Sunday, August 11, 2013

UMA RAZÃO DE EXISTIR

Não há, provavelmente, nenhum ser humano não iludido à nascença por uma qualquer fé que não admita dúvidas, que em algum momento da sua vida não se tenha colocado a interrogação tão prosaica e tão velha como  a capacidade de discernimento humano: que vim eu cá fazer? Para uma questão tão elementar quanto primordial haverá uma infinidade de respostas, a cada qual a sua, consoante cada um e as suas circunstâncias, parafraseando o filósofo, aparte as metafísicas, que desconsideram todas as outras.
 
Foi a propósito desta filosofia primária que me ocorreu na véspera do Natal de 2008 anotar aqui parte de uma conversa que tive, por essa altura, com o Andrade e, para cumprir a regra, acrescentar alguns pontos que a imaginação me propôs à medida que escrevia o texto. Mas, aparte algumas pinceladas que vincam com algum exagero a personalidade do Andrade, o essencial da conversa está lá salvo o último período que foi totalmente inventado por mim. A verdade é que o Andrade não me tinha telefonado, e não havia, portanto, neto nenhum.
 
Passámos a almoçar regularmente com outros dois ex-colegas de trabalho há umas dezenas de anos atrás, e na sexta-feira passada, ainda não tinham chegado os outros dois compinchas, perguntei-lhe pela neta, a Mariana, nascida recentemente. Está óptima, disse o Andrade com um ar de felicidade estampado na resposta, pouco comum nele, geralmente mais propenso à tensão que à bonomia. E continuou: "A Mariana está óptima mas estragou-me os planos todos. A partir de agora, a música tem de ser outra. Até agora, tinha um filho sem filhos, e perguntava-me: porque carga de água vou eu deixar de gastar o que tenho se não tenho sucessão à vista e o meu filho herdará da mãe muito mais do que poderá herdar de mim? Olhando para trás, sinto que me realizei pessoal e profissionalmente, mas foi para isso que vim cá? E a resposta que me dava não me desapoquentava, e ia por esse mundo fora espraiar-me. A Mariana mudou tudo. Não sei se esse facto responde à velha questão, mas sei que é uma resposta porque a Mariana é uma continuidade que sem mim não teria recomeçado. E não sei de outra resposta nem vou continuar a procura-la."

Não lhe contei o que tinha contado em 23 de Dezembro de 2008 neste bloco de notas, parte do qual é ficção. Mas é aquela parte final, em que a ficção é total, aquela com que mais me sinto gratificado por a ter escrito.

2 comments:

aix said...

Caro Rui,
A prosaica questão metafísica… «que vim eu cá fazer»…alguns a trocam por outra igualmente prosaica e até mais metafísica… ‘para que é que me puseram cá’… Afinal esta bela prosa que escreves a completar a que escreveste para o Natal de 2008, dá resposta a tão natural quanto anódina questão…Até eu, que não amealhei os largos cobres do nosso comum Amigo Andrade, pensei ‘queimar’, com a prudência que a imprevisibilidade do fim aconselha, as minhas parcas poupanças que fui amealhando com muitos sacrifícios e algumas privações. O nascimento da minha neta matou todos os meus planos!
Que o nosso Amigo Andrade goze de muita saúde por muito tempo para ver crescer a Mariana e tu igualmente para saboreares as maravilhas dos teus netos.
Abç

O Andrade de 2013 said...

Caro Rui,

Revejo-me na generalidade no teu ótimo post e na realidade penso que cada um de diferentes formas conduz a sua vida subordinada a uma finalidade de " ordem superior ": garantir a continuidade , que os netos vêm assegurar.
Quanto ao Natal de 2008 não sabia que conhecias outro Andrade.