Sunday, November 08, 2009

AS DESCULPAS DO EURO

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Caro FA.,
Com todo o respeito que me merece o vosso trabalho, atrevo-me a colocar algumas dúvidas que o mesmo me suscita. Faço-o porque ele aponta para culpas excessivas, do meu ponto de vista, do euro nas perdas de emprego na indústria. E porque essa culpabilização excessiva tende a camuflar outros factores relevantes. O bode expiatório é sacrificado em nome dos verdadeiros culpados.
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Ainda que de importância menor para a questão central de que o documento se ocupa, não me parece que possa avaliar-se a desindustrialização pela redução do emprego na indústria. Desindustrialização será a redução do peso relativo da indústria na riqueza produzida. A redução do emprego pode corresponder, e geralmente corresponde dentro de períodos de reestruturação, a aumentos de produtividade e de produção superiores em termos relativos aos empregos sacrificados.
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Aconteceu no sector primário, acontecerá um dia no sector terciário. (O homem está de volta ao Jardim das Delícias onde o trabalho que subsistir será disputado e, portanto, pago segundo a lei da oferta e da procura, que deverá resistir. Depois de tantos milénios de expiação por um pecado sem sentido, a humanidade, se não se imolar na mesma pira, terá de se habituar a trabalhar cada vez menos).
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A globalização, se potenciada até às últimas consequências, incitará a aumentos de produtividade em todos os sectores com inevitáveis perdas de emprego globais. Transitoriamente, haverá transferências de emprego para os locais onde os custos de mão-de-obra aliciam a deslocalização, mas a longo prazo o equilíbrio restabelecer-se-á num patamar onde os níveis salariais se nivelaram. Entretanto, os locais perdedores de emprego ou reduzem os salários ou vêem continuar a sangria.
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Culpa do euro? Terá alguma mas está muito longe de ser o principal culpado.
Na passada sexta-feira, foi oficialmente inaugurada uma nova fábrica de produção de papel de escritório, com um capacidade de 500 mil toneladas anuais, um investimento de 550 milhões de euros, o segundo maior investimento privado realizado até agora em Portugal, o primeiro continua a ser Auto Europa. Adicionada à capacidade que o mesmo grupo já tinha, a produção total de 1,3 milhões de toneladas coloca o grupo português no primeiro lugar do ranking europeu do sector e em terceiro lugar a nível mundial.
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Não estamos a falar de têxteis nem de calçado mas também não estamos a falar de uma indústria de ponta tecnológica. A primeira fábrica do grupo foi começada a construir em 1953. A produtividade do sector cresceu dramaticamente nas duas últimas décadas, a fortes aumentos de produção corresponderam significativos decréscimos de empregos. O grupo contribui com cerca de 4% para o volume total das exportações portuguesas, a quase totalidade da produção é exportada, 80% para a Europa. É inócuo o euro nos resultados da empresa? Não é. Mas como as matérias primas utilizadas (madeira) são quase exclusivamente de origem nacional, os custos dos factores são relativamente estáveis e os resultados tendem a reflectir sobretudo as variações dos preços. Se vivessemos ainda no tempo da moeda maluca o que é que teria acontecido? O grupo veria o seu volume de vendas a crescer com a desvalorização da maluca mas teria, ao mesmo tempo, que pagar aos trabalhadores e fornecedores valores actualizados.
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Um outro aspecto, que não vejo referido nestas contas das culpas do euro é o do efeito da desvalorização sobre a dívida das empresas.
E, no entanto, ele não é despiciendo e pode ser fatal. É que a uma desvalorização anual de, digamos 20%, supondo uma inflação deslizante, corresponde um encaixe médio de 10% nas vendas mas de 20% sobre a dívida* e respectivos juros.
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Os têxteis e o calçado tiveram o seu período de crescimento em Portugal numa época em que os salários eram mais competitivos do que os dos países de onde se deslocalizaram aquelas actividades até ao dia em que, por obra e graça da globalização (que de qualquer modo foi inevitável mas a sua eventual reversão poderia ser uma tragédia global), chineses, indianos e outros se apresentaram no mercado dispostos a trabalhar por menos. Sem outros recursos para além da mão-de-obra, com euro ou sem euro, a batalha estava perdida se não houvesse engenho para fazer a diferença. E não houve em grande parte do casos.
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É por demais evidente, contudo, e já muita gente o disse, que desfrutar das vantagens de uma moeda forte tem custos e quem os pagou até agora têm sido os sectores dos bens transaccionáveis. Quem tem ganho (em fama e grossos proveitos) têm sido os não transaccionáveis, onde se inclui todo o Estado.
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As indústrias transformadoras de pequena, média ou grande dimensão, que vegetaram em Portugal porque os salários eram baixos poderão queixar-se do euro porque ele garantiu salários reais que as deixou ainda mais fora de pé e ninguém politicamente assume que com moeda fraca os salários eram reduzidos pela inflação, e que o efeito equivalente, com moeda forte, exigiria redução dos salários nominais. Que em todo o caso seria insuficiente, se fosse apenas equivalente, porque a diferença salarial dos concorrentes é bem superior à valorização do euro.
Resta considerar ainda a concorrência de desvalorizações competitivas entre moedas fracas, porque nada nos garante que à desvalorização da nossa moeda (fraca) não respondessem os concorrentes com desvalorizações das suas.
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Refira-se ainda que a industrialização de acampamento teve reflexos não negligenciáveis no sector primário. A nossa incomparável dependência alimentar agravou-se com a massiva transferência de interesses do sector agrícola para as indústrias que agora se deslocalizam quase todos os dias. Leio no jornal de hoje que metade do azeite consumido em Portugal vem de Espanha, segundo dados fornecidos pela Federação Nacional do Azeite.
De Espanha, não de um país do terceiro mundo.
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*Se a dívida estiver denominada em moeda forte. Ainda que os empréstimos em moeda estrangeira sejam intermediados pelos bancos, estes repercutem nos tomadores finais dos empréstimos a desvalorização observada na moeda nacional.

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