Thursday, May 24, 2007

DEPOIS DA SINA

Por ler Depois do espanto, a vivência



1961, Setembro

Já com a sina destraçada, peguei da mala e continuei a descer a avenida, não por contar com a ajuda dos santos mas porque para o lado dos Restauradores havia mais luminárias. Rodei na primeira à esquerda, para o Largo da Anunciada, e deixei-me depois escorregar pela Rua das Portas de Santo Antão abaixo, parando aonde o pessoal da câmara fazia esguichar água para limpar a rua.

Quando pude passar, passei, e continuei a mudar-me na rua, como um autómato, em direcção ao Rossio.

Estava a chegar ao D. Maria quando alguém me interpela a perguntar se procurava quarto. Interroguei-me antes de responder, afinal de contas no dia seguinte ia a uma inspecção médica, se não me apresentasse em condições aceitáveis lá se iria a hipótese de emprego, a âncora que procurava em Lisboa. Quanto é, quanto não é, tenho de estar de manhã, às oito e meia, nas Escadinhas do Duque, saio às sete e meia, são quase quatro da manhã, quanto me custam três horas e meia? O outro olhou-me como quem olha um extra-terrestre e disse: São oito paus mas às sete quero o quarto livre.

Carreguei com a mala por uma escada esconsa até às águas-furtadas, em cima do terceiro andar, atrás do porteiro a marcar a passada tilintando o molhe de chaves na palma da pão esquerda, como se fosse o patrão e eu o alombador.

Chegados à porta, rodou a fechadura, empurrou a porta e ficou à espera dos oito paus. Perguntei-lhe se tinha troco de vinte, disse que não, combinámos que pagaria à saída e ele não disse nada mas desceu. Evitei, deste modo, mostrar-lhe onde guardava a burra, questão vital porque não tinha outra.

Nem me despi para dormir uma hora, se tanto. O quarto tresandava a humanidade encardida, mesmo de janela aberta, o ar agoniava ainda mais a minha insónia. Ainda espreitei por debaixo de uma coberta surrada e decidi-me estender-me em cima dela, descalço e sem casaco. Pensei em tudo menos na sina.

Às seis já estava a descer a escada e a fazer contas com o porteiro.

Eram dez horas quando entrámos, vinte candidatos, para a inspecção perante uma junta médica de três clínicos. Passei nos exames e fui admitido.

No escritório, eu tinha menos vinte anos que o mais novo dos que já lá estavam. Recordo-me deles como se estivessem aqui, sempre a olharem, curiosos, as minhas heterodoxias amanuenses.

Um dia, a propósito do exame médico, perguntei ao Fernandes se ele sabia a razão pela qual nos tinham mandado por em pelota e soprar nos punhos sem sair o ar.

O Fernandes tinha sempre resposta pronta na língua e sabia, ou se não sabia parecia, tudo quanto vinha na enciclopédia. Olhou para mim um longo instante, e disse com a convicção de sempre:

Ah! Isso era para ver se tinhas os tomates rotos!

Há quem tenha? perguntei

É do que há mais, respondeu ele. E nem sorriu.

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