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A ler Adaptado recordo,
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1956, Novembro
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Naquele ano, para me proteger do frio e da chuva, a Mãe tinha-me reciclado uma gabardina, que ficara comprida demais para o meu tamanho franzino, talvez na esperança que o excesso desafiasse os brios ao meu crescimento. Mas eu detestava a gabardina e, talvez por isso mesmo, depressa me desapareceu, sem saber como. Por sorte, naquele ano, Novembro amanhecia soalheiro e, por alturas do Verão de S. Martinho, a ninguém ocorria perguntar-me, em casa, pela gabardina. Mas eu andava preocupado que o tempo mudasse e tivesse de prestar contas pelo espólio abandonado em parte desconhecida.
Às horas a que as aulas da tarde terminavam já o Sol se tinha posto há muito. Como o comboio só saía às 18,30, íamos até à Biblioteca Municipal que, nessa época, ficava por cima dos bombeiros, no Largo da Igreja, algum tempo depois passou para a Praça Velha, ler o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras. Depressa dei conta de toda a banda desenhada que havia em stock e passei para o Sandokan de Emílio Salgari, e deste e doutros da mesma escola para o romantismo de Walter Scott. Herculano, veio logo a seguir.
Na Biblioteca, quem mandava era a Dona Ana Maria, teria cerca de sessenta anos, de estatura baixa, cabelos brancos ondulados à volta de um rosto redondo, delicado, um ar afável e respeitável de avozinha exigente e condescendente, uns olhos vivos por detrás de uns óculos de aros finos.
Um dia, estava a Dona Ana Maria a catalogar uns livros acabados de chegar, a minha timidez foi ultrapassada pela minha curiosidade, e perguntei-lhe, inopinadamente, qual o livro que, no entender dela, seria o melhor de todos os que havia ali. Olhou-me a senhora com muito espanto, primeiro, e benevolência depois, e explicou-me que não havia um mas vários, em todo o caso se tivesse de eleger um e só um, escolheria Guerra e Paz, de Tolstoi. Levei para casa, logo nessa tarde, uma edição publicada em letra miúda e impressa a duas colunas da obra do grande escritor russo. Dei conta do recado numa semana, com recurso a esquemas gráficos para não me perder no meio de tanta gente.
Na semana seguinte, tendo devolvido Guerra e Paz à Biblioteca, voltei a abusar da paciência da senhora bibliotecária, pedindo-lhe que me recomendasse um autor português moderno. Ela olhou-me, pensou por uns instantes, e retirou da estante ao lado os Bichos. Toma este, talvez te diga alguma coisa, disse. Li, e chorei pela Madalena.
Eu nunca tinha ouvido falar de Torga. Mas o poeta de S. Martinho de Anta passou, a partir dali, a ser o meu Autor. Não porque não reconheça que outros, porventura muitos, o excedem em génio, mas porque nunca pressenti, nem pressinto ainda, nenhum outro tão perto de mim.
Quando, uma tarde, dei conta à Dona Maria que, ao fim de poucos meses, tinha lido toda a obra de Torga disponível na Biblioteca, ela achou por bem realçar o meu empenho e atenção em contraponto com a ligeireza e imaturidade dos meus colegas:
1956, Novembro
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Naquele ano, para me proteger do frio e da chuva, a Mãe tinha-me reciclado uma gabardina, que ficara comprida demais para o meu tamanho franzino, talvez na esperança que o excesso desafiasse os brios ao meu crescimento. Mas eu detestava a gabardina e, talvez por isso mesmo, depressa me desapareceu, sem saber como. Por sorte, naquele ano, Novembro amanhecia soalheiro e, por alturas do Verão de S. Martinho, a ninguém ocorria perguntar-me, em casa, pela gabardina. Mas eu andava preocupado que o tempo mudasse e tivesse de prestar contas pelo espólio abandonado em parte desconhecida.
Às horas a que as aulas da tarde terminavam já o Sol se tinha posto há muito. Como o comboio só saía às 18,30, íamos até à Biblioteca Municipal que, nessa época, ficava por cima dos bombeiros, no Largo da Igreja, algum tempo depois passou para a Praça Velha, ler o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras. Depressa dei conta de toda a banda desenhada que havia em stock e passei para o Sandokan de Emílio Salgari, e deste e doutros da mesma escola para o romantismo de Walter Scott. Herculano, veio logo a seguir.
Na Biblioteca, quem mandava era a Dona Ana Maria, teria cerca de sessenta anos, de estatura baixa, cabelos brancos ondulados à volta de um rosto redondo, delicado, um ar afável e respeitável de avozinha exigente e condescendente, uns olhos vivos por detrás de uns óculos de aros finos.
Um dia, estava a Dona Ana Maria a catalogar uns livros acabados de chegar, a minha timidez foi ultrapassada pela minha curiosidade, e perguntei-lhe, inopinadamente, qual o livro que, no entender dela, seria o melhor de todos os que havia ali. Olhou-me a senhora com muito espanto, primeiro, e benevolência depois, e explicou-me que não havia um mas vários, em todo o caso se tivesse de eleger um e só um, escolheria Guerra e Paz, de Tolstoi. Levei para casa, logo nessa tarde, uma edição publicada em letra miúda e impressa a duas colunas da obra do grande escritor russo. Dei conta do recado numa semana, com recurso a esquemas gráficos para não me perder no meio de tanta gente.
Na semana seguinte, tendo devolvido Guerra e Paz à Biblioteca, voltei a abusar da paciência da senhora bibliotecária, pedindo-lhe que me recomendasse um autor português moderno. Ela olhou-me, pensou por uns instantes, e retirou da estante ao lado os Bichos. Toma este, talvez te diga alguma coisa, disse. Li, e chorei pela Madalena.
Eu nunca tinha ouvido falar de Torga. Mas o poeta de S. Martinho de Anta passou, a partir dali, a ser o meu Autor. Não porque não reconheça que outros, porventura muitos, o excedem em génio, mas porque nunca pressenti, nem pressinto ainda, nenhum outro tão perto de mim.
Quando, uma tarde, dei conta à Dona Maria que, ao fim de poucos meses, tinha lido toda a obra de Torga disponível na Biblioteca, ela achou por bem realçar o meu empenho e atenção em contraponto com a ligeireza e imaturidade dos meus colegas:
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Imagina, disse ela, vêm para aí só pelas histórias aos quadradinhos, são incapazes de ler outra coisa, uns cabeças no ar que perdem tudo e mais alguma coisa, há um que até se esqueceu cá da gabardina!
Imagina, disse ela, vêm para aí só pelas histórias aos quadradinhos, são incapazes de ler outra coisa, uns cabeças no ar que perdem tudo e mais alguma coisa, há um que até se esqueceu cá da gabardina!
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