Cinco filhas?, mas isso é uma mina, Alexandre, menino ou menina, o que importa é que venham escorreitos, saudáveis, mulher ou homem, tanto faz, aliás, o futuro é das mulheres, basta olhar para os números, nas últimas décadas as mulheres ultrapassaram em número os homens em muitas actividades que no passado eram exclusivamente, ou quase, exercidas por homens, o número de advogadas e de juízas não pára de aumentar, já há mais médicas que médicos, um dia destes haverá mais engenheiras que engenheiros, há uns anos atrás, eram raras as mulheres que trabalhavam na banca ou nas finanças, hoje, entra-se numa dependência bancária ou numa repartição de finanças e o que mais se vê são mulheres a trabalhar, o domínio feminino é já tão evidente que ficamos sem perceber por onde andarão os homens nesta terra, por enquanto os lugares de cima nos negócios e na política continuam ocupados por homens mas não tarda muito para elas tomarem conta do leme do mundo, até na tropa e na polícia, onde a lei dos músculos está a ser substituída pela lei do conhecimento e do engenho, a preponderância masculina vai ceder, é uma questão de tempo, Alexandre, e as tuas cinco filhas terão mais hipóteses de serem mais bem sucedidas que os rapazes que poderias ter tido mas os caprichos da lei da natureza não quiseram que tivesses tido até agora.
Conversa fiada de quem não tem seis mulheres em casa e nenhum puto com quem se possa ter um dia aquelas cumplicidades que só podem existir entre pai e filho, amava a mulher, adorava as filhas, mas fazia-lhe falta um puto que fosse com ele à bola, também há, e cada vez mais, mulheres que gostam da bola, pois há, mas ele não se via no estádio com cinco filhas à sua a volta insultar os árbitros, não há futebol sem árbitros nem árbitros que não mereçam todos os insultos, e depois, ele já não é novo, casou tarde, a Joana tem menos vinte anos que ele, homem novo e mulher nova, já ia na quinta filha sempre na expectativa que lhe saísse um rapaz na sorte, a ele, com a idade que tem, preocupa-o a natural vulnerabilidade feminina, hoje os tempos são outros, as mulheres ganharam independência, as relações dos jovens de hoje não são as do seu tempo, mas em caso de distração quem continua a engravidar são elas, essa é uma lei irrevogável, só não tem destas preocupações quem não tem filhas em casa. E sendo cinco ...
Em Março a Joana ficou novamente grávida, por decisão dela, ele já tinha desistido, não porque tivesse preocupações de sustentação da prole, o negócio já tinha tido melhores dias mas continuava seguro e rentável, e mais uma filha, se o acaso continuasse para esse lado, não lhe arrombaria o orçamento, a Joana insistia em oferecer-lhe um rapaz, e, quem sabe, talvez fosse desta. Para dar as voltas à sorte, desta vez nem ela escolheu o nome do rebento antes dele nascer nem ele tencionava increvê-lo no Benfica logo no dia do nascimento. Em Maio, quando foram conhecidos os primeiros sinais ecográficos que davam como muito provável que o feto era masculino, só não houve festa rija para não desafiar o destino. Mas em Agosto, já não havia dúvidas, assegurou o médico assistente, era rapaz o que viria aí lá para finais do ano. E o Alexandre não resistiu a informar os conhecidos, e a convidar os amigos para um jantar lá em casa. Tanta
alegria só era ligeiramente ensombrada por uma preocupação incontornável: quando o filho tivesse idade para ir à bola talvez ele já não tivesse pernas para lhe acompanhar a passada. Era cada vez mais frequente, quem não lhe conhecia a família, suporem que a Joana era a sua filha mais velha ou, mais desanidor ainda, que ele era o avôzinho do grupo.
Em Novembro, confirmava-se o excelente desenvolvimento do nascituro, teria pelo menos quatro quilos à nascença, quase cinquenta centímetros de altura, o rapagão deveria nascer entre o Natal e o Ano Novo mas o obstreta, porque tinha programado férias na neve no fim do ano e não queria deixar de assistir o nascimento, insistia em antecipar ou adiar o parto por uns dias com uma cesariana. A ideia do médico repugnou o Alexandre e a Joana preferiu o adiamento.
Há bocado, liguei pelo Skype ao Alexandre para lhe desejar Bom Natal e perguntar pelo rapaz, deparei-me com um Alexandre, normalmente um poço de calma, salvo nas bancadas do Benfica, furioso, como nunca o vi desde que nos conhecemos. Depois de despejar o grosso da irritação com um discurso, atropelado pela fúria que lhe saía com as palavras, e de que não entendi a maior parte, o Alexandre, ao fim desse tempo de raiva incontida, nitidamente exausto, fez-me o relato das últimas 24 horas lá em casa. Ontem à noite, cerca das 10, rebentaram as águas à Joana, o f-d-p do médico já tinha saído para a Serra Nevada, na Clínica não havia um único médico de serviço, imagina!, enfermeiras havia uma por junto e foi preciso telefonar-lhe para casa. Agora ninguém pode nascer no dia de Natal nem de Ano Novo! Percebe-se isto? Não se percebe. Mas o mais grave, o mais gravíssimo, o inaceitável, o que mais me revolta é que, era meia noite em ponto, veio a enfermeira, saltitante e sorridente a bater-se a uma gratificação choruda, mostrar-me uma criança ... que não é minha, não é minha de certeza absoluta! Como não é minha? É fácil: é uma cachopa! Uma cachopa, imagina. Fizeram as ecografias que entenderam, garantiram repetidamente que era um rapaz, e trazem-me lá de dentro uma catraia. Percebe-se isto? Que disse a enfermeira? Disse que, às vezes, os dignósticos saem errados ... como se os diagnósticos pudessem sair repetidamente errados. Sim, já insisti que revisse se não teria havido troca de crianças no berçário. Afiançou-me que não. Que em toda a maternidade da clínica, aquela tinha sido a única a nascer nas últimas 36 horas, que não havia hipótese alguma de confusão, de troca. Mas eu sei lá, pode dizer o que quiser, estava a pensar apresentar o caso à polícia, confirmar por ADN, e disse isso mesmo à enfermeira. Nem pestanejou, faça o que entender senhor Alexandre, mas o ADN confirmar-lhe-á que a sua filha é a mãe! Quanto ao pai, é melhor perguntar-lhe a ela, à mãe. Grande cabra! Já não há respeito nenhum pelos mais velhos! Hum!!! Sim, já falei com a Joana, falei. Encontrei-a também desolada por não termos acertado ainda desta vez. Mas ficou furiosa comigo quando lhe disse que ia requerer prova de ADN. Percebe-se isto?
Hesitei uns segundos, à procura de uma resposta, foi-se o Skype abaixo.
O ano passado, a Joana tinha-me confidenciado, durante um jantar em casa deles, que o ginecologista lhe tinha garantido que, com o mesmo parceiro, jamais teria geração masculina. Ouvindo o Alexandre, fiquei na dúvida se a Joana não levou longe demais a sua disponibilidade para dar um rapaz ao Alexandre.