Wednesday, October 19, 2011

CONVERSA DE ILUSIONISTAS

Portugueses foram cúmplices das políticas de ilusão. Não se pode culpar apenas os governos pela crise, porque os portugueses alinharam nas políticas, afirmou hoje João Salgueiro (aqui)

Uma forma eficaz de negligenciar as culpas dos reais responsáveis pelas políticas que afundaram o País é fazer crer que somos todos culpados. Diluída a culpa na massa anónima, não haverá culpados. No fim de contas, se estes e os outros políticos fizeram o que fizeram, a culpa é nossa porque a maioria de nós lhes comprou ilusões, que agora nos esmagam, com os votos. 

Com este passe de mágica, João Salgueiro, antigo Presidente da Associação Portuguesa de Bancos, coloca-se no mesmo patamar de responsabilidade cívica dos cidadãos comuns e, sem qualquer estremecimento de consciência julga aquele que se envidividou para comprar casa, e que agora não a pode pagar porque a crise aperta e o seu salário é cortado,  tão responsável como o banqueiro que lhe concedeu o crédito publicitado por ases de futebol e estrelas da TV.

Para João Salgueiro, pelos vistos, o labrego que arregala o olho e abre a boca de espanto perante a obra excessiva ou inútil, e é solidariamente responsabilizado pelos erros e exageros de quem ocupa o poder, é compulsivamente culpado pelas consequências das políticas que o iludiram. Se houve conivência espúria entre o mandatário e o executante da obra e daí resultou um endividamento que constitui um fardo insuportável sobretudo para os mais débeis, a culpa é de todos porque o mandatário foi eleito pela maioria.

Há nesta afirmação de João Salgueiro uma tese subliminar: em democracia, a responsabilidade dos políticos origina-se no momento em que são eleitos mas esvai-se quando deixam os cargos, independentemente das consequências dos seu actos. As eleições serão, deste modo, um mecanismo redentor e branqueador dos eventuais desmandos de quem ocupa o poder. Não será melhor acabar com elas?

Percebe-se que João Salgueiro queira resguardar políticos e banqueiros (é sintomático que não fale nas responsabilidades destes quando o mundo os acusa com crescente clamor) porque ocupou funções que lhe impunham proceder de forma a contariar a tendência flagrante para a catástrofe. Fez alguma coisa por isso?
João Salgueiro sabia, ou tinha obrigação de saber, que níveis estava a atingir o endividamento importado pelos associados da entidade a que presidia mas não se importou ou não lhe deram importância.  E ao seu sucessor, alguém o ouviu alertar para a iminência do desastre? 

A responsabilidade cívica de cada um de nós quanto às consequências dos actos dos mandatários do povo são proporcionais à informação que cada um detém ou é suposto deter.
Se nos reportarmos às mais recentes notícias acerca do descalabro das contas públicas sabemos que "o fracasso nas metas orçamentais foi, segundo o Governo, de 3400 milhões de euros, mais do que os 2400 milhões previstos no final de Agosto" (in Público, de ontem)

Sabe João Salgueiro dizer-me porque é que eu sou também culpado deste "desvio colossal"?
Porque sou português?
E se tivesse sido presidente da Associação Portuguesa de Bancos, a minha culpa seria a mesma?

4 comments:

Anonymous said...

A legitimidade democrática alcançada com a vitória eleitoral só deve servir para se poder formar governo. O processo democrático e o exercicio do poder são dinâmicos e progressivos. A legitimidade democrática para se manter no poder advém da capacidade de por em prática o seu programa eleitoral e perde-se quando se faz o contrário do que se prometeu. Se não se tiver capacidade de manter o prometido, e todos invocam o desconhecimento da real situação para o fazer, só têm de pedir a demissão.Não se pode fazer promessas de ânimo leve, pois estas promessas também foram feitas no total desconheci-mento da situação real. Devem ser dadas garantias aos cidadãos que quando votam o seu voto é responsável, que quem não cumpre deve sair e que quem com dolo prevarica deve ser ponido. Senão não temos democracia!

rui fonseca said...

Concordo.

Mas o meu apontamento vai noutro sentido: o de rejeitar a ideia de que somos todos culpados para minimizar as culpas daqueles que realmente são.

aix said...

A questão da(s) responsabilidade(s) (há várias: criminais, políticas, morais, diretas, indiretas…)é complicada e de difícil delimitação (no julgamento das criminais até há agravantes e atenuantes). Não podemos, creio eu,generalizar. Asresponsabilidades
políticas é suposto serem ajuizadas pelos votos dos cidadãos que o queiram fazer. Os jotas do PSD avançaram com a ideia de, anulando a responsabilidade política, impor a responsabildade criminal, no que foram (e são) seguidos por alguns outros. A deia é completamente espúria porque originada por despeitos e até ódios em relação a partido e até pessoa que abominam, mas que, a ser aplicada, abrangeria muitos dos seus.
Diz Anonymous que…«A legitimidade democrática para se manter no poder advém da capacidade de por em prática o seu programa eleitoral e perde-se quando se faz o contrário do que se prometeu. Se não se tiver capacidade de manter o prometido, e todos invocam o desconhecimento da real situação para o fazer, só têm de pedir a demissão». Corretíssimo, só que, porque contraria o princípio de que a finalidade dos partidos é a conquista do poder e na prática ninguém se demite por não estar a cumprir o que prometeu e invoca os erros dos anteriores detentores do poder. Alguém disse que a democracia é o pior dos regimes à excepção de todos os outros. Ora a democracia pode (e muito) ser aperfeiçoada. Por exemplo o sistema de uma cabeça = um voto é, quanto a mim, uma deterioração (nalguns clubes desportivos o sistema é diferente).
Não me parece difícil encontrar no sistema democrático formas de castigar os que mentem ao povo. Mas nunca seria o chamar mentirosos aos anteriores porque assim, sendo eles também mentirosos, aqueles a quem chamaram já não o seriam. Isto pensava eu na idade em que tinha a ilusão (que obviamente já não tenho) de mudar o mundo.
Quanto à questão do Rui (ou melhor do João Salgueiro) de que todos somos responsáveis só vejo uma resposabilidade, a do voto, que não se pode premiar nem castigar.

rui fonseca said...

"Quanto à questão do Rui (ou melhor do João Salgueiro) de que todos somos responsáveis só vejo uma resposabilidade, a do voto, que não se pode premiar nem castigar"

Caro Francisco,

Mas como podes pelo voto expressar a apreciação que fazes da actuação dos bancos e do seu ex-presidente da Associação, que, ainda que a grande maioria não saiba, são também culpados pelos sacrifícios que somos obrigados a suportar?