Anotei já várias vezes neste caderno de apontamentos a esperteza salafrária do sr. Medina Carreira, que alegremente factura há vários anos a repetição dos mesmos argumentos, uns verdadeiros, outros escandalosamente falsos.
Há dias, recebi através e-mail uma "Carta Aberta" do Almirante na situação de reforma, sr. José Manuel Castanho Paes, dirigida ao sr. Medina Carreira. Transcrevo-a porque, coincidindo no essencial as afirmações expressas com aquelas que tenho vindo a apontar neste caderno, entendo que lhe deveria dar a divulgação possível ao meu curto alcance. Ressalve-se que, se este governo é responsável em grande parte pelos atentados referidos pelo subscritor, não é menos responsável a oposição pela pusilanimidade sonsa com que vem quase ignorando as questões abordadas nesta "Carta Aberta".
CARTA ABERTA AO DR. MEDINA
CARREIRA
Por: José Manuel Castanho Paes
Vem V. Exa. agredindo
persistentemente o juízo e a paciência dos funcionários públicos e pensionistas
deste massacrado País, especialmente durante as sessões semanais do programa televisivo
“Olhos nos olhos”, com uma tal insistência que mais parece ter-se já tornado
numaobsessão. Não pretendendo retirar-lhe o mérito de, desde há longo tempo,
vir a chamar a atenção pública para os
caminhos errados que sucessivos Governos têm vindo a seguir no descontrolo das
contas públicas, principal razão por que chegámos à actual situação de descalabro
nacional; não lhe reconheço, no entanto, razão seriamente fundamentada para colocar
o ónus dos excessos da despesa pública quase que exclusivamente sobre os
aludidos grupos sociais (funcionários públicos e pensionistas). A sua visão do
problema, assente numa mera perspectiva contabilística e não macroeconómica,
peca por isso de determinadasdistorções que importa denunciar e esclarecer, a
bem da verdade e rigor que a delicadeza desta questão naturalmente exige. Para
já não falar dos aspectos morais relacionados com os graves erros, maus tratos,
ilegalidades e incontroladas prepotências, enfim, a gestão danosa a que as
contas da segurança social foram sujeitas por parte de todas as governações
após a mudança de regime operada em 1974, que levaram a que alguém responsável
já tenha avançado que a dívida do Estado à segurança social (vista em sentido
lato) se cifraria actualmente em mais de 70 mil milhões de euros (sem que
alguém por isso se tenha alguma vez sentado no banco dos réus), o facto é que,
mesmo ignorando esta triste realidade nunca assumida publicamente pelos
detentores do poder político, por motivos óbvios, o que mais importa agora é
analisar a questão numa perspectiva isenta e objectiva e não distorcer a verdade
dos factos com visões subjectivas e parcelares que só contribuem para aumentar
a confusão de quem está menos informado.
E tenho de começar por desmascarar a
mentira com que alguns altos responsáveis políticos e conceituados comentadores
vêm confundindo o público, afirmando descaradamente que os encargos públicos
com pessoal e prestações sociais representam mais de 70% (alguns até falam em
80%) da despesa total do Estado, quando eles afinal representaram, em 2013,
cerca de 30% dessa mesma despesa total (deduzindo às prestações sociais
concedidas as quotizações e contribuições pagas pelos trabalhadores e entidades
empregadoras). A conjugação dos dados constantes do Orçamento de Estado, do
Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e da PORDATA assim o provam,
se forem devidamente consultados. Nunca vi o Sr. Dr. Medina Carreira desmentir
essas falsas declarações, feitas com o claro objectivo político de justificar
perante a opinião pública as medidas governamentais que têm sido prosseguidas
no sentido de fazer incidir o grosso dos necessários cortes da despesa pública
sempre sobre os mesmos grupos de cidadãos (funcionários públicos e
pensionistas com normais carreiras contributivas). Trata-se, pois, de uma
inqualificável trapaça política. Mas então pergunto eu: será que os outros 70%da
despesa total do Estado são de facto praticamente incompressíveis? Os chamados consumos
intermédios, as subsidiações do Estado aos mais diversos agentes públicos e privados
(muitos atingindo dimensões verdadeiramente escandalosas, como é o caso das PPP
́s, dos contratos SWAP, das rendas excessivas no sector energético, e das
inúmeras fundações, associações e observatórios cuja utilidade pública tanto
tem sido posta em causa, conforme V. Exa. também tem vindo a chamar a atenção),
os encargos com entidades reguladoras (que normalmente mais se preocupam com a
defesa dos direitos dos grupos económicos do que com a defesa dos direitos e
expectativas dos consumidores), o serviço da nossa enorme dívida pública, o
aumento ocorrido nas despesas do próprio Governo como fonte privilegiada de
emprego bem remunerado, os gastos com frotas automóveis para os detentores de
cargos públicos absolutamente ostensivas e desproporcionadas etc., não serão passíveis
de maior contenção para darem um contributo substancial ao corte dos cerca de 8
mil milhões de euros que é preciso fazer na despesa pública, caso não ocorra o
desejável crescimento económico de que o País precisa? Acresce que os cortes em
despesas de pessoal e prestações sociais devem ser contabilizados nos seus
efeitos em termos líquidos e não brutos, facto que, quer a Ministra das
Finanças, quer V. Exa. parece terem alguma relutância em referir. Na verdade,
muito mais do que acontece com cortes feitos em diversas outras despesas do
Estado, quaisquer cortes em remunerações do trabalho ou prestações sociais
traduzem-se sempre numa directa redução de receitas fiscais, sobretudo em IRS e
IVA, que deve ser abatida ao seu valor bruto, para se avaliar correctamente o
seu peso real em termos de benefício para as contas públicas. E não se
contabilizam aqui, por óbvia dificuldade prática de avaliação, os seus nefastos
efeitos indirectos como acrescido factor recessivo da economia nacional, devido
fundamentalmente à redução do consumo interno e seu consequente contributo para
o aumento do desemprego.
Mas já que V. Exa. prefere ir pelo lado da comparação
de despesas com receitas, afirmando repetidamente que a receita de impostos corresponde
aproximadamente às despesas do Estado em pessoal e prestações sociais, o que tornaria
o futuro do País insustentável, dando assim a entender às pessoas menos
informadas que o Estado não dispõe de outras receitas (algumas até
especificamente destinadas a cobrir tal tipo de encargos), há então que
esclarecer que as receitas globais do Estado têm sido aproximadamente o dobro
do montante dos impostos colectados, incluindo, entre várias outras, as
próprias receitas da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações.
Assim, relativamente às
prestações sociais só faz sentido colocar a questão também emtermos líquidos,
isto é, qual a parcela dos impostos que é necessária para cobrir o deficitdos
sistemas de segurança social (SS e CGA). Ora este deficit, coberto por verbas
do Orçamento do Estado, foi, em 2013, de cerca de 13.200 milões de euros,
correspondendo, portanto, a 36,5 % da
receita de impostos (que totalizou 36.270 milhões de euros) ou a 18.2% das
receitas globais do Estado (que totalizaram 72.410 milhões de euros). Se juntarmos
as despesas de pessoal em 2013 (10.700 milhões de euros) ao deficit da segurança
social, obtemos as percentagens de 65,9% da receita de impostos e de 33% das
receitas globais do Estado. Quaisquer outras comparações que se façam nestas
matérias correm pois o risco de se tornar em pura demagogia. Por fim, importa
ainda precisar o âmbito o conceito de prestações sociais e as particularidades
específicas de cada uma delas, matéria em que V. Exa. não tem sido
suficientemente pedagógico na missão de esclarecimento público a que se tem
proposto. A primeira observação a fazer resulta da confusão, por vezes levantada
por quem pouco percebe do assunto ou tem perversas intenções, que consiste na pretendida
inclusão das despesas do Estado em saúde e educação dentro do conceito de prestações
sociais, o que é manifestamente errado. Este tipo de despesas, tal como as que correspondem
a actividades de apoio à agricultura, às pescas, à indústria, ao comércio, à cultura,
à investigação científica, ao exercício das funções de soberania (justiça,
diplomacia, defesa e segurança interna), à concretização e apoios na edificação
de infraestruturas e serviços públicos de reconhecido interesse comum, etc.,
constitui-se como uma obrigação do Estado no âmbito das suas responsabilidades
constitucionais como prestador de serviços públicos, enquanto que as prestações
sociais assumem sempre o carácter de compensações remuneratórias pagas pelo
Estado aos cidadãos, no cumprimento de contratos com eles estabelecidos ou em
outras situações previstas na lei normalmente relacionadas com apoios sociais
da mais diversa natureza. A segunda observação vai no sentido de procurar desmistificar
a ideia de que as prestações sociais são uma “esmola” do Estado, cujo montante pode
assumir valores discricionariamente estabelecidos consoante a necessidade de
satisfação de outros encargos resultantes das prioridades estabelecidas em
função das opções políticas tomadas ao longo de cada legislatura. E aqui temos
desde logo que fazer uma clara distinção entre as pensões que resultam de
carreiras contributivas normais e as demais prestações sociais. As primeiras
incluem uma componente largamente maioritária que corresponde à capitalização
dos descontos para a Segurança Social ou para a Caixa Geral de Aposentações (e
está por provar que assim não seja), feita, ao longo de uma vida de trabalho,
pelo próprio empelas respectivas entidades patronais (descontada a devida
parcela para o subsídio de desemprego).
Se o Estado retirou verbas dos
respectivos fundos para outros fins alheios à sua finalidade, se levianamente
perdoou dívidas de empresas à segurança social, se fez aplicaçõesdesastrosas
das suas reservas, se imprudentemente nacionalizou encargos com pensões privadas
utilizando as respectivas reservas para outros fins, em suma, se mal geriu e desbaratou
os fundos da segurança social, e vêm agora os seus legítimos representantes defender,
em estafados discursos de busca da sustentabilidade, que as pensões
contributivas devem ficar pura e simplesmente dependentes da conjuntura
económica e daquilo que a actual geração trabalhadora desconta, reduzidas ainda
por cima de parcelas destinadas à recapitalização desses mesmos fundos que
foram tão leviana e criminosamente desbaratados, então como quer V. Exa. que esta classe de
pensionistas não se sinta profundamente revoltada?
Se não fosse alguma contenção até
agora imposta pelo Tribunal Constitucional, os
pensionistas contributivos já estariam a sofrer em pleno, no valor das
suas pensões, a soma de vários efeitos penalizadores, que não podem nem devem
ser-lhes especificamente imputados. A sofrer pelos desmandos da
irresponsabilidade e gestão danosa do Estado na segurança social, ao longo de
muitos anos; a sofrer pela antecipação de reformas na função pública com a
finalidade de se obter a redução das despesas de pessoal; a sofrer pela
concessão de pensões vitalícias a
detentores de cargos públicos com reduzidas carreiras contributivas; a sofrer
pela inclusão no sistema de novos pensionistas com contribuições para fundos
privados, sem que esses fundos tenham entrado no sistema; a sofrer pelos
aumentos atribuídos às pensões não contributivas ou com reduzidas bases
contributivas; e, finalmente, a sofrer pela carga que ainda lhes querem colocar
para assegurar uma segurança adicional às novas gerações, para as quais,
invertendo o discurso oficial em relação à actual geração de pensionistas, se
pretende agora que na sua futura situação de pensionistas deixem de depender
unicamente das gerações que se lhes seguirem. Quanto às demais prestações
sociais, isto é, as que não resultam de carreiras contributivas normais, elas
correspondem afinal a compreensíveis e legítimas obrigações de solidariedade
social com que o Estado se comprometeu, a fim de minimizar os efeitos de
situações socialmente anómalas ou injustas tais como a extrema pobreza, a
inserção social dos excluídos, as dificuldades na obtenção de emprego, as
grandes deficiências físicas ou mentais, etc. Ora, estas situações,
constituindo portanto encargos de solidariedade social de âmbito generalizado,
devem então ser plenamente assumidas por toda a sociedade, proporcionalmente à
sua capacidade contributiva, e não como sobrecarga a colocar maioritária ou
exclusivamente sobre quem obteve a sua reforma após uma vida de trabalho com
carreira contributiva para a segurança social. A cobertura financeira deste
tipo de encargos deve portanto ser feita a partir dos impostos cobrados a todos
os cidadãos e não lançada injustamente só sobre uma parte deles, opção esta que
infelizmente não deixa de estar na mente de quem actualmente nos governa.
Uma
das táticas seguida pelo actual Governo tem
sido a de “dividir para reinar”, procurando colocar determinados grupos
sociais, de quem espera obter apoio para impôr determinadas medidas, contra
outros grupos sociais sobre os quais pretende aplicar essas mesmas medidas.
Assim, incentiva a “guerra” entre gerações por causa das pensões; apoia o
sector privado contra o sector público para que neste último lhe seja mais
fácil reduzir direitos e remunerações; e abre “guerras” dentro do próprio
sector público para atingir os mesmos fins. Há quem entenda que a política tem
de ser assim mesmo. Acontece que V.
Exa., voluntaria ou involuntariamente, tem vindo a posicionar-se, nas matérias
atrás referidas, muito mais como seu aliado do que como analista objectivo,
isento e construtivo, o que sinceramente lamento. Senhor Dr. Medina Carreira:
Eu não sou dos que têm medo das contas. Quero-as é transparentes e
perceptíveis, o que infelizmente nem sempre tenho visto nas suas comunicações e
diálogos. Desculpe-me o atrevimento de um conselho de alguém que é da sua
geração. Não tenho a veleidade de lhe pedir que o siga, mas ao menos que o
leia: procure ser mais pedagógico e menos demagógico nas suas lições
televisivas.
Muitos portugueses ficar-lhe-iam
certamente agradecidos.
Com os meus melhores
cumprimentos,
Lisboa, 25 de Julho de 2014
José Manuel Castanho Paes
Email:
jose.castanho.paes@gmail.com