(O IDEOLÓMETRO, é o nome, não registado nos dicionários nem encontrado nas redes da net, dado a um objecto criado por um chinês, com o propósito de amansar os instintos irracionais da espécie humana, que encontrei há dias na Baixa)
Há mais de uma dezena de anos que não atravessava aquela rua na Baixa.
Foi essa a última vez que passei por aquela rua, depois de durante uns três anos a ter percorrido num sentido e noutro. Voltei lá há dias, para saborear a recordar as inesquecíveis bifanas e os passarinhos fritos em molho de vinha-d´alhos. Com um prato de sopa e um copo de branco, ficava feita a festa para o resto do dia. Nessa última ocasião, falou-me o proprietário da tendinha, proprietário e empregado único, das razões que o tinham levado, para prosseguir uma vida activa, depois de ter sido dispensado do banco mas, convenientemente indemenizado, a tomar por trespasse aquele espaço, com balcão aberto para a rua, donde se espraiava aquele aroma fortemente convidativo, o melhor reclamo da casa.
E, lamentavelmente, confirmou-se a recomendação antiga de não se dever voltar aonde já se foi feliz : da tendinha das bifanas e passarinhos fritos não restava nada; agora era um espaço recheado do rés-do-chão ao tecto, de tudo o que se não se encontra em nenhum lado, mas que, vá lá saber-se porquê, há sempre no "chinês".
Ao ver-me intrigado a espreitar da rua para o interior do espaço congestionado, apareceu-me não dei conta de onde, um oriental, homem, talvez na casa dos cinquenta, a perguntar-me se precisava de ajuda. O seu português amável apenas denunciava uma quase imperceptível pronúncia de estrangeiro a residir há longo tempo aqui.
- Hum! Passei por cá porque durante muitos anos atravessei esta rua e esperava voltar a regalar-me com uma bifana frita em vinha-d´alhos, especialidade da casa; para variar de vez em quando saboreava um passarinho frito com o mesmo molho, servido em pão do dia.
- Pois isso deve ter sido há muito tempo ... eu já tomei esta posição há pelo menos uns dez anos, e mudei o estabelecimento de ramo. Eu sei que tinham muita procura as sanduíches que refere, a princípio ainda pensei continuar a servir sanduíches à clientela, mas desisti. Desisti porque dava muito trabalho e pouco rendimento e os clientes habituais, portugueses a trabalhar ou a passar por esta zona, foram a pouco e pouco desaparecendo, surgindo sobretudo turistas estrangeiros, que enjoavam as sanduíches e consideravam horrível, pouco civilizado, a fritura de passarinhos.
- Mas tanto quanto eu sei na China apreciam-se bastante este tipo de petiscos ...
- É verdade que os chineses apreciam petiscos, chineses, claro, mas aqui não estamos na China. Turista na China prefere hamburgers, pisas, coisas dessas. Aqui procura artesanato chinês ou português feito na China. Devemos ir ao encontro das preferências da clientela, não lhe parece?
- Percebo perfeitamente. Recordo-me, contudo, que o dono do estaminé estava a fazer sucesso com a venda de "carismáticos", uma coisa que lhe ocupava espaço no sótão em casa e que ninguém sabia o que era. Trouxe-o para aqui, deu-lhe um nome, e quem vinha pelas bifanas e passarinhos fritos ficava encantado com o carismático, e, sem querer nem saber como, o carismático atingiu procura e preços tais que nem o aumento da oferta, sempre com a garantia de exemplar único, parecia parar.
- Mas parou. Ainda aí tenho alguns exemplares únicos; se veio pelo carismático posso arranjar-lhe um.
- Mas parou porquê?
- Boa pergunta: A meu ver por duas razões. Por um lado, o carisma passou de coisa rara a vulgar; de um momento para o outro, já havia carismáticos por toda a cidade. E ainda há, cada vez mais: os meios de comunicação social, as televisões, os jornais, as redes sociais, produzem carismáticos com uma cadência nunca antes concebível. Por outro lado, o carismático não era coleccionável, não tinha sequência familiar; um colecionador procura sempre várias emissões distintas de um mesmo tipo de artigos, moedas, selos, caixas de fósforos, vinhos de qualidade, ... Eu tenho à venda "O Ideológico", forma simplificada para designar o "Ideolómetro", um avaliador da intensidade das ideologias impregnadas em cada indivíduo da espécie humana, que permite uma colecção infindável de membros, distintos mas bem definidos, da mesma família.
- Feito na China...
- Exacto. Tudo o que vendo aqui, aqui e noutras lojas que tenho em sociedade com diferentes sócios, importo da China.
- E vende-se na China ou, como os passarinhos fritos, só se vendem aqui?
- Vende-se em todo o mundo ocidental, penso que é essa designação comum. Posso mostrar-lhe um exemplar. Na China não, o "Ideológico" não se evidencia. Lá, tem procura residual. A ideologia, como fixação de uma ideia adquirida, de forma indelével, e, por isso, muito raramente alterada durante a vida do indivíduo é mais evidente neste lado do mundo, penso eu que já andei por este e pelo outro. Mas, pode adquirir um exemplar para uma semana experimental.
- Gostaria ver...
- Pois está aí mesmo atrás de si.
Reparei e vi um vulgar balão preto, desses com que se enfeitam, com outras cores, os festejos de aniversário, meio cheio, talvez meio vazio.
- É só isto? perguntei, confuso, pegando, receoso, no balãozinho com os dedos grande e indicador, da mão direita.
- É só isso.
- Hum! E para que serve?
- Para medir a intensidade da ideologia, ou das ideologias adquiridas de cada um. No interior, está instalado, um sistema digital, hipersensível ao tacto de quem lhe pega, que mede o nível de intensidade ideológica de cada indivíduo. Feito esse reconhecimento pelo contacto, fica conectado ao sistema de modo inequívoco e não transmissível.
- Mas terá, se bem entendo, a mesma vulnerabilidade transaccionável do "Carismático".
- De modo algum. O sistema digital que é introduzido num pequeno balão, uma versão muito reduzida desse que está exposto, é pago pelo adquirente, consoante a ideologia que cada adquirente pretende avaliar.
- Nesse caso terá que comprar tantos pequenos balões quantas as ideologias ... Fica a casa cheia de balõezinhos?
- De modo algum. Chinês é esperto. O sistema digital introduzido está configurado consoante a encomenda do freguês. Se pretender avaliar as suas ideologias políticas, clubistícas ou religiosas, tem uma infinidade de hipóteses; o sistema é configurado consoante a encomenda e o preço que pagou.
- E é o senhor que recebe a encomenda, e a configura, e recebe o preço aqui?
- Não senhor. Só tenho competência para encomendar e transmitir as instruções de cobrança dadas pelos clientes, e entregar o balão configurado. As configurações não são feitas aqui, mas remotamente .
- Remotamente?...
- Na China.
A minha estupefacção era cada vez maior.
- Mas, já agora, diga-me, se pode dizer, para que serve a medição da intensidade das ideologias?
- Toda gente me faz a mesma pergunta, respondo sempre do mesmo modo. Recebemos um curso de formação, muito extenso, dedicado ao assunto. O senhor mede a tensão arterial, para quê? Para avaliar se deve medicar-se ou alterar o seu comportamento porque a tensão arterial alta é uma ameaça à sua permanência vivo. Ora o "Ideolómetro" não é um fármaco curativo mas é, à semelhança de um tensiómetro ou de um termómetro, um medidor do estado, não global, evidentemente, da sua saúde, mas, neste caso do seu estado de intensidade ideológica, numa escala que varia entre o quase nada e o fanatismo incontrolado. E assim, como ninguém nasce sem uma tensão arterial mínima ou temperatura do corpo, salvo se for nado-morto, também a ideologia, por mais imperceptível que possa parecer, é inerente à condição da espécie humana. Mas não nos alonguemos em comparações, o veneno está sempre na quantidade do que se toma ou adquire.
- E quanto custa o objecto?
- O preço do sistema depende do segmento ideológico, político, clubístico, religioso, ou outro, e a ideologia, dentro de cada ideologia cabe um sem número de sub segmentos ideológicos, de que o adquirente pretenda controlar a intensidade. No mínimo, custa-lhe trezentos euros mais IVA. Quer fazer uma aquisição experimental durante uma semana?
- Primeiro, preciso consultar a minha mulher; ela pode querer utilizar o mesmo sistema para controlo da intensidade da sua ideologia religiosa, que eu suspeito ser elevada, com tendência para a alienação sem controlo possível.
- Não funciona. Cada sistema é individual e não pode ser utilizado por terceiros; se for, em caso de reincidência, o sistema auto anula-se automaticamente.
- Compreendo. Devo então levar este balãozinho para uma aquisição experimental identificado como meu?
- A forma deste balão em exposição, podia ser qualquer outra, é um ingénuo argumento de marketing. Podia ter uma aparência menos disforme Como tem este volume, alterável por qualquer pressão mínima, intriga, e nada mais intrigante para um observador do que aquilo que ele não compreende mesmo com o objecto à frente do nariz. Tal qual a arte abstracta, que atrai irresestívelmente o observador, não iniciado por não ter capacidade para compreender que está exposto diante de si. Não, não lhe entregarei apenas um balãozinho mas também uma pulseira, de aspecto vulgar, que, neste caso, possui um minúsculo chip que, incrivelmente para mim, contém toda a informação recolhida dos períodos de excitação dos portadores, de irracionalidade, de ódio que estimularam e sustentaram em todas as fases da história a capacidade destrutiva da espécie humana. É um sistema muito semelhante ao que controla remotamente, por exemplo, o funcionamento cárdio-vascular de um paciente, que sofra ou possa vir a sofrer de uma cardiopatia em situações de esforço acima do normal. Neste caso, o "Ideolómetro" controla, regista, as variações de intensidade das ideologias durante um pré-determinado período ou, aleatoriamente, durante períodos longos.
- E para quê?
- Repare: é proibida, é penalizada se for caso disso, a ingestão de alcool acima de determinados níveis fixados na lei, por razões de segurança individual e colectiva. Parece-lhe bem?
- Parece, claro.
- Nem toda a gente no mundo compreende e aceita pacificamente este tipo de limitações, mas quem desobedece às regras é penalizado, pode até ser condenado a prisão. E, a generalidade, comporta-se em conformidade com as restrições impostas por lei quanto aos níveis de alcool no sangue. Agora repare no ódio acumulado nas bancadas dos espectadores de um jogo de futebol, que, se deixado sem controlos, pode desencadear uma batalha entre ódios guiados por ideologias dos clubes que se confrontam, sustentadas por abstracções, as almas, os elãs, enfim o irracional herdado pela espécie humana na árvore da sua evolução. Proibe-se a entrada de nos estádios de alguns artefactos que são armas susceptíveis de perturbar, suspender ou até demolir um espectáculo que, aprecie-se ou não, é inegável que tem milhões de espectadores em todo o mundo. A exigência, à entrada dos estádios, do uso de uma pulseira avaliadora automática da intensidade específica ideológica de quem quer entrar, poderá, à partida vedar a entrada aos ânimos mais carregados de intensidade de ódio, evitando-se o crescendo de animosidade em sociedade. Concorda?
- Talvez. Nunca tinha pensado nisso.
- Agora transporte essa avaliação para os campos onde se confrontam ideologias religiosas ou políticas... as guerras mais sangrentas da história foram motivadas por ideologias religiosas, invocando, frequentemente, a protecção da mesma divindade.
- Agora transporte essa avaliação para os campos onde se confrontam ideologias religiosas ou políticas... as guerras mais sangrentas da história foram motivadas por ideologias religiosas, invocando, frequentemente, a protecção da mesma divindade.
- A natureza da espécie humana é muito mais complexa.
- Sem dúvida. Tanto mais quanto o ódio entre as ideologias em confronto perdura há séculos, ou até milénios, acumulando ódios destrutivos num instante do que as capacidades construtivas produziram durante períodos com durações semelhantes. Veja o confronto entre israelitas e palestinianos, alimentados por forças exteriores com interesses conhecidos ou desconhecidos como o desafio do poder, por qualquer dos lados.
- Toda a gente vê ... ou pode ver. Mas que utilidade tem o seu "Ideológico" na solução de um conflito desses com intensidade ideológica máxima de um lado e do outro?
- Nenhuma. O "Ideolómetro" é um instrumento com utilização para avaliação individual. Que pode, no entanto, ser utilizado na moderação de multidões em espaços circunscritos. Também, por exemplo nas assembleias de representantes, nos parlamentos, onde a contenção das ideologias em níveis que ultrapassassem os mínimos do respeito mútuo, permitiriam, certamente, atingir objectivos mais conformes com os interesses do povo que os elegeram. Concorda?
- Difícil é controlar-lhes a intensidade das ideologias. Vou pensar nisso.
- Pois pense e volte quando quiser. Não quer mesmo levar um exemplar para uma experiência gratuita de uma semana? Podia falar nisso à sua mulher com demonstração para os dois ...
- Não. Isso não faço. Se tentasse com ela conectada ao sistema, a coisa podia explodir por atingir mais que o nível máximo mensurável pelos sistema. Não, nessa não caio. Mas, já agora, diga-me, pode vender-me um dos carismáticos que ainda tem?
- Posso, mas fica-lhe caro ... já restam poucos e agora só é procurado por coleccionadores de coisas bizarras. Posso vender por quinhentos euros; paguei muito mais pelo stock quando tomei o estabelecimento de trespasse.
Levei o carismático, uma coisa bizarra que se tornou rara e agora foi transformada em coisa raríssima. Difícil vai ser colocá-lo em sítio onde a minha mulher não veja o carismático e me expulse de casa acusando-me de animista.
2 comments:
Que excelente texto Rui!!
Mesmo sem tua permissão vou partilhar nas redes.
Grande abraço.
Muito obrigado, Rogério.
Podes divulgar à vontade.
Não tenho problemas de consciência.
Grande abraço
Rui
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