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Setembro, 1959
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A primeira vez que me puseram os pés em Coimbra teria eu quatro anos, trajaram-me de S.João, do que eu mais gostei foi do carneirinho, tanto assim que, quando a Mãe foi devolver a indumentária alugada, só parei de berrar à custa de outro, por sinal ainda mais branquinho e macio, que a dona do negócio me deu. É das poucas gravações, daquele meu tempo, que subsistiram estes anos todos. Essa e outra, também do mesmo dia, quando a procissão das festas de Santa Isabel foi alvoraçada pelos gritos e o reboliço que um gatuno provocou ao arrancar, de esticão, um cordão de ouro de várias voltas. Na altura, não tinha idade para dar conta das razões do tumulto, mas quando a Mãe recordava algumas cenas vividas, essa fazia parte do reportório.
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De resto, ia-se a Coimbra se houvesse azar, próprio, de algum familiar ou de algum amigo. Por reflexo condicionado, vi sempre no caminho para Coimbra, que naqueles tempos era torto e estreito, e ainda mais demorado para quem fosse de combóio, se o estado de saúde o permitisse,
a estrada para gólgota. Se Coimbra, menina e moça, era cantada e encantada, para alguns, para muitos outros "ter de ir para Coimbra" era o pior que lhe podia acontecer na vida.
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Obrigado a férias escolares prolongadas, levei o Verão de 1959 a congeminar saídas do bloqueio. Tinha poupado uns tostões e ia fazendo contas às forças com que poderia contar para dar o salto dali. Não havia muito por onde sair, a possibilidade de rumar até Coimbra não era uma utopia, porque com essa sempre se pode sonhar, mas uma hipótese que nem sonhar consentia.
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Um dia, para esgotar as alternativas, fui até à Escola Agrícola, supondo que, se baixasse a bitola, talvez passasse a fronteira. Tratava-se de um curso de nível médio, a agricultura que eu conhecia, pensei, deveria contentar-se com custos de formação compatíveis com as minhas esforçadas economias. Além disso, continuava o meu optimismo a pensar, dando eu conta do recado, e estava confiante que daria, poderia repescar uma bolsa perdida por um daqueles azares que nos levavam a Coimbra.
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Atenderam-me cordatamente e começaram a desbobinar as condições de admissão: a entrada naquela escola do Estado pressupunha, antes de mais, finanças bastantes para custear um enxoval mais completo que o de uma noiva. Comecei a somar o preço das camisas e calças de trabalho no campo, outras para as aulas, botas de trabalho e botas de passeio, casacos, jaquetas, capa, chapéu, lençóis e cobertores, meias e um não mais quantos outros requisitos de vestimentas, tudo com a marca da escola, dizem-me às tantas, para me poupar mais trabalho de aritmética, que tudo aquilo, e só aquilo, orçava para cima de 6 contos.
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Engoli em seco e saí para apanhar o combóio de volta. Coimbra, decididamente, não era para mim, mesmo que fosse para cultivar alfaces.
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Mas não penso que tenha sido por isso que a agricultura portuguesa não saiu nem sai da cepa torta.
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De qualquer modo, Coimbra vale bem pelo cordeirinho.
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