Foi em meados de Maio, há 14 anos, que o Arnold Falconer, zangado, desligou o telefone quando, terminantemente, recusei o que ele pretendia: contrariar em tribunal, com perjúrios arrebanhados por conta de vagas amizades, a sua pretensão de esquivar-se a uma paternidade endossando-a a um engenheiro ucraniano, que trabalhava na fábrica do tio do Arnold. Contei o caso aqui.
Hoje recordo a conversa, propositadamente audível nos lugares da frente do Jaguar em que viajámos até à fábrica do tio, Diniz da Gama, sobre o momento político que ele e o cunhado, John Falconer, pai do Arnold, mantiveram durante toda a viagem.
- Vai muito calado, engenheiro!
Era Diniz da Gama, encostando-se à frente, a desafiar-me a entrar na conversa.
- Vou preocupado, senhor Diniz da Gama. Tenho dois filhos, pequenos ainda, adoentados.
- Oh! Isso não é razão para preocupações. As crianças têm defesas naturais... Não o preocupa a situação em que este nosso país foi metido? ..., a ser governado pelo Fundo Monetário Internacional.... Não é uma vergonha? A ponto de terem começado a vender ouro, para já 50 toneladas, de ouro acumulado durante décadas pelos "fascistas", agora somos todos fascistas ... Isto não o preocupa, senhor engenheiro?
- É evidente que preocupa, preocupa toda a gente, adiantou-se John Falconer para conter a ira do Diniz da Gama. Quem é que não estará preocupado nestas condições?
- Hum! Haver, há, mas estão calados.
Até à chegada à fábrica, continuaram os dois a conversar, mas de forma inaudível nos lugares da frente. Diniz da Gama não terá apreciado a intervenção moderadora do cunhado, e a conversa à volta da situação política do país, a desvalorização do escudo, o aumento das taxas de juro, prosseguiu durante o almoço.
- Não é preocupante senhor engenheiro?
- É muito preocupante, sem dúvida.
- Diniz: É evidente que é preocupante, mas que podemos nós fazer para evitar ou ultrapassar esta situação de obediência humilhante a uma instituição internacional senão fazer o que eles disserem que temos de fazer? Ou se obedece ou entra o país em "default", em bancarrota, sem qualquer rumo.
- Queres tu dizer que não podemos fazer nada?
- Podemos. Podemos, para já, melhorar as condições de funcionamento da fábrica. É por isso que contamos com a análise e as propostas do engenheiro. Há metodologias de análise que têm sido bem sucedidas. E o engenheiro é um homem muito bem preparado em MBO, Gestão por Objectivos ...estagiou em Inglaterra numa empresa de consultadoria internacional.
- É uma questão de fé?
- Também é. Só conseguimos atingir se acreditarmos que podemos conseguir.
- Vamos ver, vamos ver...
Terminado o almoço, não se falou mais de política.
Mais tarde vim a saber que o recurso a um consultor tinha sido sugerida a Diniz da Gama por John Falconer, que observava em cada, rara, visita à fábrica a evidente decadência das instalações, o desarrumo, a desorganização, que o preocupavam, porque via sumirem-se os interesses da mulher, irmã do Diniz. O recurso a um consultor credenciado, pensava Falconer, seria a melhor via para colocar Diniz da Gama perante as causas da progressiva ruína que ele negava reconhecer.
Houve tempos, disse-me, acidentalmente, alguém que trabalhara na fábrica desde jovem até à reforma, que a fábrica era uma mina. Sabia que o sr. Diniz chegou a instalar torneiras de ouro na casa de banho privativa, dele e dos convidados? Agora, dizem, já não há lá torneiras de ouro.
Daí a dias, pergunta-me o Director do Departamento: o que é que disse ao cliente para ele ter telefonado ao nosso Presidente, bastante indignado, porque tínhamos destacado para realizar o trabalho que encomendara, um comunista!
- Não disse nada. O dono da fábrica, Diniz da Gama, e o cunhado, John Falconer, foram durante toda a viagem a dar pancada em todos os políticos que, palavras deles, "desgovernam isto". Eu ouvi e calei-me. Não tinha nada a acrescentar, nem foi para discutir política que nos encomendaram um trabalho. Ou foi?
- Não. claro que não. Se queriam um consultor em política teríamos enviado especialista na área. Até especialista comunista temos, aliás, temos vários. Poderíamos ter destacado o Gastão, por exemplo. O Gastão é imbatível.
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*Obs. 29/05/24 - Alterei o título inicial e acrescentei o quarto período, involuntariamente omitido na primeira versão, editada ontem.
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