Tuesday, December 31, 2013

À ESPERA DO ANO NOVO

Esta tarde saí de casa cerca das sete para comprar alguns legumes na loja da rua 7. A Margarida está a assar borrego no forno mas esqueceu-se dos legumes, e ela não passa sem os seus legumezinhos a acompanhar o borrego. Moramos agora na rua oito, num pequeno apartamento, num primeiro andar, que adquirimos no centro da cidade, só um quarto, sala-cozinha e a casa-de-banho, perto de tudo. Mesmo por baixo de nós temos a farmácia, na rua 9 o talho e a peixaria ao lado, jornais e tabaco duas portas a seguir à nossa, e, na esquina em frente, um pequeno bar-restaurante, muito conveniente quando a Margarida está com as suas enxaquecas e a mim não me apetece cozinhar. O bairro é sossegado, o apartamento ficou-nos muito em conta, o único senão é a proximidade do Ministério da Instrução Pública, na rua Justiniano Araújo nos dias em que há protestos dos sindicatos. Nesses dias, cada vez mais frequentes, diga-se em abono da verdade ainda que a verdade nos desvalorize o apartamento, é verdadeiramente impossível sair de casa, salvo a ida à farmácia que tem uma porta para a escada do prédio. Pois, como dizia, às sete, sete e pouco da tarde, saí de casa para ir comprar legumes, grelos de couve, ou de nabo, de preferência, se não houver grelos haverá feijão verde, na loja da rua 7 nunca faltaram as verduras. A Margarida não sabe que saí, ela não me deixa sair sozinho, chegou ao ponto de me esconder a chave da porta. Mas quem procura, encontra, e eu não demoro muito, vou à loja num salto.  

Hoje é o último dia do ano, a esta hora as ruas já devem estar desertas, quem trabalhou foi para casa mais cedo, ir e vir não demoro mais que meia hora, por volta das sete e meia estou em casa, o borrego não está assado antes das oito, as batatas por volta do mesmo tempo, há tempo suficiente para cozer as verduras e jantar cerca das oito e meia. Às dez, o mais tardar, estaremos a adormecer em frente da televisão e às onze, cama, já lá vai o tempo em que passávamos o ano a saltar até estafar. Agora não, passam os anos e só demos pela sua passagem pelas dores no corpo, sobretudo nesta altura do ano, fria e húmida. 

Surpreendentemente, mal saí a porta vejo um ajuntamento a menos de cem metros de casa, na rua 7, no lado oposto onde vou comprar os legumes. Estive vai não vai para dar meia volta e desistir das verduras mas senti-me arrastar pela curiosidade de saber o que se passava lá adiante, em dia impróprio para manifestações sindicais. 

Margarida, tu não acreditas mas asseguro-te que estavam lá para cima de mil pessoas. Não as contei, claro que não, mas comparando aquilo com as manifestações dos sindicatos, se não eram mil não andaria longe. O pior é que quando me aproximei maior me pareceu a barreira que teria de atravessar para chegar à loja e comprar os grelos, se houvesse grelos. Tentei furar a barreira, mas qualquê, ninguém cedia. Perguntei a um matulão, que se punha em bicos de pés para espreitar em frente, o que se passava ali, abriu a boca para um sorriso alarve, encolheu os ombros e continuou a fazer-se ainda maior do que era. Dirigi-me então a um fulano, que por via da pouca altura não estava sequer a tentar ver alguma coisa mas estava atento às conversas ao lado, e diz-me ele, há ali um maduro sentado na berma da rua desde o meio dia à espera do ano novo. É chuchadeira ou anedota, não? Deve ser, concordou ele, mas depois que veio aí a televisão o ajuntamento não tem parado de engrossar, o pagode pensa que a televisão volta e toda a malta quer garantir um lugar de onde possa ser visto a acenar. Fiquei furioso com tanta palermice junta e tentei forçar a passagem. Levei um empurrão, por pouco não me desequilibrei e caí. Mal me recompuz, vejo o latagão engalfinhado com o labrego que me empurrara. Em três tempos, Margarida, andava meio mundo ao soco e eu no meio da confusão, safei-me da pancada mas não me safei dos polícias que, à sorte, encheram a carrinha, e lá fui eu também para a esquadra. Quando lá chegámos, eram horas de já termos os grelos ao lume, tentei convencer o comissário que estava ali por engano. Engano de quem?, perguntou ele. Ia dizer que era engano da polícia? Não podia. Comecei a contar-lhe que só ia comprar grelos na loja da rua 7 e que tu, Margarida, devias estar aflitíssima aquelas horas, mas desandou mal eu tinha aberto a boca. Posso telefonar à minha mulher?, perguntei desesperado a um guarda que passou por perto. Pode, se tiver telefone. Tinha deixado o telemóvel em casa.

Que horas são? Já passa da meia noite, pois, é muito tarde, nem vi chegar o ano novo, acreditas que só agora me me libertaram?, e vá lá vá lá, vieram trazer-me a casa. Não acreditas Margarida, eu sei que não acreditas.
Por que é as pessoas deixaram todas de acreditar em mim?

O MILAGRE DA MOLDURA DOURADA

Havia um quadro mal tratado pelo tempo numa loja de antiguidades. A moldura era dourada e cativou o padre Jamie McLeod. Jamie pagou 400 libras por tudo. Mais tarde, e a conselho de alguém que percebia mais do assunto do que Jamie, a pintura foi restaurada e apresentada em Antiques Rodshow, um programa da BBC onde são avaliadas antiguidades que os espectadores guardem em casa. E ali se conclui tratar-se o quadro de um Anton Van Dick autêntico, com um valor estimado em mil vezes superior ao preço paga pelo padre.(aqui)


O padre Jamie pensa agora vender o quadro e comprar sinos novos para o retiro religioso que administra.

AQUILO QUE NINGUÉM DIZ*



J.,
Bom Ano !
Quanto às pensões, ainda que seja assunto indigesto nesta altura do ano, o que te posso, resumidamente, dizer é que há muita confusão propositada à volta do assunto. Desde logo porque sistematicamente juntam as situações da CGA e RGSS. Ora, quanto à primeira, o valor das pensões tem aumentado na exacta medida em que o governo tem incentivado as reformas antecipadas. Como as pensões da função pública são pagas, como os salários, pela mesma entidade patronal (o Estado) a mais reformas têm de corresponder, inevitavelmente, mais impostos ou cortes nas pensões e nos salários. Mais impostos que, ou decorrem de crescimento económico ou de taxas mais elevadas. 
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Quanto ao RGSS, há que distinguir, e ninguém geralmente distingue, entre as pensões pagas a contributivos e pensões pagas a não contributivos. As pensões destes também têm de ser pagas com impostos. E não têm sido na mesma medida. Têm sido, desde 1973, os contributivos (os bancários, salvo os do Totta, e outros de regimes especiais, que são muitos, não contribuiram para a solidariedade social) quem tem suportado a solidariedade social. É uma iniquidade incalculada, de que ninguém fala porque uns não querem e outros não sabem. Durante muitos anos os saldos do RGSS foram utilizados para cobrir défices do Orçamento do Estado. E mesmo agora, segundo relatório da União Europeia citado no OE para 2014, o sistema de pensões em Portugal (parte privada) é o que menos riscos apresenta até 2060.
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Há algum tempo enviaste-me uma referência sobre a limitação de pensões na Suiça. Indesmentível, sem dúvida. Mas que não retrata toda a realidade das pensões na Suiça, ou em outros países onde as pensões se suportam nos badalados três pilares. Acontece que na Suiça e etc., os descontos para o pilar gerido por entidades públicas têm em conta a limitação dessas responsabilidades. Cá, aqueles que pagaram para fundos próprios, geridos por entidades privadas, e onde o Estado não assume qualquer responsabilidade, estão a ser tributados em CES na mesma medida em que o são as pensões (mal) geridas pelo Estado. Tal tributação pode atingir cerca de 68%. É um confisco sobre um tipo de rendimentos que não atinge em igual medida, nem de longe nem de perto, elevadíssimos rendimentos que não são pensões.
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Há vários aspectos que deveriam ser corrigidos, mas ninguém lhes quer pegar.
Entre outros:

- as pensões (todas as pensões) deveriam ser recalculadas em função de toda a carreira contributiva e utilizando os mesmos critérios de cálculo;
- a ninguém deveria ser atribuida pensão antes da idade de reforma, salvo casos de incapacidade justificada medicamente;
- a ninguém que se mantenha activo depois de atingida a idade de reforma deveria ser atribuida pensão se os seus rendimentos desse trabalho e pensão superarem, e na medida em que superarem, um determinado limite, 1500 euros, por hipótese.
- todos os benefícios sociais pagos a não contributivos deveriam ser suportados por impostos,autonomizando-se a gestão das pensões da função pública, a da segurança social de privados, e a dos não contributivos.
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* resposta a um e-mail sobre este artigo

Monday, December 30, 2013

ECONOMIA, ECOLOGIA E FOTOGRAFIA

Casualmente, os meus apontamentos de ontem, coincidiram no tema. Quando comentei a fotogaleria do Washington Post desconhecia que no Hishhorn Museum estava a exposição sobre a destruição e a arte depois de 1950. Também casualmente, acabo de receber via e-mail o endereço de uma conferência TED de Sebastião Salgado, um homem que abandonou uma bem sucedida carreira de economista e se tornou um fotógrafo famoso e um ecologista empenhado na defesa da floresta, pulmão da humanidade.

Uma explicação plausível para a aparente obsessão dos mais reputados fotógrafos pelo lado mais dramático do mundo em que vivemos estará evidenciada aqui: Sebastão Salgado : o silencioso drama da fotografia. Pessoalmente, prefiro a todas as outras que Salgado mostra na conferência aquelas duas que retratam o horizonte arrasado próximo do local onde Salgado nasceu e cresceu até aos 15 anos e o mesmo horizonte arborizado por iniciativa do fotógrafo-economista-ecologista Sebastião Salgado.

Porque a exibição das misérias aos olhos do mundo se banalizou  com a parafrenália de media em que se atulha a humanidade, a fotografia das desgraças alheias o que mais geralmente suscita é uma apreciação de admiração estética e só muito remotamente motiva algum empenho para mudar o retrato da situação sempre lamentável, qualquer que ela seja. Pior que a miséria só mesmo a indiferença que a banalização da sua exposição produz.



O DESTRUIDOR DE PIANOS

Raphael Montañez Ortiz não é um jovem cabotino à procura de um lugar no palco do mundo. Tem 79 anos, e ganhou lugar de destaque no mundo da arte como um dos mais proeminentes cultor da destruição na arte. Além dos créditos artísticos que lhe atribuem presenças de obras suas nas colecções do   Centre Pompidou, do Ludwig Museum em Colónia, do Museu de Arte Moderna, Whitney Museum of American Art e do  Everson Museum em Nova Iorque, do Chrysler Museum of Art na Virgínia e do Menil Collection em Houston, Texas, o Hishhorn Museum, em Washington DC, apresenta neste momento uma exposição - Damage Control and Art Destruction since 1950 - onde o trabalho de Ortiz é vedeta.

Damage Control on view October 24, 2013 to May 26, 2014 

Raphael Montañez é célebre a destruir pianos, uma performance que não é nele uma manifestação serôdia da sua condição artística nem um impulso recente de desespero e raiva contra qualquer inimigo interior. Ortiz destrói pianos em concertos de destruição há muitos anos já. Credenciado, além do mais, com doutoramento pelo Teachers College of Columbia University, o artista, nascido em Brooklin, Nova Iorque, é professor e um influente participante em arte destrutiva. 


Há alguém por aí que me ofereça um piano? Que seja novo sff.


Sunday, December 29, 2013

A VERTIGEM DO ABISMO

O Washington Post de hoje publica aqui uma fotogaleria das 86 imagens mais divulgadas em todo o mundo em 2013. A colecção não se destingue, quanto aos temas predominantes, daquelas que nos habituámos a ver desde há muito tempo em edições ou exposições realizadas com os mesmos critérios de selecção.

E a conclusão é sempre a mesma: são sobretudo as cenas de devastações provocadas por catástrofes naturais ou confrontos bélicos, os excessos, o burlesco, as desgraças alheias, enfim tudo aquilo que retrata o desequilíbrio do mundo ou da humanidade que mais cativa o interesse generalizado dos consumidores de imagens. Aliás, a atracção pelo desequilíbrio registado fotograficamente expressa-se também geralmente em todas as formas contemporâneas de expressão plástica, literária ou musical.

Anda a arte, como expressão avançada da trajectória da humanidade, por caminhos transviados para a depressão porque antecipa uma visão apocalíptica do futuro ou, pelo contrário, regista o sentimento sempre latente de atracção da humanidade pelo abismo?

A desregulação dos mercados financeiros (a finança é uma arte, os financeiros uns artistas embora não pareça aos olhos mais desapegados do lado material da vida) parece, se vista desta perspectiva, uma inevitabilidade rebocada pela vertigem do abismo que nos toca a todos. Talvez por isso mesmo, cinco anos depois do sismo financeiro de 2008, o sistema continua imperturbavelmente desregulado.