Tuesday, April 10, 2018

IVONE E A CABRA*



Há dias fomos com uns amigos assistir no "Teatro do Bairro" a "Ivone, Princesa de Borgonha".
Nunca tínhamos ido ali, nem sabíamos da existência daquele espaço  criado para artes do espectáculo
no rés-do-cão (um bar) e cave (sala de teatro) de um imóvel recuperado na Rua Luz Soriano, ao Bairro Alto.

O espaço é esteticamente agradável, o palco é uma adaptação imposta pela presença inamovível de duas colunas das que suportam o edifício recuperado. Não será pelas tais colunas que os desempenhos nos espectáculos que ali se realizam perderão aplausos do público se o merecerem. Mas tenho dúvidas se a licença de utilização daquela cave para aqueles fins teve vistoria não complacente dos bombeiros.
Continuo a pensar que se o teatro se arrasta atrás de subsídios públicos e de entradas gratuitas, em muitos casos mas não em todos, louváveis, o alheamento generalizado pelas artes cénicas não é atribuível à falta de espaços adequados mas à falta de pedagogia que o teatro deveria merecer a partir desde o ensino pré-primário até ao universitário. O teatro é a melhor forma de ler, compreender e expor, qualidades negligenciadas por muitos licenciados e doutores.
Espaços desaproveitados há vários, não é por falta de investimento público que o teatro passou a ser um espectáculo geralmente mal amado pelo público. 

No fim do espectáculo perguntaram-me:
Gostaste?
Gostei, respondi na altura. Dias depois, outros amigos, por sugestão dos primeiros, foram ver o "Ivone ...". Não gostaram.
E eu? Tinha gostado?
É um divertimento, divertiu-me, respondi.

Ontem, para desanuviamento de algumas apoquentações, recordei-me de "A Cabra ou Quem é Sylvia" de Edward Albee quando repensava a minha avaliação a quente da "Ivone, Princesa de Borgonha". O autor desta, Witold Gombrowicz, um polaco, publicou-a em 1938. Edward Albee, foi premiado em 2000 pela "Cabra ou Quem é Sylvia".

Por que é que trouxe estes dados para aqui?
Por que, pela minha leitura comparada destas duas obras, aparentemente tão diferentes, há um traço comum que as une. Quero eu dizer com isto que Albee se inspirou na obra de Gombrowicz porque, em meu entender, em cada uma delas os principais protagonistas são uma cabra e na outra uma mulher feia, mal vestida, que quase nunca fala?
De modo algum.
O tema comum é o bode expiatório, aquele que tem de ser sacrificado para que volte à  superfície a harmonia na sociedade presa a raízes contraditórias. E esse já vem de lá tão de trás, detrás até dos tempos bíblicos. O homem anda a contar as mesmas histórias há milénios, que apenas se distinguem na forma como são contadas. Porque no homem, no sapiens, pouco se mudou, se mudou alguma coisa.

Quanto ao desempenho dos actores, em "A Cabra ou Quem é Sylvia", que vimos no Teatro da Comuna, (em 2004?) recordo-me do excelente desempenho de Carlos Paulo. Em "Ivone, Princesa de Borgonha" apreciei sobretudo o desempenho da actriz que quase não fala, e de que não sei o nome.

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*Esta expressão significa aquele que suporta a culpa de actos que não praticou, ou que é responsabilizado por procedimentos de outros.
Dicionário de Expressões Correntes, de Orlando Neves, edição da Editorial Notícias, diz que «a origem é de natureza religiosa». Acrescenta, ainda, que «Em quase todos os credos, o bode tem um importante papel. Por exemplo, entre os Egípcios era venerado como princípio de toda a fecundidade. Nos Evangelhos é símbolo dos maus e dos réprobos. Expiar é acalmar Deus, oferecendo-lhe um gesto cultual de reparação e exprimindo-lhe um desejo de ficar limpo do mal feito. No Antigo Testamento, no Levítico (16), encontra-se, referida a Aarão, a cerimónia que deveria efectuar-se no "Dia da Expiação" (Yom Kippur). Um bode recebia como carga simbólica as iniquidades do povo judeu e era conduzido ao deserto para aí despejar todos os pecados e depois morrer.» - c/p aqui

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