A Irlanda, outra vez
* Miguel Frasquilho
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... , a Irlanda era dos países mais pobres da União Europeia (UE) na década de 80 (uma situação parecida com a de Portugal), e foi capaz de dar o salto e chegar ao segundo nível de vida mais elevado dos 27 (logo atrás do Luxemburgo). Tal deveu-se à prossecução de opções de política económica acertadas, de entre as quais saliento (i) uma aposta na educação, com a massificação do ensino básico e secundário ainda nos anos 60 e um elevado investimento no ensino técnico e científico já nos anos 80; (ii) a assinatura de diversos pactos sociais tri-anuais consecutivos desde 1987, que envolveram o governo, os partidos da oposição, e as associações patronais e sindicais, e que permitiram controlar decisivamente as despesas públicas; (iii) uma política fiscal extraordinariamente competitiva; (iv) baixa burocracia; (v) legislação laboral flexível. A tudo isto deve somar-se a forte ligação da Irlanda aos EUA (através da emigração) e o facto de a língua materna ser o inglês, o que facilitou, a partir do final dos anos 80, com o início do fenómeno da globalização, que empresas da chamada "nova economia", como Intel, IBM, Digital, HP, Gateway ou Dell e, mais tarde, Apple ou PayPal, se tivessem estabelecido na Europa a partir da Irlanda - tendo o mesmo sucedido, por exemplo, com unidades da indústria farmacêutica, do equipamento médico e dos serviços financeiros. E com isso não só atraíram novas empresas estrangeiras, como originaram a expansão de uma série de empresas nacionais suas fornecedoras, fortalecendo a economia doméstica.… Porém, confirmando que tudo o que sobe cai, uma exposição exagerada do sector financeiro irlandês ao subprime nos EUA, e o rebentamento de uma bolha imobiliária de enormes dimensões (cujas raízes remontam ao sobreaquecimento da economia e às baixas taxas de juro fixadas pelo BCE, claramente desadequadas para a Irlanda), levaram o outrora "tigre celta" a passar do 80 para o 8: os preços no imobiliário já desceram mais de 25% desde os máximos de 2007 e as ajudas do Estado às instituições financeiras foram superiores a EUR 450 mil milhões, ou 230% do PIB (14.9% em Portugal…) - o que tornou a situação no país a segunda pior a nível mundial, logo a seguir à falida Islândia. Junte-se a esta realidade a deterioração económica global e o consequente tombo das exportações (que sustentavam, em boa parte, a actividade irlandesa) e percebemos por que o crescimento económico será um dos piores na UE no período 2008--2010 (com uma projecção de -8% para 2009); a taxa de desemprego já entrou na casa dos dois dígitos; os excedentes das contas públicas deram lugar a défices que a Comissão Europeia estima poderem atingir os dois dígitos face ao PIB de 2009 a 2011; a dívida pública deverá atingir mais de 80% do PIB em 2010, quando era de 25% em 2007. E assim, sem surpresa, as agências de rating baixaram a notação da dívida pública irlandesa, classificando as perspectivas como negativas (o que indicia novas revisões em baixa). Ora, tal como no passado a Irlanda foi para mim um exemplo - ao enfrentar sem "paninhos quentes", nos anos 80, a crise por que passava -, o que já se conhece do modo como pretende encarar a actual situação pode revelar-se igualmente um ensinamento a não desprezar. A linha de actuação centra-se na correcção do já referido desequilíbrio das contas públicas - mas sem comprometer a competitividade da economia, sobretudo na vertente fiscal. E assim, para colocar o défice público abaixo de 3% do PIB em 2014, como acordado com Bruxelas, o Governo irlandês pretende implementar um plano draconiano de cortes na despesa, que inclui a descida dos salários na Administração Pública, a redução de benefícios sociais (Segurança Social, subsídio de desemprego, abono de família, sistema de saúde), o aumento da idade de reforma para os funcionários públicos de 65 para 66 anos, e a diminuição do investimento público. Ao todo, uma queda prevista da despesa pública superior a EUR 4 mil milhões em 2010 face ao valor estimado para 2009 (cerca de EUR 77 mil milhões, 46.9% do PIB)… a que se seguirá nova queda, de cerca de EUR 2 mil milhões em 2011. É particularmente impressivo o corte de 10% que, em média, sofrerão os cerca de 400 mil funcionários públicos irlandeses em 2010… E como o exemplo vem de cima, o primeiro-ministro verá o seu salário reduzido em 20% (!) e os ministros em 15%... Do lado da receita, merece destaque a introdução de uma taxa ambiental (de carbono) sobre os combustíveis, que deverá render cerca de EUR 500 milhões… mas, ao mesmo tempo, a Irlanda ainda arranjou espaço para descer a taxa normal do IVA, de 21.5% para 21% (uma pequena ajuda à economia doméstica). E mantém como ponto de honra não subir a taxa de IRC, que continuará a ser de 12.5% (muito atractiva para investidores). Estou convencido que a Irlanda dará a volta por cima. A recuperação global dará novo ímpeto exportador ao país e, afinal, todos os ingredientes que conduziram ao caso de sucesso se mantêm: recursos humanos qualificados, legislação laboral flexível, baixa burocracia, política fiscal competitiva. A correcção salarial iniciada no sector público e a redução do défice para valores comportáveis até 2014 deverão completar o puzzle.Bem sei que Portugal não se encontra na mesma situação da Irlanda: a queda resultante da crise internacional foi (felizmente) bastante mais suave, mas isso deve-se ao facto de há cerca de uma década que virmos definhando devido às conhecidas debilidades internas estruturais que voltarão ao de cima. Entre as quais as contas públicas que, definitivamente, não estão em ordem.Tudo somado, não creio que um plano tão draconiano do lado da despesa pública como o irlandês seja imprescindível em Portugal - mas será preciso cortar ou, no mínimo, conter. Onde?... No investimento público, a margem de manobra já é muito reduzida… E não creio que seja esta a altura mais apropriada para reduzir benefícios sociais. Assim, sendo, restam… as despesas de funcionamento. Salários incluídos. Como na Irlanda, o exemplo bem poderia vir de cima… Quanto aos impostos, veja-se também o exemplo celta… e creio que fica tudo dito. Se no passado recente as opções irlandesas nos passaram ao lado, bem que agora podíamos, ao menos, olhar para elas… Com a convicção de que poderá não ser necessário ir tão longe - mas com a certeza de que só com firmeza e coragem, que tanto têm faltado, seremos capazes de não nos tornar numa "nova Grécia".
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*Várias vezes discordei de Miguel Frasquilho em comentários que coloquei aqui a artigos seus transcritos naquele blog. As minhas discordâncias localizaram-se sempre na insistência com que MF enfatizava ( e continua a enfatizar) as virtudes da redução dos impostos no relançamento da economia em Portugal. Uma das propostas de MF foi a redução da taxa do IVA, ainda que mínima. O Governo acabou por fazer essa redução mas os resultados foram desastrosos: o défice das contas públicas teve um rombo significativo e a redução ficou geralmente nos bolsos dos intermediários.
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Transcrevo hoje um artigo de MF colocado no Negócios online porque faz com grande clareza uma síntese do que aconteceu na Irlanda nos últimos quarenta anos e, em particular, nos últimos dois. E procura retirar do caso irlandês algumas receitas para Portugal. Volta a insistir na política fiscal agressiva dos irlandeses e considera necessária a redução dos salários do funcionalismo público.
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Miguel Frasquilho é Deputado, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD, e tem, portanto, especiais responsabilidades na definição de uma política do seu partido relativamente ao OE que vai ser em breve discutido na AR. Teremos, nessa altura, uma posição clara do PSD acerca das políticas inadiáveis ou jogará, como tem feito, sobretudo no confronto com o Governo, independentemente da natureza das políticas deste?
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Ou tem Miguel Frasquilho um chapéu para a AR e outro paras crónicas nos jornais?
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