Sunday, June 17, 2007

PRESUNÇÃO E OBRA BENTA

Caro H.E.,

Recordo da tua indignação de sexta-feira passada, dois pontos:

O facto de uma providência cautelar lançada por um indivíduo isolado ter suspendido a realização de obras públicas durante meses, causando prejuízos traduzidos em maiores custos e atrasos consideráveis no fim das obras, prejuízos esses com que os contribuintes têm de ajoujar.

O facto de uma acusação, eventualmente infundada, poder determinar que alguém seja constituído arguido que, se for autarca, poderá ver o seu mandato suspenso, se fosse aprovada a legislação anunciada pelo Governo. Se assim fosse, a legitimidade decorrente do voto, poderia sempre ser derrogada por decisão de alguém que, para o exercício da função que exerce, não se submeteu a qualquer veredicto popular, transformando-se a respública numa oligarquia judicial.

Num caso e noutro, estaremos, portanto, perante uma sobreposição do dictat da justiça sobre o querer dos cidadãos eleitores, sapando-se os alicerces fundamentais da democracia.

Contudo, aparentemente, a primeira usurpação é mais fácil de evitar que a segunda: basta que a reclamação de uma irregularidade formal ou substantiva, para poder ser apreciada pelo Ministério Público, requeira que seja subscrita por um número representativo de eleitores (5%, por exemplo, dos eleitores inscritos);

Quanto à segunda, se é certo que parece excessiva a facilidade com que se constituem arguidos e o labéu que o entendimento popular coloca nessa figura, também é verdade que os casos mais mediáticos (Felgueiras, Isaltino, Loureiro, etc.) levam a opinião pública, geralmente, a pensar que a presunção de inocência é uma bondade com que se disfarçam graves culpas no cartório da impunidade que só alberga os mais fortes. Mas deitar para debaixo da alçada da justiça todas as suspeitas que possam recair sobre os autarcas, quer elas decorram de questões que eventualmente lesaram gravemente o erário público ou de meras actuações disciplinares, é abrir aos juízes caminho para se sobreporem, inimputavelmente, à vontade popular.

Do meu ponto de vista, qualquer autarca constituído arguido deve poder manter-se em funções enquanto mantiver a confiança da maioria da assembleia da autarquia. Contudo, para que essa confiança não seja distorcida pela anestesia fiscal que neste momento se observa em matéria de gestão autárquica, os impostos destinados às autarquias deveriam ser todos liquidados e cobrados por elas. Só deste modo os cidadãos poderiam avaliar, sem opacidade, a forma como são utilizados os dinheiros que pagam sob a forma de taxas e impostos. Dito de outro modo, é fácil às Felgueiras, aos Isaltinos, aos Loureiros, etc., desta terra fazerem obra por conta própria e alheia, e "apresentarem (ainda) obra feita", se todas as obras são custeadas por um fundo onde ninguém vislumbra o contributo que deu.

Quando, recentemente, foi tornado público o estado calamitoso das finanças na Câmara de Lisboa e quantificado o montante que "cada lisboeta terá de pagar" ninguém pestanejou, porque todos sabem que as contas não vão ser feitas assim. Outro galo cantaria se, realmente, cada lisboeta fosse chamado a pagar uma parte dos desmandos que nos últimos anos foram feitos.

De modo que, caro H.E., comungo da tua indignação mas espero que concordes com as minhas reservas.

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