Wednesday, June 27, 2007

O QUE NÃO PARECE

(Isto não é um conto neo-realista serôdio)

Não sei o que é feito do Dionísio. Nunca mais o vi. Alguém sabe que é feito do Dionísio? Ninguém sabe. Um dia, o Dionísio desapareceu. Procuraram-no três dias por toda a parte, esvaziaram-se até os poços, sem resultado, podia ter-se afogado, há momentos na vida em que atirar-se um homem ao poço ou saltar de lá depende duma palavra. Passados meses, constou que tinha abalado para a Borda-d’água, talvez me tenha aparecido, como figurante, num daqueles romances neo-realistas dos anos 50, mas figurante é isso mesmo, só temos olho para os protagonistas. Desapareceu-me o Dionísio e desapareceram-me quase todos os outros. O único que ainda vou vendo, de vez em quando, é o Cansado. Se há outros sobreviventes, desapareceram deste mapa. Às vezes olho mais atentamente para uns cabelos brancos, uns peitos contraídos, umas pernas cambadas, uma olheiras inchadas, para tentar descortinar por detrás das fachadas degradadas algum sinal daqueles que um dia tiraram a fotografia de grupo: metade sentados no muro da cerca da escola, os outros à frente, quase todos convenientemente descalços para jogar à bola em pé de igualdade, três de casaco e gravata, e sapatos, obviamente. O Dionísio é aquele ali à esquerda, de boné na cabeça, as calças coçadas, de casaco herdado de algum irmão mais velho, quase da altura do Novais, o professor, que está do lado contrário. Não há nenhuma miúda no grupo, as miúdas tinham aulas ao lado, em sala com acessos separados.

Ao Cansado repesquei-o, há já alguns anos, pela boca: estava ele a comprar tabaco no local onde fui comprar o jornal, e identifiquei-lhe a voz, estava ele de costas. Quando se voltou, perguntei-lhe: És o Cansado, não és. Era. Fixou-me por alguns instantes, a rebobinar a memória, e depois demo-nos um abraço. Que é feito de ti? E de ti? Trabalho, não sei fazer mais nada, tenho três filhos e oito netos; E pôs-se a contar a vida de trinta anos em cinco minutos. Quem ouviu e sorriu ficou por demais ciente que o Cansado só era cansado de nome. Se o nome trouxesse sorte o Dionísio teria levado uma vida flauteada.

Quando chegámos à quarta classe, sentávamo-nos na fila em frente da secretária do professor, à esquerda do estrado e do quadro negro. À nossa direita, os da terceira, depois os da segunda, no lado oposto os da primeira. Reger aquela sinfonia a quatro andamentos desgarrados com alguma eficiência exigia muito pulso e alguma bondade. À tarde, enquanto os mais novos cantavam a tabuada da soma, os da segunda aperfeiçoavam a leitura, os da terceira faziam o ditado, e os da quarta faziam os possíveis para poder sair dali no fim do ano lectivo. De manhã pairava o silêncio sobre os da primeira que mordiam a língua a desenhar o abc, os da segunda e da terceira que faziam as cópias e as contas; Ouvidos abertos para o professor, só os da quarta, na ala esquerda da sala.

O professor Novais tinha-se casado há pouco tempo, e, às quartas e quintas, a mulher, que parecia mais da nossa idade que da dele, costumava estar na escola, depois do almoço. E ajudava no que podia, geralmente lendo o ditado ou corrigindo os exercícios de aritmética. Sentava-se ao lado do marido, junto à secretária, em posição pouco cómoda, que a obrigava a traçar e destraçar as pernas bastas vezes.

O Dionísio era o mártir da escola. Muito mais velho que nós, já tinha completado os catorze anos, continuava a não dar conta do recado, e era a maior vítima da palmatória que o Novais retirava sorrateiramente da gaveta quando eram horas de ajustar contas. Por razões que ninguém entendia, mas que gerava suposições várias, o professor Novais redobrava a força com que brandia a malvada nas tardes em que voltava para a escola de braço dado com a mulher. Era nesses dias que o Dionísio mais devia excomungar a sorte de ter nascido para se levantar às seis da manhã, fazer três quilómetros, descalço, para se apresentar na escola e levar pancada. À tarde, ou à noite, consoante a estação do ano, voltava para casa, os três quilómetros para cumprir depressa, em casa tinha afazeres atribuídos, quanto mais tarde se despachasse mais tarde se deitava, no dia seguinte recomeçava a penitência de pecados que não cometera.

Geralmente, os castigos impostos pelas leis do Novais endureciam-se com o aproximar do exame final. Três erros, seis reguadas; duas falhas na acentuação ou na pontuação, equivaliam a um erro para os fins ditados no ponto anterior. De modo que ao Dionísio não bastava, na maior parte das vezes, uma mão para lhe espiar os erros. Começava por estender a esquerda, mas, se a dose era pesada, avançava com a direita, alternando outra vez em casos extremos. Sem pestanejar. Quanto muito soprava nas palmas quase ensanguentadas, e às vezes sorria, suponho que para nos tranquilizar.

Porque o Dionísio era também o bom gigante que equilibrava as forças entre os mais espigados e arraia-miúda. Era ainda o professor de educação sexual. Habituados a ver procriar e parir os animais, a maior parte de nós não supunha, contudo, que era feito e parido segundo as mesmas leis. O Dionísio ria-se da ingenuidade à volta, e deitava por terra a ideia que as crianças eram compradas na feira, contando tim-tim-por-tim-tim o que sabia, e que não era pouco. Na passagem da segunda para a terceira já tínhamos todos a cadeira feita.

Foi por uma tarde de uma quinta-feira de Maio, tinha-se antecipado o Verão e fazia calor de trovoada, que, se não se deu um milagre, aconteceu qualquer coisa parecida: Era dia de revisão da matéria dada, e o Dionísio acertou em cheio em todas as perguntas, deu três quartos de erro no ditado, por sorte ou não, acertou que um certo se era integrante e não condicional nem reflexo, até disse cotilédones sem trocar as sílabas, as contas saíram-lhe certas, apontou no mapa, sem hesitações, a Gardunha, o Marão e o Espinhaço-de-Cão, soube onde nasce o Sado e onde desagua o Minho, explicou porque razão a terceira dinastia foi filipina. Com a folha limpa, pela primeira vez, o Dionísio não levou pancada. O Novais, se ficou intrigado, não tugiu nem mugiu, podia ter felicitado o Dionísio, mas não disse nada, como era seu hábito.

Acabadas as perguntas, foi o Dionísio sentar-se no seu lugar, que era na última fila, junto à porta, mesmo no enfiamento do lado onde se sentava a sôssôra (era assim que a tratávamos, mulher de sôssôr só podia ser sôssôra, segundo as regras) e as provas continuaram sem mais milagres. Se alguma coisa havia a reparar era o facto da sôssôra ter deixado de cruzar as pernas, mantendo-as ligeiramente separadas, e movendo o vestido por causa do calor; e ainda o facto de do Dionísio se ter apoderado um nervosismo pouco habitual nele, que atribuímos ao sucesso inesperado daquela tarde memorável. O certo é que o Dionísio, no curto espaço de alguns minutos, deixou cair o lápis três vezes para o chão, o que teria passado despercebido se ele não tivesse de se agachar para os apanhar, mas o despropósito quebrou-se com um olhar reprovador do professor Novais. Viemos a saber isto tudo, mais tarde, pelos da segunda classe, que se sentavam na fila ao lado, dadas as circunstâncias e as posições relativas, ninguém mais na sala deu pelo incidente, aliás irrelevante.

Quando, á noite, me perguntaram, em casa, o que é que tinha acontecido uma hora depois, eu contei que, de repente, o sôssôr tinha suspendido as perguntas que estava a fazer aos da quarta classe, e berrou alto: Dionísio! Chega imediatamente aqui!

Voltámo-nos todos para o Dionísio, que se levantou com algum vagar, a compor a fralda da camisa e a apertar o cinto. Chegado junto ao estrado, o Novais tirou a palmatória e o Dionísio estendeu a mão para uma série de reguadas que só terminou quando o castigado já não conseguia suster as mãos no ar. Então, o Novais arrumou cuidadosamente, como era seu hábito, a palmatória, e o Dionísio passou por nós, a chorar pela primeira vez, a caminho da porta.

Nunca mais o vi.

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