Friday, June 01, 2007

A VIDA É FEITA DE NADAS

Torga nasceu há 100 anos.
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A ler Adaptado recordo,
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1956, Novembro
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Naquele ano, para me proteger do frio e da chuva, a Mãe tinha-me reciclado uma gabardina, que ficara comprida demais para o meu tamanho franzino, talvez na esperança que o excesso desafiasse os brios ao meu crescimento. Mas eu detestava a gabardina e, talvez por isso mesmo, depressa me desapareceu, sem saber como. Por sorte, naquele ano, Novembro amanhecia soalheiro e, por alturas do Verão de S. Martinho, a ninguém ocorria perguntar-me, em casa, pela gabardina. Mas eu andava preocupado que o tempo mudasse e tivesse de prestar contas pelo espólio abandonado em parte desconhecida.

Às horas a que as aulas da tarde terminavam já o Sol se tinha posto há muito. Como o comboio só saía às 18,30, íamos até à Biblioteca Municipal que, nessa época, ficava por cima dos bombeiros, no Largo da Igreja, algum tempo depois passou para a Praça Velha, ler o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras. Depressa dei conta de toda a banda desenhada que havia em stock e passei para o Sandokan de Emílio Salgari, e deste e doutros da mesma escola para o romantismo de Walter Scott. Herculano, veio logo a seguir.

Na Biblioteca, quem mandava era a Dona Ana Maria, teria cerca de sessenta anos, de estatura baixa, cabelos brancos ondulados à volta de um rosto redondo, delicado, um ar afável e respeitável de avozinha exigente e condescendente, uns olhos vivos por detrás de uns óculos de aros finos.

Um dia, estava a Dona Ana Maria a catalogar uns livros acabados de chegar, a minha timidez foi ultrapassada pela minha curiosidade, e perguntei-lhe, inopinadamente, qual o livro que, no entender dela, seria o melhor de todos os que havia ali. Olhou-me a senhora com muito espanto, primeiro, e benevolência depois, e explicou-me que não havia um mas vários, em todo o caso se tivesse de eleger um e só um, escolheria Guerra e Paz, de Tolstoi. Levei para casa, logo nessa tarde, uma edição publicada em letra miúda e impressa a duas colunas da obra do grande escritor russo. Dei conta do recado numa semana, com recurso a esquemas gráficos para não me perder no meio de tanta gente.

Na semana seguinte, tendo devolvido Guerra e Paz à Biblioteca, voltei a abusar da paciência da senhora bibliotecária, pedindo-lhe que me recomendasse um autor português moderno. Ela olhou-me, pensou por uns instantes, e retirou da estante ao lado os Bichos. Toma este, talvez te diga alguma coisa, disse. Li, e chorei pela Madalena.

Eu nunca tinha ouvido falar de Torga. Mas o poeta de S. Martinho de Anta passou, a partir dali, a ser o meu Autor. Não porque não reconheça que outros, porventura muitos, o excedem em génio, mas porque nunca pressenti, nem pressinto ainda, nenhum outro tão perto de mim.

Quando, uma tarde, dei conta à Dona Maria que, ao fim de poucos meses, tinha lido toda a obra de Torga disponível na Biblioteca, ela achou por bem realçar o meu empenho e atenção em contraponto com a ligeireza e imaturidade dos meus colegas:
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Imagina, disse ela, vêm para aí só pelas histórias aos quadradinhos, são incapazes de ler outra coisa, uns cabeças no ar que perdem tudo e mais alguma coisa, há um que até se esqueceu cá da gabardina!

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