Há neste país comentadores para todos os desgostos.
De futebol. Começam de manhã, continuam pela noite fora. Não aprecio, mas tropeço com eles quando, por mero acaso, ligo a TV com qualquer outro propósito. Nem a entrada do VAR (vídeo assistant referee, árbitro assistente de vídeo) desanimou os profissionais comentadores da arte.
Trata-se de uma função de treinador de bancada, que já promoveu gente ao patamar político. O prof Ventura começou por aí e promete vir a ser primeiro-ministro. O que não me espantaria, tal a publicidade promocional gratuita proporcionada pelos outros partidos.
Apoquenta-me mais a apatia, ou o propósito?, não dos deputados portugueses no Parlamento Europeu, são apenas 21 entre 750, perante a Rússia de Putin, declaradamente em economia de guerra.
Mas é no comentário político que é quase impossível evitar, a menos que se desligue a nossa atenção, ainda que breve, dos noticiários domésticos em qualquer meio de comunicação social.
Agora, que estamos em vaga de campanha eleitoral para as eleições europeias, o prof Ventura levantou uma polémica, arte em que é mestre, sobre os dez anos previstos para a construção do Talvez Alcochete: se os turcos, que não são propriamente os mais trabalhadores do mundo construiram um novo aeroporto em cinco anos porque razão, nós portugueses, levamos dez anos a fazer o mesmo?
(Abro aqui um parêntesis para declaração de desinteresses: além do mais, pela minha idade, não tenho a mínima esperança de algum dia ir apanhar o avião a Talvez Alcochete).
Logo se levantou uma densa poeira de protestos porque o presidente da Assembleia da República tinha deixado sem reparo a "alarvidade" do prof Ventura. Terá sido mesmo alarvidade ou uma acusação, fundamentada ou não, de Ventura à menor produtividade dos portugueses quando comparada, por exemplo, com a dos turcos?
Mas a pergunta do prof Ventura, aparentemente pertinente, ficou sem resposta. Ganhou o Ventura em todos os sentidos perante quem, como eu, considera o prof Ventura um provocador, especialista em tirar vantagens da complacência democrática.
Anteontem, voltei a ver, já não via há algum tempo, um programa de "análise política", o assunto prometia, e eu suportei ouvir a primeira parte. O apresentador, moderador, começou por apresentar um vídeo onde, com muita clarividência e algum sentido de humor se demonstrava o que é evidente para quem quer não usa antolhos: o aproveitamento que os detractores da democracia, os inimigos da democracia, aqueles que pretendem destruí-la usam, abusam, a sua complacência para, por dentro dela, a corroer e acabar por matar.
Sentam-se nesta mesa mais ou menos redonda, quatro comentadores e o moderador.
No primeiro tema é abordada a repisada a decisão do actual presidente da Assembleia da República perante a intervenção, histriónica como sempre, do prof Ventura sobre a índole trabalhadora dos turcos: conseguiram em cinco anos construir um aeroporto novo, enquanto o aeroporto de Talvez Alcochete levará dez.
A primeira participante, considerou decisão de Aguiar-Branco correcta, e recordou que o uso das provocações, dos insultos, entre políticos em países onde o pensamento e a sua expressão pública é livre, foi iniciado durante a campanha, sórdida, das presidenciais de 2016, que Trump ganharia. Os canais subterrâneos de mentiras, das "fake news", até pelo nome se percebe a origem, potenciaram e espalharam-se por todo o mundo onde as deixaram correr... em nome do valor maior da democracia: da liberdade de pensamento e a sua expressão pública.
("Democracy Dies in Darkness", "A democracia morre na escuridão", é o premonitório slogan do Washington Post)
Para o segundo participante, Aguiar-Branco refugiou-se num argumento político quando estava em causa um crime previsto no Código Penal.
Para o terceiro participante, comentador a tempo inteiro, Aguiar-Branco esteve mal. Não devia ter deixado passar a intervenção do prof Ventura sem uma advertência, coisa para que tem competência.
O quarto participante, geralmente baralhado nos argumentos se tem as câmaras à frente, não disse que sim nem não se Aguiar-Branco teve razão ou não.
Desliguei a televisão.
Mais anedóticos que estes programas de formação política da boa, mas politicamente ignara, população deste país, são os painéis de comentadores, geralmente quatro, que entram ao serviço no fim de cada debate entre, neste caso, os candidatos a deputados europeus.
Anedóticos porque se supõem ungidos para explicar o que cada candidato afirmou, deste modo influenciando as decisões dos ouvintes, provavelmente eleitores. Com que direito?
Mas mais que as explicações de suas excelências são as notas que, como professores examinadores das palavras dos candidatos, atribuem classificações! Com que direito?
Não sabemos. Mas se toda a gente cala, devem estar escorados na liberdade de expressão, a tal que tanto dá vida como pode matar a democracia.
Em Portugal o ofício de comentador já produziu, além do mais, um Presidente da República.
Durante anos e anos, semanalmente, o "Grande Comentador", comentava sobre tudo e mais alguma coisa, com particular incidência no desempenho dos actores políticos em palco, a que atribuía notas classificativas, era comentador professor.
Depois passava às previsões, era comentador profeta.
A terminar a conversa em família, sem contraditório, mostrava os livros que tinha recebido, que ele transferiria para uma biblioteca no concelho da sua família de origem, onde foi deputado municipal.
Frequentemente, obsequiava a jornalista interlocutora, passiva, com brindes suscitados pelas oportunidades das ocasiões e ofertas recebidas dos seus admiradores. Eram passatempos felizes, que lhe aureleavam a imagem, num crescendo irreversível de um carisma que punha os atentos e veneradores ouvintes de boca aberta. Tinha-se tornado num raro fenómenos de popularidade ímpar.
Anos antes, candidatara-se à presidência da Câmara Municipal da capital, perdeu sem apelo nem agravo, mas tinha-se esforça do por vencer, chegando a lançar-se às águas do rio para demonstrar a sua determinação mesmo se as águas onde exibiu o mergulho estivessem poluídas.
Alguém, não sei quem, um dia resumiu o "Grande Comentador" como "aquele que sabe tudo mas não sabe mais nada".
O que não era verdade, porque candidatou-se à presidência da República e ganhou sem qualquer investimento em artifícios de campanha, num país que se enche de cartazes, outdoors que tapam os horizontes, que custam certamente uns largos milhares, brindes de cacaracá, arruadas medievais, concertos para excitação dos fiéis, enfim, demonstrações pacóvias sem força capaz de resistir à presença persistente de uma conversa fiada na televisão.
E foi eleito Presidente, sorridente, atingiu o auge da popularidade beijocando a torto e a direito, não dispensando nem recusando selfies sem conta. O primeiro-ministro ajustou-se à personalidade aristocrática do presidente, chegando a protege-lo (da chuva ou do sol, não me recordo) com o chapéu aberto. Reeleito sem oposição com estatura popular, continuou a beijocar e selfiear, para atingir o grau de incontestado de o melhor de todos.
Tanta ânsia de popularidade, levou-o a escorregar em acções e declarações opacas, e o melhor de sempre esforça-se para não submergir nas águas em que agora mergulhou.
Mas deixou marca indelével que muitos adoptam como objectivo do seu trabalho comentador.
O país, não só este país, o mundo, sobretudo no mundo ocidental, onde os valores eram aquilatados pela dignidade da democracia, sustentada na liberdade de pensamento e da sua expressão pública é hoje vítima à espera de um golpe fatal que aproveita a sua permissividade. Com ampla e desavergonhada ampliação dos media, que vivem dos réditos que a mentira, a falta de decoro, a imunidade que protege os instigadores de notícias, obtidas junto de "fontes fidedignas" que ninguém conhece mas geralmente suspeitas, num ciclo vicioso que auto se alimenta.
1 comment:
Muito bom, caro Rui.
Quanto aos comentadores dos debates eleitorais, vejo uma falha grave: devia haver outros comentadores a dar notas aos comentadores. Lá chegaremos.
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