Monday, May 26, 2014

O QUE PROPÕE PIKETTY

Subitamente, e após o aparecimento da edição em língua inglesa, o livro de Thomas Piketty - Le capital au XXIe Siècle -  está ser lido e escalpelizado em todo o mundo. Dir-se-ia que o vazio deixado, primeiro pela derrocada do socialismo real, e depois pelo rombo provocado nas economias ocidentais pela globalização e pelo liberalismo sem regras, procura um autor que reequacione o mundo económico e social e o preencha com uma proposta mobilizadora para um caminho menos incerto.

Os tempos de crise são sempre propícios ao aparecimento de gurus e demagogos. Mas são também tempos de descoberta e de desafio à condição humana de superação de obstáculos e de reorientação no meio do caos. A abordagem de Thomas Piketty, segundo as avaliações que generalizadamente têm sido feitas da obra - que ainda não li integralmente - é consistente, ainda que tenham sido objecto de reparos alguns dados e cálculos apresentados, e só a parte final, a das propostas, está a merecer alguma contestação.

Daquilo que já li, deduzo que, sucintamente, a análise histórica conduziu Piketty à conclusão de que a concentração da riqueza, o crescimento da desigualdade, a apropriação de riqueza por uma minoria em ritmo superior ao crescimento económico confirma o esmagamento dos rendimentos das outras classes, e nomedamente da classe média, e é, consequentemente, indutor de redução do crescimento económico e gerador de um ciclo vicioso que tem de ser invertido. Nada de muito surpreendente, portanto.

Aquilo que gera mais controvérsia, e é colateral às conclusões do "Capital no séc. XXI", é a proposta do autor à política de austeridade como resolução do endividamento público excessivo, sugerindo Piketty que, não sendo utilizável a amortização da dívida pela inflação moderada, por oposição incontornável da Alemanha, deverá ser imposta fiscalidade bastante sobre o valor líquido das fortunas acima de determinado limiar (referiu, hipoteticamente, um milhão de euros). Nada de muito diferente daquilo que Miguel Cadilhe, entre outros, já propuseram há muito tempo.

É muito simplista porque ignora a capacidade quase ilimitada da imaginação humana para driblar o fisco? Pois é. Porque só seria efectiva se mudasse radicalmente a organização mundial do sistema financeiro e fiscal. Mas entre o oito e o oitenta há um intervalo largo onde é possível instalar mais equidade fiscal e a reduzir a desigualdade que possam repor níveis de crescimento susceptíveis de criar emprego na Europa.

Portugal é o exemplo acabado de uma sociedade atormentada pelo endividamento excessivo onde a política de austeridade tem penalizado desigualmente as diferentes classes sociais. Provavelmente, os sacrifícios impostos pela troica e sobreaplicados pelo governo teriam tido um impacto menos desfavorável no crescimento económico se tivessem sido requeridos em proporção progressiva dos rendimentos e da riqueza líquida de cada um e, sobretudo, seriam melhor acolhidos pela população em geral. O governo optou por outro caminho. Os eleitores disseram ontem o que pensam das políticas adoptadas.

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*   Votaram 34,66% dos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais. Dos que votaram, 7,49% votou em branco ou nulo. Dos 32% que votaram num dos partidos, 27,7% voram na coligação PSD/CDS, ou seja 8,864% dos eleitores inscritos. Mesmo admitindo a desactualização/sobredimensionamento do número de eleitores, só por sofisma manhoso pode o governo afirmar, como tem estado afirmar pela boca de alguns dos seus ministros, que os portugueses comprenderam as políticas que foram e continuarão ser adoptadas. Igualmente manhosa é a mensagem de triunfalismo que o PS tem estado a querer fazer passar junto da opinião pública. Votaram PS 31,5% menos de 10,08% dos eleitores inscritos. Aliás, se as eleições legislativas se realizassem agora, segundo sondagem da Intercampus, a vantagem do PS seria  de 0,4%!

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