, que ficou do outro lado do lago, já tinha dito, não tinha? e a afabilidade do marido. É assim, andar com ela é um tormento, quando nos vem à pele o sangue quente do sul. Tive de me conter, e portei-me todo o passeio como mandavam aquelas regras. Passava por amigos e conhecidos, e os cumprimentos não ultrapassavam a praxe. Aliás, todos os que vejo por estas redondezas, eles e elas, estão neutralizados. Eu também. Custa-me dizer isto, mas é verdade. De modo que, se venho com ela e as bébés, as relações não vão além dos costumados reconhecimentos olfactivos, passe bem  e eu também. De vez em quando aparece um mais exaltado mas passa-lhe depressa. Aqui, é assim. Já na Itália, é bem diferente. O ano passado, ou terá sido já há dois anos? uh! como o tempo passa depressa, mas dizia eu que fomos até Itália passar férias. Gostei. Mas vim de lá acabrunhado. Lá, presumo, que não deve haver tantas neutralizações, de modo que quando passava por eles, depois dos reconhecimentos olfactivos da praxe, via-os olharem para trás a rirem-se de mim. Pior que isso, elas admiravam-me mas cochichavam pesarosas. Tão elegante, tão cool, tão sex appeal, e impossibilitado, coitado, que pena que eu tenho. Como é que se pode consentir uma coisa destas, senhores? É uma prática de desorientação sexual forçada que não deveria ser legalmente consentida. Dormi mal noites seguidas, depois acabei por me conformar. É a vida!

Hoje, subimos a montanha de teleférico. Para mim, banal. Mas os putos deliraram por me verem de novo. Quem não me gostou de ver, se não foi a mim não sei a quem poderá ter sido, foi o bilheteiro do teleférico. Antes que percebesse quantos éramos e quanto nos custava a ida, o homem, mal encarado, parecia um agente dos serviços secretos a olhar e a remirar, esteve naquilo um tempão. Fomos, é exagero de expressão, a mulher não foi, as bébés não foram, a mulher, já tinha dado por isso há muito tempo, não é muito, aliás nem muito nem pouco, receptiva a reuniões familiares. Estranho é que me tenha levado aquela reunião com os meus irmãos. Mas vá lá a gente entender a gente humana, pelo menos parte dela.
Depois o teleférico mexeu-se e lá fomos acima cantar os parabéns ao Mig, que fazia anos nesse dia.
Um dia deslumbrante. De cá de cima via-se uma cenário com dimensões e cores infinitas. Eu sei que o infinito é assim uma coisa que ninguém sabe o que é, mas eu sei que o que admirávamos a partir daquele ponto, a comer salsichas e a beber Coca-Cola, eu bebi água e comi uma lata de comida pré-fabricada, era um infinito de deslumbramento sem fim, e, em mim, e suspeito que não só em mim, senti um vazio interior, não sei onde, mas era interior, por não estar ali a família toda, que não é assim tão grande quanto isso.    
Agora não sei quando nos voltaremos a ver. É assim a vida. 
Já tinha dito isto, não tinha?

Durante qualquer coisa como dois anos, mais mês menos mês, para o caso interessa pouco ser muito preciso, houve naquela casa uma alegria contida, o que não era de admirar, não estávamos no sul nem à beira mar, com sol a rodos a aquecer-nos os corações e os músculos. Escusado seria repetir, mas repito porque há gente atenta e gente menos atenta ao que ouve ou lê, não é por mal, cada um tem o seu ser, a sua fórmula dinâmica a funcionar consoante os ambientes onde cai a funcionar, mas, dizia eu, escusado seria relembrar que eu continuava a consumir os meus dias sentado no capacho, recebia umas festinhas das meninas que me sabiam a mel, mas nunca, nunca com permissão de passar para além daquela linha invisível que era a fronteira inultrapassável se, por desfastio ou mimos das bébés, me levantava do capacho e queria ir atrás delas.
Continuava no capacho como se fosse de porcelana, de plástico, de lã ou de trapos, que um dia, há sempre um dia, terminaria em cacos ou abandonado a um canto qualquer à espera que o tempo desintegrasse, e resignado. Apesar de tudo, via, ou parecia ver, felicidade à minha frente, e essa visão minorava o meu desgosto.

O homem levantava-se cedo, quer chovesse, quer nevasse, preparava os pequenos-almoços, comia o dele, levava-me ao curto passeio matinal, nesse aspecto melhorou-se a situação porque do lado de lá o Urs e a Cherry chegavam um pouco mais tarde, fazia o meu xixi, voltava para casa, patas limpas, e  capacho. Voltava o homem à noite, fazia ou ajudava a fazer o jantar, e, se o trabalho o impedia de chegar às horas tabeladas, a mulher resmungava. Ali, as meninas tinham de ir, impreterivelmente, para a sesta às 13 horas da tarde, depois do almoço, e às 19 horas da noite, depois do jantar. Um atraso do homem, por mais breve que fosse, ou mais que plausíveis as razões, desarranjavam-se os horários e entornava-se o caldo.

Depois, não sei o que se passava no andar de cima, onde dormiam todos no mesmo quarto, ainda que a habitação tivesse três. Porquê?, não me perguntem porque não sou bruxo nem quero levantar falsos testemunhos.
O certo é que as discussões entre homem e mulher aumentavam de tom todos os dias, porque eu cá em baixo, no meu capacho passei a dormir mal: pelo tom da discussão que, suponho eu, estaria a perturbar os sentimentos das crianças pelo menos tanto quanto me perturbavam a mim.
E um dia, o homem farto como eu daquela querela sem sentido, disse à mulher, é melhor ficarmos separados por uns tempos, as crianças não podem continuar a suportar estas discussões sem sentido, ficas cá em casa com elas, eu alugo um apartamento para mim próximo daqui, e daqui a uns tempos revemos a situação. Até lá, cada um pode reflectir sem ter que discutir. Pago todas as despesas da casa, já que tu não trabalhas, não tens rendimentos, ficas com o automóvel para levar as meninas onde for preciso levá-las se a distância não for de fazer-se a pé, em contrapartida quero ver e estar com as nossas filhas nos termos estabelecidos na lei para estes casos, assinamos um contrato, homologável pelo juiz. E daqui a dois anos, no máximo, se não encontrarmos melhor solução que o divórcio, divorciamo-nos. Não será uma boa solução mas será a menos má se forem cumpridos os acordos mutuamente aceites. 

É evidente que eu não estava presente no acto da assinatura do acordo, mas dali do meu capacho, não tendo percebido os termos compreendi as intenções. E, nessa noite, a primeira em que o homem não ficou em casa, houve um silêncio medonho, tão silencioso que não me deixou pregar olho. É que, e nisso não somos de porcelana por mais imobilizados que estejam os nossos músculos, o pensamento não para enquanto a corda não se parte.
Só uma vez, juro que só uma vez, e já lá vai mais de ano e meio, voltei a ver as meninas a saírem com o pai. Em duas ou três ocasiões os encontros foram sempre feitos na presença da mãe, por imposição desta. Depois, nem isso. Há mais de um ano e meio que a mãe não deixa que o pai veja as filhas.
Claro que alguns dirão, ele não deveria ter abandonado a casa, outros, mais entroncados, culparão o homem por excesso de brandura, o mesmo é dizer por falta de imposição pela força, se necessário fosse. É em muitas destas situações que germinam, crescem e explodem as situações de violência doméstica.

Neste Natal, deslocaram-se os avós, pais do filho, para visitar as netas que não vêm há tanto tempo quanto o pai delas não as vê, e oferecer-lhes umas prendinhas, coisas simples, apenas com o significado que a época lhes dá.
Foram corridos, quando um estranho, que tinha aberto a porta os empurrou para a rua a mando dela.

E as meninas, que é feito das meninas?
As meninas passam os dias como eu, em casa. Não sei se para elas também há linhas invisíveis, saem para o passeio matinal, após almoço e à tarde. Raramente as vejo brincar com outras meninas. Não vão à escola porque a mãe se julga habilitada a ser a professora delas, ainda que tal contrarie os termos do acordo de separação que atribui a ambos os pais a responsabilidade pela educação das filhas.
E não há instituições que garantam o cumprimento do acordo, o desenvolvimento saudável e social das crianças, perguntar-me-ão. Não sei responder. Sei que não vi, daqui deste capacho, nada de novo.
  
Com tanto tempo enroscado aqui no capacho, sem mais que fazer do que pensar, penso.
Penso e ultimamente dei por mim a perguntar-me e atormentar-me se não estará ela, a mulher, a mãe das filhas a tramar a neutralização, a esterilização das filhas de modo que nunca elas deixem de lhes pertencer. Sim, porque para todos os efeitos práticos em vigor neste momento, porque a sociedade é cega, eu, os gatos e as meninas somos os cinco propriedade exclusiva dela.

Estou louco?
É bem possível que esteja a ficar louco. Antes isso.

Friday, April 13, 2018

NATUREZA VIVA


O quadro estava exposto num museu de uma cidade de província,  há anos sem conta.
Raramente aparecia um visitante, o vigilante passava os dias a dormitar, à hora do almoço fechava a porta, reabria-a de tarde consoante, mais ou menos, se prolongasse a conversa com os amigos que apanhasse pelo caminho. Era uma natureza-morta, aquilo que os britânicos designam mais apropriadamente, para o meu gosto, still life

Um dia, era Setembro, às três da tarde, passou por ali um grupo excursionista, que incluía três garotos. Dois deles, preferiram não entrar e ficar a entreter-se com uma bola no lago fronteiro ao museu. O outro, o que entrou no museu, poderia ter ido para outro lado qualquer, às vezes à miudagem dá-lhes para desaparecer e pregar um susto aos progenitores, quando a comitiva já debandava, após uma ronda breve pelas obras expostas, que não eram muitas, e foi feita a contagem de quem estava ou faltava na viatura, tinha ficado lá dentro, a olhar e a remirar, em bicos de pés, porque o puto ainda era baixote, o tal quadro.
Nada, nem naquele quadro nem nos outros, havia suscitado interesse que tivesse merecido a mais, fugaz que fosse, atenção dos que tinham entrado e saído tão silenciosamente que o vigilante não deve sequer ter acordado da passagem pelas brasas com que habitualmente se reconfortava depois do almoço. Se fosse gente entendida, capaz de avaliar o que tinha ali para ver, e mal intencionada, talvez um ou outro daqueles quadros tivesse  sido levado naquela tarde, ou em qualquer dos dias em que o museu estava aberto, quando não estava aberto também estava mal guardado.

O quadro era de autor desconhecido, provavelmente do Séc. XVII, e figurava sobre uma mesa coberta com toalha branca, um peru com ar bem disposto, de bem bebido, de asas abertas, se aquilo era natureza morta ele parecia estar ainda bem vivo, umas ostras, umas frutas num cesto descaído ao lado do peru, uns pedaços de pão, um vaso de vidro, um vaso de estanho, o trivial em obras daquela natureza.

A atenção do pequeno homem centrava-se, no entanto, apenas no canto inferior direito, quando, alvoraçados, os pais e mais uns quantos, que o procuraram durante uns bons dez minutos nas redondezas do museu, foram dar com ele naquela concentração que o fazia mover muito ligeiramente a cabecita à esquerda e à direita, à volta de qualquer coisa onde ninguém mais via senão o remate indiferenciado do fundo da tela. Mas o rapazinho garantia que havia ali naquele cantinho, mesmo no cantinho, um passarinho que voava, mas é que voava mesmo, de um lado para o outro, mas só no cantinho.    

Entretanto, voltaram ao museu os outros viajantes que tinham ficado no autocarro, e todos eles, e mais dois ou três visitantes ocasionais, passaram a discutir se era ou não era visível, ali naquele cantinho do quadro, um passarinho a voar, pequenino, talvez um beija-flor. Uns tinham a certeza que, sim senhor, o rapazinho tinha razão e boa vista, havia ali passarinho a voar, podia não ser beija-flor mas se não era beija-flor era passarinho parecido; outros, que miravam e remiravam, coçando e balanceando a nuca, afiançavam, uns com óculos outros sem óculos, que não havia ali passarinho nenhum. Havia, não havia, a discussão já levava um tempão, esgotou-se a paciência ao motorista, que entrou no museu, que é que se passa?, ele não tinha mais tempo para esperar por conclusões unânimes, tinha horário a cumprir, e, ainda a discutir o caso do passarinho, voltou a gente ao autocarro, um ainda disse que passarinho não tinha visto mas passarinhas havia várias a bordo, só que não estavam visíveis naquele momento, e, com a brejeirice, pôs o pessoal  bem disposto, e acabou com a questão do passarinho.  
E nunca mais se soube daqueles nem do pequenote que tinha visto naquela natureza morta um passarinho a voar, que outros também viram e os outros não viram, nem nada que se parecesse com um passarinho a voar.

Voltou a calma regulamentar à sala do museu, despertou o vigilante da sua modorra, e, por desfastio ocasional, foi olhar para o que nunca tinha olhado, aliás, um vigilante não é pago para ver os quadros mas vigiar quem entra para os ver, regras do regulamento. Para comodidade conveniente e atenção concentrada, trouxe o banco do canto em que se sempre se sentava e sentou-se nele em frente do quadro que talvez tivesse mas talvez não tivesse um passarinho a voar. Mirou, remirou, foi até buscar a lanterna para melhor observar, não viu passarinho nenhum, voltou a colocar o banco no canto do banco, e dormitou até que no relógio da torre da igreja tocaram as seis, horas para fechar as portas e ir até casa, não sem ter passado antes pela roda de amigos que se reunia por ali à tardinha até ao sol se pôr.

No outro dia, de manhã, fez o que fazia desde que fora contratado como vigilante do museu municipal: abriu a porta de entrada principal e as portadas das janelas, deu uma volta de ronda às salas, que eram só cinco, a confirmar que não havia parede sem quadro, nem quadro torto na parede, o que mais o chateava era ver um quadro torto, um desequilíbrio que lhe arranhava os nervos e obrigava a indispor-se com a mulher da limpeza que, por acaso, era a sua mulher.
Depois, ia a sentar-se no banco, ainda não se tinha sentado, entra um grupo excursionista que o vigilante, facilmente, percebeu serem brasileiros. Se não a totalidade, pelo menos a maioria era. Ficou abismado com o fenómeno, nunca antes, que ele se lembrasse, tinha o museu recebido excursões em dois dias seguidos, e ainda estava a começar aquele dia. Não restavam dúvidas que o país estava agora em franco crescimento e o turismo era o grande motor desse desenvolvimento.
Também facilmente percebeu, eles falavam bem alto, subvertendo as regras em visitas a museus,  que tinham aqueles brasileiros voado de São Paulo e Rio até Paris, e dali tinham passado em autocarro por Madrid, Salamanca, Santiago de Compostela, Coimbra, Fátima, e, a caminho de Lisboa, de onde voltariam a Paris para o voo de retorno, convenceu-os a casualidade de o avô de um deles ter nascido numa aldeia que ficava perto, a passarem aquela amanhã naquela cidadezinha de província que nenhum dos restantes alguma vez ouvira falar. O descendente foi até à aldeia avoenga, por, prometeu ele, não mais que três horas, e a comitiva tinha-se ali dispersado entre o mercado, algumas lojas de roupa e calçado, tudo caríssimo não acha?, um ou outro preferiu uma ou outra tasca para petiscar as especialidades locais, umas bebidinhas da zona, uma escassa dezena, a princípio, uns quinze depois, entraram no museu, mais pela traça antiga do edifício do que qualquer chamamento do recheio.

Já viu Nenhinha esta belezinha de natureza morta? Adoro natureza morta. Não perco. No Louvre não tinha muito pois não?
Ah! O Louvre, querida, o Louvre é um mundo inteiro de cultura ... Você teve lá tempo de ver o que há naquele luvrão todo?
Pois não...pois não. Aquela entrada é simplesmente esmagadora, a gente sente-se imergir num oceano de cultura clássica. A gente desce, e, só de olhar para toda aquela pirâmide cai de pasmo, sem saber por onde é melhor começar. Aquilo, para ser visto como deve ser, quanto tempo precisa, tem ideia?
Tenho, não, mas não aguentava mais do que aguentei. Ao fim do dia estava mortinha para zarpar para o hotel e dormir até ao dia seguinte.
Já o Prado, é diferente, tem muito corredor, é mais orientativo. Em todo o caso, nada que se compare ao Louvre, não acha?
E o Rainha Sofia, que lhe pareceu?
Para lhe ser franca, minha amiga, a mim não me pareceu museu.
Nem Guernica?
Bom, nesse caso, o que eu não gosto mesmo é do Picasso. Mas não diga às nossas amigas, por favor.
Para elas, o Picasso é o máximo. Você gosta do Picasso?
Não muito ... não muito ...assim, assim, tem coisas que gosto, tem outras que não gosto. Gosto do período azul, do rosa ...
Pois isto será anedota, mas eu não sabia que Picasso tinha períodos ...
Teve. E teve até períodos de naturezas mortas.
Nados-mortos?
Não, não, naturezas mortas ...
Como estas, com peru e tudo isso, tão bem pintado que até parece estar vivo?
Diferentes, bastante diferentes, menos realistas, menos fotográficas, não sei se me fiz entender.
Quase. Tenho de dar, um dia destes, uma mirada nisso.

Ia a conversa cultural entre as duas neste ritmo alucinante quando se aproximou delas um homem do grupo.
Não é uma maravilha?
O homem chegou-se ao quadro, mais do que a distância regulamentar permitia, mas o vigilante entendeu condescender e não fazer cumprir as regras.
Logo a seguir outro, outro, e outro, enfim todos, obedecendo à força da curiosidade individual na formação dos grupos quando ignora as razões pelas quais os grupos se começaram a formar, e, em pouco tempo, estavam todos à volta, se não todos, quase todos a desrespeitar as regulamentadas distâncias mínimas de proximidade das obras expostas.
Não é uma maravilha?, voltava a perguntar a senhora que adorava naturezas mortas a cada um que se ia juntando ao grupo . Não é uma maravilha de natureza morta?, insistia perante a mudez do grupo.
É quê?, arriscou um tímido do fundo para o vizinho do lado.
Natureza morta, sussurrou quem estava à frente dos dois.
Em minha casa não entraria, nem dada. É coisa mórbida, não é? Eu acho. Prefiro os impressionistas...

Acercou-se o vigilante do grupo com a intenção de proteger o quadro de tanta concentração de gás carbónico, e, num inesperado momento de génio, que nele existia congénito mas nunca antes se manifestara, informou que aquele quadro era uma natureza morta mas que também era uma natureza viva.
Como é isso?, perguntou a maior admiradora de naturezas mortas, que nunca tinha ouvido falar em naturezas mortas e vivas ao mesmo tempo, e já lhe custara a engolir aquela do Picasso ter dado à luz nados-mortos.
É assim, começou a explicar o vigilante quando o grupo todo se calou, aqui neste quadro, que sem dúvida alguma é uma natureza morta, de autor desconhecido, talvez do séc.XVII há, no canto inferior direito, mesmo no cantinho, um passarinho que voa de um lado para o outro ... sempre no cantinho. Por isso lhe chamamos o quadro do passarinho, acrescentou o vigilante, e fez história.
Como é isso?
Sente-se, o senhor, aqui neste banco, concentre-se, e verá que um passarinho, muito pequeninho, esvoaça constantemente. Há quem pense que seja um beija-flor.
O homem sentou-se, colocou óculos de ver ao perto, espreitou que se fartou, saiu do banco, e disse, não tem porra de passarinho nenhum.
Há beija-flor em Portugal, perguntou curiosa e tímida uma das senhoras que até ali não tinha aberto a boca.
Não tem, mas natureza morta pode ser matada em qualquer lado, respondeu e riu-se do que disse, um que entendia estar o assunto a ficar pesado demais para o momento.
Pelo sim, pelo não de averiguação, sentou-se um voluntário, espreitou, fez óculo juntando polegar ao indicador, esteve tempo estranho a espreitar, estranho por coisa tão pouca, entenda-se, levantou-se vagarosamente e disse: tem passarinho, sim senhor. É mesmo muito pequenininho, mas tem.
E voa?
Voa, está sempre a voar. Se é beija-flor não sei.
A partir dali, sentaram-se todos e as conclusões só não foram unânimes porque o primeiro observador nem quis repetir a observação. Para ele, não havia passarinho nenhum, ponto final, e vamos embora.

Foram quase todos, só ficaram dois na sala.
E você acha mesmo que pode ser negócio mesmo?
Pela alma da minha mãe lhe juro que estou seguro que pode ser negócio mesmo. Vamos falar com o vigilante.
Vigilante, o senhor, por favor pode marcar uma reunião, ainda hoje, com o presidente do município?
Eu???, perguntou com interrogação aterrorizada o vigilante.
A questão, senhor vigilante, é que nós dois estamos interessados em comprar esse quadro, o do passarinho, entende?, e estamos dispostos a pagar um preço justo por ele.
O quadro do passarinho? O quadro do passarinho não está à venda, aliás, nenhum quadro aqui está à venda. Isto é um museu, senhores, não é galeria de arte.
Que bobagem!, vigilante, tudo se compra e vende mesmo sendo quadro de museu. Telefone a ele! Vá telefone a ele!
É do séc. XVII, senhores, não tem preço.
Tudo tem preço, vigilante, tudo neste mundo tem preço. Muito ou pouco, tudo tem preço.

Neste ponto, chamou um dos interessados o outro à parte, o vigilante aproveitou para voltar ao seu posto, se bem se lembram, sentado no banco.

Você acha mesmo que, sendo o quadro do séc. XVII, pode andar o passarinho andar a voar há mais de trezentos anos? Quanto tempo de esperança de vida tem um beija-flor? Não mais que três anos, cinco no máximo, sabia?
Pode não ser beija-flor. Aliás, pelo que você agora se lembrou, não é beija-flor, mas não é por isso que deixa de ser passarinho.
Então que passarinho pode ser este que voa há trezentos anos, pelo menos?
Só Deus sabe os limites ilimitados da criação. Talvez o quadro tenha sido pintado por Deus? Tem prova do contrário?
Não, não, o quadro é de autor anónimo. Pode ter sido Deus quem pintou essa coisa morta-viva? Pode, mas não vamos alterar a chapa da autoria na moldura. Iria o negócio do quadro ao ar, como autor de obra de arte, Deus não vende, como milagre talvez possa vir a ser mina sem fundo.
Vamos comprar a porra do quadro!

Vigilante, por favor pode pelo menos indicar-nos o número do telefone do município.
Posso, não é favor nenhum, aqui o tem, mas devo informá-los que hoje nem o presidente nem os vereadores estão disponíveis.
E por que não? É feriado?
Estão todos reunidos em sessão de discussão de aumentos ao pessoal.
Bom, se assim é, convém não perturbar eles. E amanhã?
Amanhã é sábado, fim-de-semana, e na segunda-feira é feriado municipal.
Que azar, hem! Bom, estamos de saída para Lisboa para pegar o voo de Paris para o Rio e São Paulo.
Vamos telefonar de lá. Afinal, que negócio é que não pode ser feito hoje pelo telefone? Como é que licitam os árabes, e outros parecidos com eles, nos leilões da Sotheby´s  ou da Christie´s  para comprar anonimamente por milhões e milhões arte europeia, americana, ou do fim do mundo? Pelo telefone. Pelo telefone! Pela internet! Talvez até pelo feicebuque, pelo WhatsApp ... A propósito, você já instalou no seu celular o Instagram? Instale.
Viu como o museu estava a precisar de obras?
Se vi! Eles vão vender-nos o quadro por tuta-e-meia.

Não tinha ainda passado uma semana, a quietude do museu voltara ao normal, um ou outro visitante de passagem, de vez em quando uma excursão ou outra, do passarinho vivo em natureza morta guardou o vigilante o maior segredo, que, afinal nem segredo seria, porquanto ele, vigilante experimentara, entretanto, sem sucesso, aproximado que fosse, enxergar passarinho ou réstia dele, quando toca o telefone, da secretaria da câmara. Vigilante, pode comparecer na câmara esta tarde, por volta das quatro? Sim. Pode encerrar esta tarde mais cedo. Deixe aviso na porta que o museu reabrirá amanhã com o horário habitual.
Tremeu o vigilante com a convocatória, nunca lhe tinha acontecido coisa assim em tantos anos de serviço, às quatro horas em ponto estava ele a entrar na secretaria.
Veio a secretária do vereador da cultura e desportos, como está senhor vigilante, ligou para aqui um senhor brasileiro, disse que esteve no museu há uma semana, que viu lá uma natureza morta, e que quer comprar o quadro ...
Sim, senhora secretária, tivemos a visita de uma excursão de brasileiros, aliás tínhamos tido antes outra de gente de não sei donde no dia anterio, esgotou-se há uns tempos o livro das visitas, requisitei outro mas ainda não chegou, e dois brasileiros quiseram falar com o nosso senhor presidente, logo naquele instante. Disse-lhes que não seria possível, que era dia de reunião da câmara, foi isto, portanto, na sexta-feira passada, depois metia-se o sábado, o domingo e o feriado municipal, disseram-me que nesse caso, porque tinham de voltar ao Rio e São Paulo, contactariam o nosso presidente pelo telefone.
E não disseram mais nada?
Disseram que queriam comprar o quadro.
E o vigilante que lhes disse?
Que o quadro era de museu, que eu soubesse, não estava à venda, depois eles disseram que tudo se compra e tudo se vende, pelo telefone fazem-se vendas de quadros por milhões e milhões. Ah! Já me esquecia, não sei se é importante, antes, no grupo da excursão anterior, um rapazinho, seis, sete anos, tinha estado a ver o quadro e afirmava que no canto inferior direito do quadro havia um passarinho, vivo, a esvoaçar. Às tantas andava toda a gente à procura do miúdo que faltava no autocarro, e, em pouco tempo estava toda a gente a ver se via ou não via o passarinho. Uns viam, outros não viam, e lá se foram sem acordo sobre o assunto.
Na manhã seguinte, logo que abri a porta entraram os brasileiros, uma dúzia, para mais, não para menos. E logo duas senhoras se puseram a admirar o tal quadro de natureza morta. Devem ter entabulado conversa sobre arte, pelos vistos tinham estado no Louvre e no Prado, às tantas estava todo o grupo a falar mais alto no museu do que o regulamento do museu permite. Para desanimar a discussão disse-lhes que um menino que tinha estado no museu no dia anterior tinha visto um passarinho vivo naquele quadro de natureza morta. Toda a gente se calou, e, calmamente, cada um se pôs a observar, a distância conveniente, o quadro para tentar encontrar o passarinho que, alguém admitiu, pudesse ser um beija-flor. Depois, discordaram todos entre si. Uns viam, outros não viam, uns às vezes viam, depois deixavam de ver, acabaram por sair todos menos dois, que, à viva força queriam falar com o senhor presidente. O resto já contei tudo, penso eu.
E o vigilante viu algum passarinho?, perguntou com sorriso irónico a secretária.
Não, senhora secretária, não vi, mas confesso que a minha curiosidade também me levou a espreitar numa altura em que não tinha visitantes na sala.
Não tem mais nada a acrescentar?
Sobre este caso, não, senhora secretária.
Obrigado, boa tarde!, despachou a secretária antes que tivesse ouvir o relato de casos que, certamente, o vigilante teria para contar mas não constavam da convocação daquele dia.

Na sessão da câmara da sexta-feira seguinte foi agendado, a pedido do vereador da cultura e desportos, o inusitado telefonema, depois confirmado por e-mail, de dois cidadãos brasileiros, convenientemente identificados e referenciados como industriais no sector da produção de etanol, propondo a compra de uma natureza morta que tinham visto no nosso museu há duas ou três semanas
durante uma visita ocasional no caminho para Lisboa, onde iam apanhar o avião para o Rio e São Paulo na segunda-feira seguinte ao da visita ao museu. Pela obra de arte, de autor anónimo, tido por pintada no séc. XVII, ofereciam os magnatas brasileiros trezentos e cinquenta mil cruzeiros.
Lida a proposta pelo vereador da cultura e desportos, insurgiu-se logo de seguida o mesmo vereador,  considerando a proposta simplesmente repugnante. Que pensam, esses ricalhaços pançudos, quem somos para vender património cultural nosso? Que estamos de rastos a ponto de vendermos aquilo  que é parte importante da nossa memória?
Seguiu-se o silêncio da praxe, aguardando a palavra do presidente.
Parece que o quadro tem passarinho, disse o presidente ao fim de alguns momentos de expectativa, por que não vamos lá dar uma olhadela? Já agora, aproveitamos para ver como está o museu, confesso que há já alguns anos que não entro lá.
Parecia à generalidade da vereação que talvez a visita ao museu fosse justificável, a maioria nunca lá tinha posto os pés, mas aquela do passarinho uma treta que só podia caber na cabeça do presidente.

E, na sexta-feira seguinte, depois da sessão da câmara foram até ao museu, considerando a visita um prolongamento dos trabalhos do dia.
Viram e consideraram unanimemente que o museu estava a precisar de obras urgentes. No canto do vigilante, por exemplo para o qual o mesmo chamara a atenção, pingava água em dias de chuva, obrigando o trabalhador a sentar-se noutro canto, menos conveniente para a observação do espaço.
Quanto à natureza morta com passarinho a voar, ninguém conseguiu ver passarinho algum, também os esforços foram poucos para não dizer negligentes, salvo o vereador dos cemitérios que viu e se entusiasmou com o que viu, e que nunca tinha pensado que alguma vez poderia vir a ver, uma natureza morta com um passarinho, talvez um beija-flor a voar.
Resumindo e concluindo, nenhum vereador, incluindo o vereador da cultura e desportos, nem o presidente, que foi o primeiro a observar e a dizer que não tinha visto passarinho algum, e, para irritar o vereador discordante, o dos cemitérios, que era da oposição, disse que só poderia ver passarinho naquele quadro quem tivesse defeito na vista.
Quanto é que oferecem os brasileiros?
Trezentos e cinquenta mil cruzeiros, líquidos de impostos.
Quanto é isso?
Hoje, para aí uns setenta mil euros, calculou o vereador tesoureiro, recorrendo ao telemóvel, mas,
cruzeiro não é moeda de transacção, amanhã pode não valer nada. Se queremos negociar devemos negociar em euros.
Responda-se que o quadro se vende por duzentos mil euros, disse o presidente, para logo acrescentar, se houver unanimidade da vereação, oposição incluída.
Duzentos mil euros dariam um jeitão, o orçamento tinha sido aprovado mas muito esmagado, com algum dinheiro daquele, inclusive, se repararia o museu que bem precisado estava de obras, como todos haviam visto.
Observou o vereador da cultura e desportos que a proposta de venda tinha de ser submetida a aprovação da tutela, mais prudente seria que não se contasse com o ovo ainda no ovário da galinha.
Vigilante, diga-nos quantas naturezas mortas temos em acervo? ... Na cave.
Para aí umas dez.
Em boas condições?
A mulher da limpeza passa-lhe com o espanejador todas as semanas.
Constam todas do inventário?
Peço desculpa mas não sei responder.
Saberia, ou deveria saber o vereador da cultura e desportos, mas não assim do pé para a mão.
A sessão camarária do dia terminou por ali, em inventário havia menos naturezas mortas que as que tinham sido contadas  no dia seguinte, e, para não alongar demais nem ser indiscreto mais do que a prudência aconselha, o que ouvi dizer é que, passados três meses, chegava a São Paulo, embalado com seguro assegurado pelos compradores, uma natureza morta onde uns viam, outros não viam, mas os compradores tinham visto, um passarinho, pequenininho a esvoaçar constantemente, para aí há uns trezentos anos, não menos, no canto inferior direito.
O valor da transacção foi colocado, por unanimidade e compromisso de confidencialidade, no saco azul, alegadamente por já não ter chegado a tempo de constar no orçamento aprovado para aquele ano. Oportunamente, seria feita a correcção com a justificação devida. E, na sala do museu, ninguém deu por falta de quadro algum, nem o vigilante nem  a mulher da limpeza que, como já se disse, era a
mulher dele.

Entusiasmados com a chegada do quadro, trataram os compradores de contratar agente que garantisse o lucro que uma natureza morta e viva merecia, quanto mais não fosse pela originalidade impossível no campo da física, talvez da física quântica, mas, se assim viesse a ser concluído, aquilo era negócio
para deixar para trás todos os recordes imagináveis por largo tempo.
Não fosse o diabo tecê-las, guardaram a natureza morta e viva num cofre forte capaz de se aguentar com uma bomba atómica, assegurou o vendedor do cofre forte.
Compareceu um agente, representante local de uma leiloeira mundialmente bem conhecida,  que não mencionamos, não vá alguém pensar que vivemos de publicidade, abriu-se o cofre, colocou-se o quadro em local com luz adequada, e, perguntou um dos vendedores ao agente se ele conhecia aquele quadro.
Aquele não, mas conhecia centenas, quase todos de autores conhecidos, reconhecia algum mérito à obra, mas não tinha valor que merecesse ser levado a leilão. Valeria, com boa vontade e muito amor às naturezas mortas, para aí uns duzentos mil cruzeiros, valor sujeito a correcção contra o câmbio o dia em dólares.
Duzentos mil cruzeiros, sem passarinho? Em quanto avaliaria o agente quando visse o passarinho?
Fortunas!
Sente-se, por favor, senhor agente aí em frente do quadro, concentre-se no canto inferior direito, o que vê?
O agente fez várias tentativas para ver algum coisa que não tivesse visto à primeira vista, pôs óculos, tirou óculos, usou lente, e disse, não vejo nada de especial, nem cagadela de mosca sequer. Talvez uma muito imperceptível ruptura mesmo no canto da tela, mas isso ocorre com muita frequência, com obras antigas e contemporâneas, é simplesmente irrelevante.
Caíram os corações aos pés dos industriais de etanol, agradeceram ao agente, depois mande a factura para pagarmos o seu trabalho.

Mal o agente saiu, sentaram-se e levantaram-se os dois industriais junto do quadro, tantas vezes que
ficaram-lhes derreados os ossos e a arder insuportavelmente os olhos.
O que é que se passou? O que é que se passou? O que é que se passou?
Trocaram os portugueses o quadro e mandaram-nos um, parecido, com peru bêbado e tudo, mas sem passarinho? Teria o passarinho aproveitado o voo no avião para se safar de um aprisionamento de três séculos?
Foram descansar, voltaram no dia seguinte, e, para os  mesmos ensaios, os mesmos resultados. Não havia dúvida, ou os portugueses tinham feito marosca, mas como prová-lo?, ou o passarinho andaria agora a voar, talvez por ali perto, mas quem é que poderia convencer um passarinho em liberdade a voltar para um quadro do séc. XVII, de mais a mais, uma natureza morta?
Talvez o Tancredo?
Quem?
O Tancredo é um restaurador, pessoa muito competente e idónea, talvez o Tancredo possa colocar-nos aqui um passarinho, afinal uma coisa que passa tão despercebida mas com tanto potencial.
Foram ter com o Tancredo.
O Tancredo estava de saída, era fim de dia, ouviu atentamente os parceiros, e foi peremptório recusando o trabalho, mesmo sem saber por que queriam aqueles dois etanois um rabisco seu numa obra antiga.
Porquê, Tancredo, diz cá ao teu amigo há tantos anos já, porque recusas uma coisa que para ti é uma pequeníssima pincelada, para ti que já fizeste tantas ... Quantas pinceladas já fizeste Tancredo, em toda a tua vida? Milhões e milhões, hem?!
Destas, que vocês me pedem, nunca fiz na minha vida. Nem vou fazer.
Tancredo, pagamos bem.
Não pagam, que eu não recebo.
Olharam os do etanol um para outro, fizeram sinal entre eles, e colocaram, cada um cinco mil cruzeiros num envelope.
Tancredo, se não te importas, ficas cá com o quadro na oficina até amanhã, e este envelope.
E decides livremente, se fizeres o trabalho, ficas com o envelope, se não levamos o quadro e o envelope, o que nunca deixaremos é de ser amigos como dantes. Nem teve tempo o Tancredo de dizer que não, porque saíram os dois antes que ele desse por isso.
Por prudência guardou o envelope num cofre que tinha escondido em lugar bem seguro, na cave.

No dia seguinte, aparecem-lhe os dois do etanol ao fim do dia, estava o Tancredo a fechar a loja, a começar a correr a cortina de aço que protegia a entrada. Entraram, olharam para o quadro e não viram o envelope. O Tancredo tinha cedido, estava o trabalho feito. Olharam os dois o quadro, e lá estava o passarinho. Entretanto, o Tancredo tinha descido à cave da oficina, quando subiu já os dois tinham sumido, tanta era a pressa para chegar a qualquer lado que, de cá de cima, disseram até um destes dias Tancredo e saído com o quadro.

Um ou dois anos depois, estava o Tancredo às voltas com uma restauração delicadíssima, entram os do etanol com cara de satisfeitíssimos da vida, dá cá um abração, desculpa termos saído naquele dia tão sem te dar um abraço, tinhas descido à cave, mas não esquecemos o que te deve ter custado fazer o que fizeste por nós. Nunca, nunca em caso algum contaremos a quem quer que seja esse trabalho que tanto te deve ter custado à consciência de homem impoluto. Fica para sempre entre a gente. Só te pedimos que aceites este envelope para tranquilidade  da nossa consciência e da nossa amizade.
Tancredo sentiu-se, por breves instantes, faltar-lhe o sentido do equilíbrio, tinha estado todo o dia envolvido num trabalho extenuante de restauro de uma obra valiosíssima, a exigir-lhe a máxima atenção, precisão, competência, e, a ouvir aqueles dois, não percebeu patavina da conversa deles. Quando recuperou a memória, subitamente nublada, passou a mão esquerda pela testa e, a segurar-se com a mão direita no corrimão que dava para a cave, desceu, e demorou-se lá por pouco tempo. Quando subiu, trazia um envelope com ele.

Tenho aqui o envelope que aqui deixaram há um, dois anos? o tempo passa depressa, esperando que vocês por aqui passassem. Nunca passaram e eu também não tive tempo, com o trabalho que tenho tido, de vos procurar. Mas aqui está ele, é vosso, e pelas mesmas razões não vou aceitar esse que me querem oferecer agora.
Mas porquê, Tancredo, tanta honestidade é exagero, amigão. Sabemos que foi só uma pincelada, nem pincelada sequer se deve chamar, mas foi uma pinceladazinha, que nos trouxe o passarinho de volta.
Queremos, fazemos questão, de partilhar contigo, ainda que simbolicamente, o trabalho teu, que sem ele, o passarinho nunca mais voaria.
Ao fim de muitas insistências de um lado e mais resistência do outro, saíram os do etanol com os dois envelopes

Se me perguntarem se eu vi ou não vi o passarinho, devo confessar que nunca vi o quadro.
Nem sei onde para agora.

Tuesday, April 10, 2018

IVONE E A CABRA*



Há dias fomos com uns amigos assistir no "Teatro do Bairro" a "Ivone, Princesa de Borgonha".
Nunca tínhamos ido ali, nem sabíamos da existência daquele espaço  criado para artes do espectáculo
no rés-do-cão (um bar) e cave (sala de teatro) de um imóvel recuperado na Rua Luz Soriano, ao Bairro Alto.

O espaço é esteticamente agradável, o palco é uma adaptação imposta pela presença inamovível de duas colunas das que suportam o edifício recuperado. Não será pelas tais colunas que os desempenhos nos espectáculos que ali se realizam perderão aplausos do público se o merecerem. Mas tenho dúvidas se a licença de utilização daquela cave para aqueles fins teve vistoria não complacente dos bombeiros.
Continuo a pensar que se o teatro se arrasta atrás de subsídios públicos e de entradas gratuitas, em muitos casos mas não em todos, louváveis, o alheamento generalizado pelas artes cénicas não é atribuível à falta de espaços adequados mas à falta de pedagogia que o teatro deveria merecer a partir desde o ensino pré-primário até ao universitário. O teatro é a melhor forma de ler, compreender e expor, qualidades negligenciadas por muitos licenciados e doutores.
Espaços desaproveitados há vários, não é por falta de investimento público que o teatro passou a ser um espectáculo geralmente mal amado pelo público. 

No fim do espectáculo perguntaram-me:
Gostaste?
Gostei, respondi na altura. Dias depois, outros amigos, por sugestão dos primeiros, foram ver o "Ivone ...". Não gostaram.
E eu? Tinha gostado?
É um divertimento, divertiu-me, respondi.

Ontem, para desanuviamento de algumas apoquentações, recordei-me de "A Cabra ou Quem é Sylvia" de Edward Albee quando repensava a minha avaliação a quente da "Ivone, Princesa de Borgonha". O autor desta, Witold Gombrowicz, um polaco, publicou-a em 1938. Edward Albee, foi premiado em 2000 pela "Cabra ou Quem é Sylvia".

Por que é que trouxe estes dados para aqui?
Por que, pela minha leitura comparada destas duas obras, aparentemente tão diferentes, há um traço comum que as une. Quero eu dizer com isto que Albee se inspirou na obra de Gombrowicz porque, em meu entender, em cada uma delas os principais protagonistas são uma cabra e na outra uma mulher feia, mal vestida, que quase nunca fala?
De modo algum.
O tema comum é o bode expiatório, aquele que tem de ser sacrificado para que volte à  superfície a harmonia na sociedade presa a raízes contraditórias. E esse já vem de lá tão de trás, detrás até dos tempos bíblicos. O homem anda a contar as mesmas histórias há milénios, que apenas se distinguem na forma como são contadas. Porque no homem, no sapiens, pouco se mudou, se mudou alguma coisa.

Quanto ao desempenho dos actores, em "A Cabra ou Quem é Sylvia", que vimos no Teatro da Comuna, (em 2004?) recordo-me do excelente desempenho de Carlos Paulo. Em "Ivone, Princesa de Borgonha" apreciei sobretudo o desempenho da actriz que quase não fala, e de que não sei o nome.

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*Esta expressão significa aquele que suporta a culpa de actos que não praticou, ou que é responsabilizado por procedimentos de outros.
Dicionário de Expressões Correntes, de Orlando Neves, edição da Editorial Notícias, diz que «a origem é de natureza religiosa». Acrescenta, ainda, que «Em quase todos os credos, o bode tem um importante papel. Por exemplo, entre os Egípcios era venerado como princípio de toda a fecundidade. Nos Evangelhos é símbolo dos maus e dos réprobos. Expiar é acalmar Deus, oferecendo-lhe um gesto cultual de reparação e exprimindo-lhe um desejo de ficar limpo do mal feito. No Antigo Testamento, no Levítico (16), encontra-se, referida a Aarão, a cerimónia que deveria efectuar-se no "Dia da Expiação" (Yom Kippur). Um bode recebia como carga simbólica as iniquidades do povo judeu e era conduzido ao deserto para aí despejar todos os pecados e depois morrer.» - c/p aqui