O Arnold ligou esta manhã para me dizer que o anúncio tinha sido publicado no DN, sem dizer bom dia. Já leste o DN de hoje? Não tinha lido. Aliás, não leio o DN, embirro com o título gótico. Mas onde ele queria chegar vinha na sequência de uma conversa que tivemos há duas semanas durante um almoço no Ritz. Eu já não via o Arnold há uns vinte e tal anos nem tinha tido notícias dele desde aquele dia em que o Diniz da Gama decidira acabar com o programa de reorganização da fábrica porque, disse ele, tinha encontrado alternativa mais conveniente. Que alternativa era essa, nem ele me disse nem eu perguntei, afinal o termo do contrato libertava-me de um fardo emocional que o acaso me tinha posto às costas dois meses antes, e qualquer razão era boa para não recair sobre mim o ónus da rescisão do contrato.
Havia no edifício administrativo da fábrica uma sala de reuniões vigiada pelos retratos dos fundadores, e duas vitrinas de exposição dos momentos mais marcantes da empresa. À volta dessa mesa, pesada e comprida, de castanho português, podiam sentar-se, à vontade, trinta e seis pessoas, disse-me Diniz da Gama, quando me mostrou as instalações, no mesmo tom grave de orgulho com que me garantira que a fábrica podia produzir mais de uma centena de toneladas de peles e cabedais por mês. Nas vitrinas tinha lugar de destaque o "alvará concedido por sua magestade o senhor Dom Luís em mil oitocentos e trinta e cinco, mil oitocentos e trinta e cinco não pode ser, aquele oito parece um três, foi em mil oitocentos e oitenta e cinco, tinha, então, o meu bisavô trinta e cinco anos, antes já negociava em peles em fresco". Era naquela sala que eu me reunia com os responsáveis pelas secções da produção e a contabilista, a Júlia, uma mulher vistosa, morena, na casa dos trinta, casada, sem filhos, com o engenheiro director, o Vieira, que não cheguei a conhecer, estava doente há largos meses. Com o passar do tempo, a Júlia começou a aparecer na sala de reuniões com ar cada vez mais perturbado. A princípio entendi que a atormentava a doença prolongada do marido, mas depois suspeitei que haveria outras razões que não poderia descortinar. Um dia, ia a sair da sala onde me reunira com a contabilista, quando passa no corredor Diniz da Gama e me convida a entrar para o seu gabinete. Visivelmente incomodado por alguma razão que, naquele momento, não entendi, disse-me que me via demasiadamente ocupado com as contas e menos com os processos industriais. Se as contas me preocupassem, não teria contratado um consultor engenheiro mas um auditor! Respondi-lhe que sem um bom entendimento dos custos dificilmente se poderia reorganizar a fábrica sem colocar em causa tudo o que nela, bom ou menos bom, existia. Pois muito bem, engenheiro, ainda bem que estamos de acordo. Isto não tem ponta por onde se lhe pegue, desisto do seu projecto e vou por em marcha outra alternativa. Só depois do almoço com o Arnold, há duas semanas, consegui reconstituir o puzzle das razões que levaram Diniz da Gama a tomar decisão de terminar o contrato.
Quando entrei no Ritz o Arnold ainda não tinha chegado. Sentei-me na sala, a olhar o parque, naquele dia envolto por uma morrinha que prometia durar o dia inteiro, e a recordar o percurso da casualidade que me tinha levado até ali. Depois de terminado o secundário no colégio alemão, tinha visto o Arnold duas ou três vezes em almoços de antigos alunos e, anos mais tarde, no dia em que deparei com ele na empresa de Diniz da Gama. Inesperadamente, o Arnold telefonou-me, não sei onde desencantou o número do meu telemóvel, para me convidar para aquele almoço no Ritz.
Chegou afogueado, com menos cabelo e mais peso, louro, alto e rosado, com mais trinta anos em cima é uma edição aumentada e usada do rapaz esguio e trunfa loura e comprida que todas as miúdas daquele tempo gostariam de ter em casa. Depois dos reconhecimentos e cumprimentos, atirou-se para um canto do sofá onde eu me sentara, estendendo lateralmente as gâmbias, aparando a barriga com os dedos cruzados, ao mesmo tempo que abria o seu sorriso largo, sempre satisfeito com a vida, eu, no outro lado, intrigado com a convocatória sem agenda, e foi ele o primeiro a mentir: Estás na mesma, pá! O que é que tu fazes para estares sempre na mesma? O mesmo digo eu. Que é feito de ti, grande malandro? Há quanto tempo é que a gente já não se via? Dez anos, vinte, hem?!, não menos que dez anos... Pelas minhas contas, não menos que vinte.
Depois do colégio, cada um foi à sua vida, e a vida de cada um de nós andava por caminhos que só por acaso se voltariam a encontrar: o Arnold foi para Inglaterra, onde frequentou engenharia automóvel, casou com uma italiana que tinha conhecido em Turim, tem sete filhos, foi corredor de ralis durante anos, até à morte prematura do pai, tornando-se, então, sócio e seu sucessor na firma de representação de duas ou três marcas de carros de gama altíssima; eu fiquei por Lisboa, andei no Técnico, estive três anos na tropa, dois em Moçambique, voltei em Novembro de 74.
Em Outubro de 1983, era então engenheiro consultor de processos industriais, recebo uma chamada da parte de um tal senhor Diniz da Gama, de quem não tinha qualquer referência para além da informação de que era amigo ou conhecido de um outro cliente meu. Percebi depois que estava preocupado com a competitividade da sua indústria de curtumes, arrasada, dizia ele, pelas reivindicações absurdas dos sindicatos. Combinámos uma visita à fábrica, e, uns dias depois, viajámos até lá no carro do industrial. Diniz da Gama era um homem de estatura baixa, desempenado, na casa dos sessenta e muitos, e apareceu acompanhado de um sujeito alto, cujo nome naquele momento não retive, aparentando sensivelmente a mesma idade. Feitas as apresentações, eles sentaram-se atrás, eu à frente, ao lado do condutor. Logo que o carro entrou na auto estrada, a conversa no banco de trás passou a ser audível à frente, e cada vez mais perceptível a intenção deles de me juntarem à discussão do tema que os animava naquela manhã de outono a despedir-se: a situação política e económica do país tinha-se degradado a um ponto de onde, conclusão unânime do duo várias vezes repetida, não sairia sem um novo golpe que restaurasse a ordem e acabasse com os sindicatos. Quando chegámos, eram quase horas de almoço, fomos almoçar. A conversa à mesa continuou o mesmo tema que tinha entretido a viagem, eu ouvia, mostrava-me interessado, mas não dizia nada. Inesperadamente, Diniz da Gama, volta-se para mim, e dispara: O que diz a isto, engenheiro? Perante a minha hesitação, ajudada pelo vai vem do garfo entre o prato e a boca, ele reforçou a pergunta: Não lhe parece que com estes sindicatos é impossível aguentarmos a indústria? John Falconer, era esse o nome do amigo de Diniz da Gama, interpôs-se com um "eu acho!", prevenindo-me, subliminarmente, que poderia com uma resposta inadequada estragar o almoço e a encomenda. Depois de fazer umas contas dir-lhe-ei quanto lhe custa isso, respondi, e o industrial, aparentemente, acomodou-se com a resposta.
Muito bem, vamos às contas!, pagou a factura e fomos ver a fábrica.
Diniz da Gama tinha boas razões para se sentir preocupado com o andamento da sua actividade industrial, tecnologicamente obsoleta, abalada de um dia para o outro pelas alterações desencadeadas a partir de Abril de 74, agravadas pela recessão dupla mundial em 1980 e 1982, que lhe derrocaram a fortaleza onde vivera tantos anos de prosperidade tranquila. Subiram os preços, subiram os juros, e, incompreensivelmente para ele, subiam as reclamações de aumentos de salários. Como é que posso, diga-me lá engenheiro, aumentar os salários e manter os preços se quiser vender?
Tem de investir ...
Não tenho feito outra coisa toda a vida, engenheiro. Está aqui enterrado tudo o que ganhei! Se não tivesse outros negócios, esses sim, deixam alguma coisa, estaria hoje na penúria.
Que negócios eram esses, não disse.
Eram seis da tarde quando nos reunimos com os encarregados das secções da fábrica e a contabilista para lhes anunciar uma primeira observação da minha parte, que não duraria mais que duas semanas, seguida, se assim fosse decidido, por uma intervenção que se prolongaria por cerca de três meses.
Em meados de Dezembro, cruzo-me no corredor do edifício dos escritórios com um fulano que tive a imediata sensação de conhecer mas não me recordava de onde. Estou a conhecer-te de algum lado, não estou? Eh! pá! O que é que fazes aqui? Isso mesmo pergunto eu. Era o Arnold.
O Arnold, Arnold Falconer, era sobrinho de Diniz da Gama, filho do John Falconer e da irmã do Diniz. Fomos almoçar, passámos em revista os anos passados desde a saída do colégio, comentámos a situação política do momento, acabámos por falar daquilo a que o Arnold chamava as idiossincrasias do Didi, o tio Diniz. Vinha de vez em quando até à fábrica, se o tio o convidava, porque, dizia o Didi, como não tenho filhos nem mais sobrinhos, um dia destes quem tem de tomar conta disto és tu. De forma que é melhor que vás aparecendo, preparando-te para alombar com a cruz que os tipos que tomaram conta disto nos colocaram às costas. Uma vez por outra, o Didi convidava o cunhado para umas patuscadas, umas aventuras fora de portas, para John Falconer a indústria das peles e cabedais era um negócio repelente.
Segundo Arnold, Diniz da Gama tinha durante toda a vida papado as papas na cabeça da irmã.
Quando o avô Gama morreu, o Diniz voltou a casa, depois de vadiar e estoirar a pródiga mesada paterna durante anos, e tomou conta dos negócios da família. Casou-se tarde, quarentão, e não teve filhos. Nos dias em que se deixava embalar pelos espíritos, em reuniões de amigos, culpava a mulher, alto e bom som, pela falta de descendência. E gabava-se de ter multiplicado por dez a dimensão dos negócios de curtumes. Mas nunca, mesmo em tais circunstâncias de visível obnubilação alcoólica, abrira a porta ao segredo da compatibilização dos escassos dividendos dos negócios familiares e a exibição da vida que levava. O Arnold suspeitava que ele, conluiado com os agentes no estrangeiro, partia a meias as comissões creditadas a cada um, tornando-se agente geral de todas as exportações da fábrica. Mas provar isso, o Didi não deixava provar. E não voltei a ver o Arnold até aquele dia em que, trinta anos mais tarde, almoçávamos no Ritz.
Nunca mais voltaste à fábrica?
Nunca mais. O Diniz não voltou a chamar-me e, eu, mesmo que ele me tivesse chamado, não tinha posto lá mais os pés.
O projecto de reestruturação da fábrica foi à viola ...
Foi completamente abandonado. Andou às turras com os sindicatos, incompatibilizou-se com os encarregados, os únicos que poderiam amortecer os conflitos com os operários. Soube mais tarde que um dia descobriu que tinha o problema resolvido empregando uma dúzia de ucranianos que tinham arribado por lá perto. Qual reestruturação, qual modernização, qual investimento, qual carapuça, com os meus ucranianos vou dar a volta a isto em três tempos!
A falta de carácter de certos indivíduos traduz-se frequentemente numa frase dita com a maior naturalidade deste mundo. Numa reunião, a que assisti, com os encarregados, soube que o Vieira, seu braço direito durante muitos anos, continuava doente. Displicentemente, sem o mínimo clique emocional, perguntou por perguntar Diniz da Gama: E quando é que ele morre? Quando me recordo disto ainda hoje me recordo da náusea que aquele vómito me provocou. Soube mais tarde que o Vieira morreu pouco tempo depois
Era um tipo intratável, concordo...
Era?!! Deixou de ser, ou já morreu?
Nem uma coisa nem outra, está doido, numa situação de insanidade total! Abandonou a mulher doente, e vive desde há algum tempo com a Júlia, lembras-te da Júlia? a Júlia era a a mulher do Vieira, e uma filha que, dizem, é filha de um dos ucranianos, talvez engenheiro, que substituiu o Vieira no cargo e na cama. Mãe e filha deram-lhe a volta ao miolo e o doido perfilhou a filha da Júlia, tornando-a sua herdeira universal...
E não pode?
Não pode porque está doido! Já lançámos acção de impugnação por insanidade do perfilhante.
Agora percebo tudo. Só não percebo a razão porque me contas tudo isso. Seria um razoável argumento para uma telenovela mas não acredito que me estejas a convidar para escrever o guião, em toda a minha vida só vi uma telenovela, a Gabriela, a preto e branco.
Preciso de testemunhas, e pensei que tu, que o conheceste quando estava mentalmente são, que pudesses depor no processo de impugnação. Enfim, ganharíamos todos com isso. Tanto quanto conseguimos saber até agora, a fortuna dele ascende a uns larguíssimos milhões ... em risco de cair toda nas mãos da Júlia e da filha.
Nem penses! respondi de imediato.
Vá lá, vá lá, não é preciso decidires já, um dia destes telefono-te a informar sobre o anúncio da entrada do processo no tribunal. Está muita massa em jogo...
Não falámos mais sobre o assunto durante o almoço, e não voltámos a falar até ao telefonema de há momentos.
Então, já decidiste?, insistiu ele
Já tinha decidido. E não volto atrás com a decisão. Não tenho nada a testemunhar. Não vejo o Diniz há trinta anos, sei lá se está doido ou não ... Além de que, tanto quanto julgo saber, o pai da filha da Júlia não é o engenheiro ucraniano.
Não é??? Como é que sabes isso?
Disse-me a Júlia.
Ela mesmo?
Ela mesmo.
Hum! Não te fazia tão próximo da Júlia ...
Ficámos amigos. Um bom consultor nunca perde os contactos ...
Mas se não é filha do ucraniano, de quem é? Do velho não é. Há muito tempo que se sabe na família que a infertilidade do casal vem do lado dele e não do lado dela.
Pois não, não é.
É do ucraniano. Sempre se disse que é do ucraniano.
Não. Também não é do ucraniano.
Ah! Ah! Ah! Não me digas que é tua!
Não, não é.
Então de quem é?
É tua.
Minha???
Posso estar mal informado. Mas não é nada que tu não possas provar com um teste ADN.
Estás doido?
Não. Estou a avisar-te.
A avisar-me? De quê, pode saber-se?
Claro que pode. Somos amigos, e aqui entre amigos te digo que julgo saber que se o processo de impugnação de perfilhação da filha da Júlia pelo Diniz não for retirado, a Júlia e a filha podem avançar com um processo de reclamação de perfilhação contra ti. Agora, escolhe.
...
Desligou-me o telefone.