Tuesday, December 22, 2009

COM O MAL DOS GREGOS NÃO PODEMOS NÓS BEM

Ricardo Reis
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1. A relevância das taxas de juro
Quando um Estado gasta mais do que as suas receitas (um défice), tem de pedir emprestada a diferença. Em vez de irem a um banco, os países vendem obrigações do tesouro em leilão. Estes papéis rendem ao seu portador uma quantia fixa dentro de um certo período, e são vendidos a quem estiver disposto a pagar mais. Se eu ganho o leilão oferecendo 900 euros hoje por uma obrigação que rende mil euros daqui a um ano, a taxa de juro que o Estado português paga é 10%.

Entretanto, há um mercado activo e líquido onde todos os dias posso vender este papel a outra pessoa. Se uns dias depois vendo a obrigação por 950 euros, ficamos a saber que se o Estado tivesse feito um novo leilão nesse dia, a taxa de juro cairia para 5%. O preço neste mercado permite por isso aferir a taxa de juro que o Estado enfrenta todos os dias.As taxas de juro mudam e são diferentes de país para país em função do risco das obrigações. Existem dois riscos numa dívida do Estado. Primeiro, o risco de o Estado declarar bancarrota. Nos países desenvolvidos, isto acontece raramente. Portugal já não o faz desde 1892; a Grécia, desde 1893; e a Alemanha, desde 1932. Segundo, existe o risco de o Estado imprimir dinheiro e gerar inflação. Embora a quantia a pagar seja a mesma na moeda do país, o seu valor real na perspectiva de um estrangeiro passa a ser menor. A inflação ou, equivalente, a desvalorização da moeda é uma forma disfarçada de renegar o pagamento da dívida. Portugal nos anos 80 e 90 fazia- -o frequentemente. Por isso, quando o Estado português pedia emprestado, pagava uma taxa de juro bem mais alta do que a cobrada à Alemanha. Com a entrada no euro, este segundo risco desapareceu. Portugal e a Alemanha passaram a ter a mesma moeda, e o controlo da inflação passou para as mãos do Banco Central Europeu. O BCE é independente dos Estados para nunca ceder à tentação de criar inflação para lhes resolver problemas fiscais. A figura 1 mostra a taxa de juro anual paga pela Alemanha nas obrigações a 10 anos entre 2002 e 2007, assim como a taxa paga por outros países da zona euro, incluindo Portugal. Eliminado o risco da inflação, e sendo remoto o risco de bancarrota, com o euro Portugal passou a pagar quase a mesma taxa de juro que a Alemanha. Para apreciar quão extraordinário isto é, no gráfico está também a taxa de juro paga pelo Reino Unido. O mero risco de desvalorização da libra levou a que Portugal durante estes 6 anos pagasse bem menos pelas suas dívidas do que os honrados súbditos de Sua Majestade, apesar da sua reputação secular de bons pagadores.

2. O período pós-2008

No segundo gráfico vê-se a diferença entre as taxas de juro pagas pela Grécia, Irlanda, Itália, Espanha e Portugal e a taxa de juro paga pela Alemanha desde 1 de Janeiro de 2008. De um diferencial médio de 0,12% entre 2002 e 2007, estes países passaram a pagar desde então taxas de juro acima das alemãs, que na sexta-feira chegaram aos 2,7% para a Grécia. No início de 2009, Portugal pagou mais 1,58% do que a Alemanha, um número tão assustador que me levou a escrever uma coluna no "Expresso" intitulada "O verdadeiro pânico". Este número revela que os investidores punham uma probabilidade séria de Portugal entrar em bancarrota. Se isto acontecesse, ninguém mais quereria emprestar a Portugal, o que forçaria medidas draconianas que eliminassem em absoluto o défice. As tentativas de controlo das contas públicas dos últimos 4 anos mostram que isto só seria possível com cortes drásticos nos salários dos funcionários públicos, e talvez mesmo a eliminação de programas como o rendimento social de inserção. Uma alternativa à bancarrota é a saída da zona euro, a recuperação do escudo, e a desvalorização imediata da nova moeda. Esta hipótese é menos plausível. Em primeiro lugar, agora que a dívida portuguesa foi contraída em euros, desvalorizar o escudo só ajudaria se a dívida fosse reformulada em escudos, o que é complicado em termos legais. Para além do mais, desvalorizar o escudo viria com inflação nos dois dígitos, e os muitos produtos importados a que estamos habituados saltariam para preços proibitivos. As dívidas das empresas portuguesas no estrangeiro, denominadas em euros, explodiriam, levando a falências em catadupa e a uma subida em flecha do desemprego. Por fim, o Estado não conseguiria achar investidores a quem vender novas obrigações, forçando o mesmo ajuste repentino das contas públicas. Deixar o euro evitaria a bancarrota formal, mas teria consequências mais graves.


3. Crise financeira e contágio

Como pode este cenário catastrófico ser visto pelo mercado como provável? Antes de imaginar histórias nebulosas de malvados especuladores, relembre-se que qualquer pessoa pode comprar obrigações do tesouro portuguesas. Se você acha que o mercado está errado nesta avaliação, deve aproveitar-se da taxa de juro apetecível neste instante. Umas semanas depois do meu artigo no "Expresso", tive de discutir numa conferência académica o novo trabalho de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff (acabado de sair em livro). Estes dois autores documentaram a história das muitas crises financeiras dos últimos 200 anos. Uma das suas conclusões é de que quase todas as crises levam à bancarrota dos Estados com contas públicas mais frágeis. A crise financeira de 2008-09 e os nossos falhanços sucessivos em controlar as contas públicas explicam a percepção de bancarrota revelada pelas taxas de juro.

Mesmo assim, a primeira bancarrota seria provavelmente na Grécia. A Irlanda também estava em perigo, mas depois de medidas corajosas para controlar o défice nas últimas duas semanas, a sua taxa de juro caiu a pique. A Grécia tem uma dívida pública maior do que Portugal (em parte devido à aventura dos Jogos Olímpicos e do novo aeroporto de Atenas), um défice maior, e uma história recente marcada por truques contabilísticos de fazer corar até os nossos políticos. No último mês, os gregos recusaram tomar medidas de controlo do défice, continuando a endividar-se a grande ritmo. Mas se a Grécia seria a primeira, isto não devia tranquilizar Portugal. A 18 de Agosto de 1998, a Rússia declarou bancarrota. Nas semanas seguintes, países tão diversos com o Brasil, o México e até a Região Administrativa de Hong Kong tiveram sérias dificuldades em encontrar compradores para a sua dívida pública. Estes países tinham finanças públicas em melhor estado do que Portugal. Uma olhada rápida à figura 2 mostra que se a Grécia cair, a pressão cairá de seguida sobre Portugal, Espanha e Itália. Pode prever-se com certeza este contágio? Não, o contágio nas crises ainda é um tema difícil de explicar ou prever. Por exemplo, a Argentina declarou bancarrota em Dezembro de 2001 e, com a excepção do Uruguai, praticamente não houve contágio. É difícil, no entanto, não ter insónias sobre o assunto.


4. Respostas postiças

Como sempre, quando o problema é sério, surgem argumentos postiços que menorizam a questão. Primeiro, pode olhar-se para a figura 2 e notar que o Reino Unido está a pagar a mesma taxa de juro que Portugal. Mas o Reino Unido tem a libra, Portugal o euro. A taxa de juro inglesa reflecte o risco (normal) de desvalorização da libra em relação ao euro; a taxa de juro portuguesa reflecte exclusivamente o risco de bancarrota. Segundo, pode esperar-se que os países ricos da zona euro, como a Alemanha e a França, venham em nosso socorro. Mas partir daqui para concluir que não há problema é um disparate. Se os alemães pagarem as nossas dívidas por nós, não o farão sem contrapartidas. Vão exigir que os portugueses ponham as contas em ordem, de forma a pagarem o favor e evitarem futuros problemas. Isto é precisamente o que faz o FMI. Quem viveu em Portugal durante as intervenções do FMI sabe quão draconianas são as medidas para pôr as contas em ordem. Como descreveu Luís Campos e Cunha no "Público" há poucos dias, Portugal transformar-se-ia num protectorado da Alemanha.


5. Conclusões

Portugal vai entrar em bancarrota? Provavelmente não. Mas a possibilidade de isso ocorrer era praticamente zero há uma década e hoje é bem alta. Uma simples chance em cem de renegarmos as nossas dívidas pela primeira vez desde 1892 é assustadora. Como qualquer pessoa afundada em dívidas, Portugal tem duas opções. Uma é ganhar mais dinheiro com um aumento no crescimento económico. Há uma década que Portugal não cresce. A outra é corrigir o défice público, o que nesta altura de recessão só tornaria a vida dos portugueses ainda mais difícil. Se Portugal tem estas escolhas dolorosas só tem de se culpar a si mesmo pela irresponsabilidade do crescimento do Estado e pela acumulação de dívida pública nos últimos 20 anos. No mínimo, exige-se aos nossos governantes que tranquilizem os nossos credores com intenções claras, apoiadas por medidas concretas, de controlo das finanças públicas e promoção do crescimento económico. Continuar a esconder o problema dos portugueses, entretendo-os com telenovelas de insultos na Assembleia da República e temas fracturantes no topo da agenda só levará mais depressa ao precipício.

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