.
Pouca gente o sabe, mas a Matemática do Ensino Básico rege-se actualmente por dois documentos discrepantes. A correcção está prevista, mas prepare-se o país para o pior: a ser aprovado um documento de reajustamento agora em discussão, a Matemática da escolaridade obrigatória passará a reger-se por três documentos desconexos. Sim, três.O primeiro é o «Programa», completado em 1991 e que, com Roberto Carneiro, introduziu oficiosamente a pedagogia construtivista no ensino, com as consequências que se conhecem. O segundo é o chamado «Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais», construído ao longo de vários anos, nos tempos de Ana Benavente, e aprovado em 2001, estando previsto ser concretizado num programa que substituiria o de 1991 e que nunca foi acabado. O terceiro será um documento de reajustamento, colocado fugazmente à discussão este Verão e agora em análise na 5 de Outubro. Pretendeu o ministério evitar as descontinuidades e as grandes reformas pedagógicas; em vez de estabelecer um novo programa, fez um reajustamento que permitisse clarificar o que se ensina na Matemática do Básico. É natural que as intenções tivessem sido de tornar claro o que se ensina e não se ensina e de esclarecer o que se pretende que os jovens aprendam e consolidem ao longo dos nove anos do ensino obrigatório. Esperariam pais e professores que o novo documento resolvesse as incoerências entre o «Programa» de 1991 e o «Currículo» de 2001 e que traçasse objectivos claros, ano a ano, com rigor, objectividade e alguma exigência. Engano. O nosso Ministério da Educação tem dito que quer cortar com o passado. Transmite uma imagem de rigor e até de intransigência. Seria bom que cortasse também com o passado nas orientações pedagógicas que a experiência mostrou serem erróneas. A reformulação do programa é pouco clara nos objectivos e conteúdos, mas insiste na má orientação pedagógica da Matemática e em muitos dos erros das últimas décadas. Quer isto dizer que as vozes críticas que se têm levantado na educação continuam a não ter qualquer sucesso? O reconhecimento público quase generalizado de que as coisas não vão bem no ensino, em particular no da Matemática, não tem abrandado o dogmatismo daqueles teóricos da pedagogia que de há anos a esta parte negam a evidência dos resultados e se esforçam por propagar a «escola inclusiva», as «competências gerais», a «pedagogia não directiva» e o «ensino centrado no aluno». Mas tem obrigado a um maior comedimento nas palavras. Os dislates discursivos que ficaram conhecidos como «eduquês» abrandaram. O sestro não. Um exemplo elucidativo é fornecido precisamente pelo actual documento de reajustamento do programa. Os seus responsáveis defenderam durante anos uma teoria pedagógica perniciosa que opõe conteúdos a competências. Defenderam que os conteúdos não fazem sentido se não estiverem englobados em «competências», conceito que corresponderia a atitudes, conhecimento em acção ou capacidades gerais. Se esta teoria pretendesse apenas contrariar o ensino excessivamente livresco e sublinhar a importância de aplicar os conhecimentos, nada haveria a opor. Contudo, como é habitual entre ideólogos dogmáticos, o prélio foi levado ao limite, rejeitando a importância do conhecimento e acentuando competências vagas e palavrosas. A moda alastrou ao Ensino Superior. Aos professores começou a pedir-se que preenchessem formulários longos em que fossem destacadas as «competências comunicacionais» da Álgebra ou as «competências multiculturais» da Electrónica. No Ensino Básico, as «competências» foram de tal forma glorificadas que os documentos oficiais desprezam o valor do conhecimento em si. Como resultado, as exigências claras e precisas respeitantes aos conteúdos começaram a ser substituídas por referências palavrosas e vagas às competências genéricas. Começou a falar-se do «conhecimento contextualizado» como receita geral, esquecendo a necessidade da abstracção. A verdade, contrariamente ao documento de 2001, é que o conhecimento não pode nem deve ser totalmente organizado em competências e deve ser especificado em conteúdos disciplinares precisos e testáveis. Como os críticos dessa orientação focaram, dever-se-ia utilizar «conhecimentos e capacidades» ou outra expressão que explicitamente incluísse os conteúdos. Mais importante do que o invólucro são as recomendações práticas. Começando pelas omissões. Como o afirmou a Sociedade Portuguesa de Matemática num parecer sobre este mesmo documento, ele «não constitui um apoio claro e preciso, de consulta simples e directa, para o professor. Constitui apenas um amontoado de recomendações, algumas ambíguas, outras de hierarquia confusa, muitas redundantes, algumas repetitivamente apresentadas». Ao contrário do que seria de esperar, o documento não apresenta metas claras e verificáveis para as diversas etapas. Diz que o «professor decide o nível de profundidade a tratar cada tópico» (pág. 11) e rejeita a apresentação de «um roteiro possível de temas e tópicos a trabalhar por se considerar que tal deve ser definido a nível de escola ou de agrupamento escolar» (pág. 2). O estado actual do ensino e das escolas, no entanto, necessita de recomendações objectivas e precisas, onde possível especificadas ano a ano. É absolutamente indispensável que os professores e as escolas trabalhem com metas claras. Os vícios da linguagem «não directiva» continuam. Fala-se em «discutir com os alunos» (pág. 62) e nunca em «transmitir conhecimentos». Fala-se em «tarefas que o professor decide propor» (pág. 12) ou «pedir» (pág. 35) e não se diz que as deve «indicar» ou «mostrar». Para se perceber a profundidade do descaminho linguístico, basta dizer que nem uma única vez se usa a palavra «ensinar». O mais gravoso é a persistente desvalorização da memorização, dos automatismos e da mecanização dos algoritmos. Desiludem-se os professores e pais que esperavam encontrar recomendações claras sobre a necessidade de domínio da tabuada, de prática de algoritmos das operações elementares e de domínio de conhecimentos. Não se clarifica, por exemplo, em cada etapa de estudo, a destreza na multiplicação com papel e lápis que os estudantes devem ter. Insiste-se no uso da calculadora desde o Primeiro Ciclo. Aquilo que toda a gente sensata vê com facilidade, que é a necessidade de evitar a máquina enquanto se aprende a tabuada e as operações elementares, os ideólogos dogmáticos do «eduquês» não conseguem ver. As ferramentas modernas, como a calculadora e o computador, devem ser introduzidas no Ensino Básico. E mesmo no Primeiro Ciclo pode ser conveniente que os alunos comecem a familiarizar-se com estes instrumentos. Mas é absolutamente necessário que os jovens estudantes sejam impedidos de usar a calculadora no momento em que estão a memorizar a tabuada e a treinar as operações. Não se aprende a nadar passeando de barco. A calculadora pode e deve ter lugar na sala de aula, mas quando o professor disser, não quando os alunos quiserem. O programa de 1991 cometia o erro de dizer que o aluno tem o direito de usar a calculadora sempre que o entender. O novo documento deveria corrigir expressamente esse erro absurdo, ao invés de voltar a insistir no uso indiscriminado da máquina. Mas alguma vez a «nomenklatura» da Educação reconheceu algum erro?! O problema, infelizmente, não é apenas português. Se lermos o recém-publicado Eduquês: Um Flagelo sem Fronteiras, de Laurent Lafforgue e outros (Gradiva, 2007), vemos como a degradação dos conteúdos disciplinares e a sobrevalorização da calculadora têm ajudado a degradar as capacidades de cálculo e de raciocínio numérico dos jovens franceses e de outros países europeus. O documento de reajustamento do programa menospreza os algoritmos tradicionais e pretende que os professores treinem o cálculo por processos morosos, pouco eficientes e viciadores. Assim, por exemplo, defende-se que se aprenda a somar 3 com 4 fazendo «3+3+1=7» (pág. 17), a somar 543 com 267 por «somas parciais» (pág. 19) e a dividir 596 por 35 por «subtracções sucessivas» (pág. 19). Ou seja, em vez de exercitar a memória e treinar os processos mais eficientes, pretende-se prolongar no aluno o uso de métodos de recurso propensos ao erro. Ao mesmo tempo que se desprezam os objectivos modestos, mas atingíveis, destacam-se metas utópicas, como a de os alunos serem «capazes de fazer Matemática de modo autónomo», nomeadamente «formular e investigar conjecturas matemáticas» (pág. 6), recomenda-se que realizem «investigação matemática» (pág. 11) e diz-se que devem «descobrir os critérios de divisibilidade» (pág. 35). Poderá pensar-se que se trata apenas de exageros, mas uma das características mais marcantes do construtivismo educativo dogmático é falar da compreensão, da descoberta autónoma e do desenvolvimento do raciocínio - metas grandiosas! - e, ao mesmo tempo, repudiar o desenvolvimento das destrezas básicas que lhes são antecedentes. Para que os fracassos destes métodos de ensino não se revelem, o documento defende que a avaliação deve «centrar a sua ênfase no que os alunos sabem, o que são capazes de fazer, e como o fazem, em vez de focar-se no que não sabem» (pág. 13). Frase lapidar! A merecer moldura negra para relembrar às gerações futuras o que ideólogos dogmáticos dizem quando cegos pela sanha ideológica. Esta ideia, por si só, erradicaria por completo o insucesso escolar. Teste-se nos alunos o que eles sabem e não o que deveriam saber que o país progredirá sem o incómodo de conhecer as suas deficiências educativas.Por estranho que pareça, a ideia de rejeitar a avaliação como algo incómodo não é uma excentricidade do «eduquês», antes é parte integrante e basilar dos extremos da pedagogia romântica. Alguns, negando a possibilidade de objectividade absoluta, rejeitam a avaliação no seu todo como um resquício do positivismo (pobre positivismo!). Outros assumem alguns momentos de teste de conhecimentos, mas apenas como pró-forma prófuga. Apesar de largamente discutidos e anualmente polemizados, os exames rareiam em Portugal. Os estudantes passam os nove anos de escolaridade obrigatória sem nenhum exame nacional. Apenas no 9.º ano, depois de terem frequentado dezenas de disciplinas, são testados nacionalmente a duas. Apenas duas: Português e Matemática. Mesmo nestes exames, que só existem de há três anos a esta parte, a classificação obtida apenas conta para 30% da nota final. Os efeitos são reduzidíssimos, embora tenham tido uma acção moderadora. O país mudou desde que os exames nacionais do 12.º ano, com Marçal Grilo, e os exames nacionais do 9.º ano, com David Justino, foram instituídos. Imagina-se que mais poderia mudar se a avaliação externa nacional fosse mais frequente, se incidisse sobre mais disciplinas e se fosse mais rigorosa e fiável. As mudanças no sistema de avaliação são decisivas para a regulação de todo o sistema educativo. Mas, ao longo de anos de provas de aferição e de exames nacionais, o ministério não conseguiu (ou não quis) instituir testes fiáveis, isto é, comparáveis de ano a ano e, por isso, avaliadores da evolução global do ensino. A agravá-lo, fala-se em limitar o âmbito dos exames do 12.º ano às matérias desse ano lectivo e não às de todo o Ensino Secundário, como tem sido regra. Mantêm-se as oscilações. No fim do ano lectivo transacto, o exame de Matemática do 12.º ano teve mais meia hora de tempo de prova, mantendo um conteúdo comparável ao dos anos anteriores. A percentagem de aprovações subiu de 71% em 2006 para 82% em 2007. Na Matemática do 9.º ano, o único nível onde houve um plano de acção ministerial específico, a percentagem de aprovações desceu de 37% para 27%. No Português do mesmo nível escolar, a percentagem de aprovações subiu de 54% para 86%. São oscilações espantosas. Alguém acredita que correspondam a mudanças reais nos conhecimentos dos alunos? Uma das conclusões dos estudos internacionais é a da grande inércia dos sistemas de ensino. Os resultados reais mantêm-se semelhantes ao longo de anos e só lentamente mudam. Em Portugal, aquilo que os alunos sabem também tem mudado pouco. O que tem mudado são os exames. Querendo moralizar o sistema de ensino, é indispensável produzir exames fiáveis, comparáveis ano a ano. Estamos a começar um novo ano lectivo. Imagine-se um professor dedicado, tentando este ano dar mais atenção às deficiências básicas dos seus alunos e desdobrando-se para incentivar ainda mais os melhores. Imagine-se um casal que resolve investir mais no seu filho, acompanhando diariamente os seus estudos. Imagine-se um jovem aluno do 12.º ano, ambicionando notas elevadas para poder entrar no curso que escolheu. E pense-se agora que as notas finais vão depender em larguíssima medida não do trabalho do professor, não do esforço dos pais e não do trabalho do aluno, mas sim da maneira como este ano forem feitos os exames.É difícil trabalhar numa escola assim! Generalizar e reformular a avaliação é uma das tarefas mais urgentes do nosso sistema de ensino. Conte-se com os professores que gostariam de ver o resultado do seu trabalho honestamente medido. Conte-se com as famílias que começam a perceber o logro dos progressos fictícios. Não se conte com o «eduquês». Olhemos para a maneira como as «competências» são tratadas neste novo documento. Omitem-se e substituem-se por «conhecimentos e capacidades»... O facto seria de louvar, mas é tão surpreendente nas pessoas que mais defenderam a teoria das competências que é difícil de perceber. Os documentos estão na Internet e permitem uma busca por palavras. Procure-se «competência», ou «competências». Desapareceram! A tentativa de evitar a controversa palavra foi tal que, nas referências bibliográficas, o próprio título do documento de 2001 foi truncado. É espantoso. A surpresa é quase tão grande como a que teríamos se, subitamente, padres da Igreja Católica elidissem do seu vocabulário a palavra «Jesus».
No comments:
Post a Comment