Não, nunca pedi nada a ninguém, nem ao Menino Jesus. Quando era miúdo, a mãe dizia-me que não valia a pena estar a pedir prendas pelo Natal porque os pedidos eram sempre mais que muitos e o Menino Jesus ficava com o saco vazio lá em cima antes de chegar cá abaixo onde nós morávamos, de modo que nem ao Menino Jesus alguma vez pedi fosse o que fosse. Já vou nos 45, vivo sozinho numa casa antiga, desde que a mãe morreu o ano passado, nunca me casei. Por quê? Sei lá porquê. Nem sei. Não calhou, acho eu. Trabalho numa empresa de segurança, sou bem constituído, não sou careca mas ando sempre de cabelo rapado, em casa tenho de fazer tudo: as refeições, as limpezas, as pequenas e as grandes reparações, porque o que ganho é pouco e o senhorio diz que a renda não dá para mandar cantar um cego quanto mais reparar as canalizações. Aos fins-de-semana vou até ao campo da bola ver jogar os rapazes, dantes também jogava, agora deixei-me disso, à tarde leio o Correio da Manhã, à noite vejo um bocado de televisão, geralmente coisas da bola e uma ou outra novela, mas já ando enjoado, são sempre as mesmas histórias. Do que eu estou a precisar mesmo é de uma companhia, pensei. Já tinha pensado nisso muitas vezes mas às tantas tornou-se obsessão, de modo que, como era Natal, resolvi pedir ao Menino Jesus que me arranjasse uma companhia, finalmente queria casar. Tinha esta ideia engatilhada, já tinha enviado carta em correio azul, quando ouvi dizer que agora não é o Menino Jesus quem dava presentes pelo Natal mas o Pai Natal. E escrevi também ao Pai Natal. Com uma diferença: para o Menino Jesus enderecei : Querido Menino Jesus. Para o Pai Natal, que não sei quem é, dirigi-me assim: Caro Pai Natal. Ainda a carta para o Pai Natal não tinha chegado ao destino e já me avisavam que o melhor mesmo era dirigir-me ao São Nicolau, que eu também não conhecia. Mais carta menos carta, enviei mais uma, desta vez ao cuidado do Senhor São Nicolau. Ainda estive para pôr senhor doutor São Nicolau mas não sei se ele é português. E fiquei à espera do que me iria sair na rifa. Na noite de Natal, isto já foi o ano passado, vai agora fazer um ano, não consegui dormir. Coloquei os sapatos junto ao fogão, porque não tenho lareira e não sabia de local mais apropriado. Sempre ouvi dizer que o Menino Jesus descia pela chaminé, não vi outra entrada possível, a menos que deixasse a porta aberta mas fazia frio lá fora e um segurança fecha sempre as portas. Por volta da meia noite, mais coisa menos coisa, ouço uma discussão brava no telhado: Eu cheguei primeiro, mas eu sou o mais velho, vá lá, vá lá, haja harmonia, estamos no Natal ... Fui abrir-lhes a porta. Entraram os três que discutiam prioridades no telhado, cada qual com seu saco. O Pai Natal foi o primeiro a desatar o seu e apresentou-me uma loura, Oh meu Deus, pensei, se não fosse tão tímido como sou tinha dito aos outros que poderíamos ficar logo por ali. Educadamente, esperei que São Nicolau desatasse o nó cego, que estava difícil, e, aberto o saco, salta-me para o lado uma morena, estive quase a perguntar se poderia ficar com as duas, nem pensei que era um empregado de uma empresa de segurança com ordenado pouco superior ao salário mínimo. Foi então a vez do Menino Jesus me surpreender com a sua prenda: O Reinaldo, um rapazinho bem parecido, professor de inglês, fiquei a saber, foi o que saiu do terceiro saco. E agora? Perguntou-me o Menino Jesus? Fiquei indeciso entre a loura e a morena mas depressa fiquei a perceber que era o Reinaldo quem queria ficar logo ali. Agora, respondi eu, parece que tenho de escolher, não é? não posso ficar com as duas?, perguntei a medo. Miserável polígamo, gritaram São Nicolau e o Pai Natal ao mesmo tempo que ensacavam as moças e se punham a andar. Mas, disse eu ao Menino Jesus, eu disse que queria casar... Pois disseste mas não disseste com quem. E tu podes casar com o Reinaldo porque é que não podes?, respondeu o Menino Jesus, com uma voz que não era de recém-nascido. Casas com o Reinaldo, onde é que está o problema? Mas, Menino Jesus, disse eu, eu disse casar e ... Miserável homofóbico voltou o Menino Jesus a vociferar com voz pouco adequada, casas com o Reinaldo!, casas com o Reinaldo!, casas com o Reinaldo! Sem saber o que é que o Menino Jesus me tinha chamado, percebi pelo tom de voz que seria pecado e dos graúdos. Casei com o Reinaldo. Casei com o Reinaldo mas continuo como dantes: a segurança de dia, os trabalhos de casa à noite, porque o Reinaldo prometeu tudo mas não mexe uma palha em casa. Aos fins-de-semana vou ver os rapazes a jogar à bola, à tarde leio o Correio da Manhã, à noite deixei de ver televisão porque o Reinaldo tem outros interesses e eu não ganho para duas televisões. E passei a dormir no sofá. Mas o que mais me chateia é que passei a andar constantemente com dores de pescoço, riem-se de mim lá na empresa, suponho que não acreditam que o torcicolo é mesmo por causa do sofá. O que me vale é que o Reinaldo vai pedir o divórcio por falta de consumação do casamento. Não sei o que é isso nem quero saber. Venha o divórcio. E valha-me São Nicolau!