O telefone tocou às sete da manhã.
- Quem é? ... O que é que aconteceu?
- Há tropas na rua, diz o teu irmão. Estão a transmitir comunicados de um movimento das forças armadas. Pedem à população que se mantenha calma e que fique em casa. Falou há momentos com o Casimiro, receia-se que seja um golpe do Kaulza para destituir o Tomaz e o Marcelo.
Liga aí a rádio.
Confirmava-se um movimento militar, uma força da Escola Prática de Cavalaria (aquela onde, há dez anos, eu entrara para frequentar a primeira parte do curso de cadetes milicianos) comandada pelo capitão Salgueiro Maia, já tinha sob controlo, desde as seis e meia da manhã, o Terreiro do Paço.
Os comunicados transmitidos pela rádio insistiam que as pessoas se mantivessem em casa até indicações em contrário.
- Vou comer qualquer coisa e dar uma volta por aí. Não demoro.
- És maluco?
- Tenho dias.
Saí de casa, cerca das oito e meia da manhã, a hora habitual para chegar à empresa, na Rua Marquês de Fronteira.Trânsito automóvel quase nulo, poucos peões, uns por desconhecerem as noticias daquela madrugada, outros porque a curiosidade acicatava o risco. Parei em frente da entrada do escritório, estava a porta fechada, veio o porteiro abri-la, com ar meio desconfiado, logo desfeito com um sorriso quando me reconheceu.
- Não está cá ninguém. Veio um ou outro, foram-se embora, não estavam ao corrente das notícias, penso eu. Tenho estado de ouvido neste rádio, repetiram há momentos, desta vez através da Emissora Nacional, o pedido à população que se mantenha calma e que recolha às suas residências. Mas quem é que agora vai ficar em casa? Fico eu porque não posso sair daqui, do meu posto, mesmo em dias feriados.
- Então, hoje é dia feriado?
- Se não é ainda, vai passar a ser. Está já a ir muita gente a caminho da Baixa. Isto está a dar uma volta, não tenho dúvidas. Se pensa também ir para lá, o melhor é deixar o carro por aqui e ir a pé.
No fim do dia, são destituídos das suas funções o Presidente da
República, o Governo e dissolvida a Assembleia Nacional e o Conselho de
Estado, passando todos os poderes atribuídos aos referidos órgãos ser exercidos pela Junta de Salvação Nacional.
A festa da revolução popular continuou nos dias seguintes, atingindo o clímax eufórico no dia 1 de Maio, nas primeiras manifestações livres desde há 50 anos. A amizade, a igualdade, eram os elos de ligação agora cantados numa sociedade libertada: "Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade ..."
Em meados de Maio, tinham começado a comparecer todos os trabalhadores do departamento, designação que passou a ser aplicável a todos os que trabalhavam na empresa, independentemente das funções que desempenhavam.
As discussões suscitadas pela liberdade de pensamento e expressão pública começaram no meio daquele grupo restrito, não mais que vinte trabalhadores, assim:
- O director é um trabalhador, a dactilógrafa também, o porteiro, idem aspas ... e o dono disto?
Dúvidas daquele quilate de pechisbeque só podiam ter sido levantadas por um "fascista", argumentou o um jovem com fôlego suficiente para qualquer dialética.
- Perguntar não ofende, penso eu, ...
- Depende da pergunta camarada. A pergunta do nosso camarada é insidiosa.
- Porquê? A pergunta é muito simples, a resposta não pode ser complicada. O dono de tudo isto é ou não é trabalhador nesta empresa?
Tinha sido só o começo de uma guerrilha interna entre posições extremadas de um lado e de outro, perante a paciência calada de meia dúzia, se tanto: A José B.e José M., dois contabilistas diplomados, estavam atribuídas funções em que eram peritos. O José B., era um profundo conhecedor de música clássica, poeta de mérito reconhecido pelos seus pares e o mais qualificado especialista em língua espanhola, tendo traduzido, além de muito mais, "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha". Escrevia com letras garrafais, o que facilitava o trabalho da dactilógrafa, enquanto assobiava ópera só para ele ouvir, talvez o parceiro o ouvisse também, viviam os dois no seu mundo privativo, alheados da balbúrdia à volta.
Os outros, os pacientes, tinham retomado o trabalho, saíam de vez em quando para ir a um café do outro lado da rua recarregar a paciência para ouvir sem interferir.
- Agora não há Deus nem chefes!, proclamava o mais fanfarrão.
- O Bragança quer os relatórios de serviços prestados para poder facturar. Sem facturação não há receitas, sem receitas não haverá dinheiro para pagar os salários.
- O que não falta lá é dinheiro.O Bragança está a armar-se em parvo.
Tinham passado meses de forte turbulência, o director do departamento demitira-se, optara por uma carreira a solo. Do trio sénior, um estava dedicado a trabalhar num banco do Grupo, passava pouco tempo na sede, dos outros dois, um aderira ao movimento radical de esquerda, também ali muito maioritário, o outro era considerado suspeito porque não aderira a nenhum dos lados em confronto.
Em meados do ano seguinte o Grupo tinha sido nacionalizado.
- Fomos nacionalizados! O socialismo não se constrói com fascistas!
- O Bragança precisa das folhas de serviço prestado para poder facturar.
- Isso era ontem, hoje a música é outra! Não há folhas de serviço para ninguém!
- Nem o ordenado ao fim do mês!
É neste contexto que um dia recebo um convite para integrar uma Comissão Coordenado e Instaladora de uma Empresa Pública resultante da nacionalização de um grupo de empresas do sector rodoviário. Mal por mal, pior não seria, pensei e aceitei.
Daí a dias sou convocado para uma reunião de trabalhadores.
Compareci.
- Como é que o camarada explica a sua disponibilidade para deixar a nossa empresa e aceitar desempenhar funções numa actividade que não tem nada a ver com o seu trabalho nos últimos quatro ou cinco anos aqui?
- Como consultor já realizei trabalhos em empresas ou organizações muito diversas. Consultor de organização é consultor em qualquer actividade.
- E quem, neste caso, requisitou os seus serviços?
- Admito que seja a entidade que assina a requisição em vosso poder.
- Admite? Quer dizer que não sabe?
- Não, não sei, não recebi cópia da requisição.
- Mas sabe quem o convidou ...
- Sei, mas não vou dizer, por uma questão de princípio, de que não abdico.
- Hum! O camarada não esteve há semanas numa reunião alargada de trabalhadores?
- Estive.
- Mas saiu a meio, se bem me lembro.
- Lembra-se bem. Saí a meio quando percebi que não teria possibilidade de intervir e os dados estavam lançados.
- Quais dados?
- O saneamento de dois consultores por suspeição de serem fascistas, suspeição talvez fundada no facto de se manterem calados num ambiente de confronto ideológico no local de trabalho.
O interrogatório ficou por ali. Trabalhei durante cinco meses como membro da Comissão para a qual tinham sido requisitados os meus serviços. Até ao dia em que solicitei uma reunião com o presidente da Comissão.
- Então quer deixar-nos porquê?
- Porque não estou a ter um contributo útil aqui. Não há nenhuma razão, económica ou ideológica que seja, que justifique as funções que me foram atribuídas de gestão de actividades que caíram na esfera de gestão do Estado por arrastamento de outras, eventualmente estratégicas no sector público. Faz algum sentido a gestão pública de agências de viagens?
- Não, não faz, mas este ainda não é o momento para corrigir o que deve ser corrigido. Vamos furar esta onda e ficar frescos para a que vier a seguir.
- Compreendo mas vou voltar à base e procurar outro mar.
1 comment:
Boa história. Conheci outras semelhantes. E assim se destruíram empresas e economia.
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