Tinha confirmado estar no almoço com uns
velhos amigos, mas atrasei-me com a demora de um interrogatório da
polícia. Saí de lá arguido.
Sou, ou estou, deve dar no mesmo, arguido num
processo crime de roubo. Sou acusado de ser autor material ou moral do roubo de
uma escultura, um busto, um bem público, assente em pedestal de pedra com identificação do esculpido, segundo relatório da polícia nos autos.
Quem é ou quem foi o homenageado?
Perguntei a residentes no lugar antes da
ocorrência do roubo de que sou acusado; ninguém soube dizer.
Não estranhei, pela figura exposta se
adivinhava que foi pessoa de finais do século dezoito, começos do dezanove.
Quando morreu, mesmo que tenha morrido velho, ainda não tinha nascido, à
excepção de um ou outro teimoso resistente, quase toda a gente, que é pouca, hoje
residente na localidade.
Cara redonda, olhos decididos, bigode farto, grisalho, habitual nas elites daquele tempo, calvo, sobram-lhe cortados curtos os cabelos
brancos que rodeiam a calvície. Ombros largos, a gravata sobressai no peito, sobre a camisa, entre as bandas subidas do casaco
apertado, de bom corte.
Quem foi, quem não foi, se lesse a
inscrição no pedestal ficaria a saber que o homem vivera mais de noventa anos,
nascera na sede do concelho, fora ministro dos três últimos governos que precederam a ditadura, durante cerca de nove meses.
E, localmente, o que fizera o homem para
merecer busto, plantado ali num sítio onde só o raro trânsito automóvel passa
apressado porque apeado ninguém tem motivos para passar por lá?
Era, disse-me um vogal da junta local, há
mais de cem anos, proprietário de largos hectares de pinhal onde, de uma fonte,
jorrava água virtuosa. Viu o feliz contemplado pela mãe natureza oportunidade
para um empreendimento de engarrafar e vender o líquido. Terá ganho muito
dinheiro? Talvez. Mas o negócio da água não se terá sustentado muito tempo porque
há setenta anos, garantem os sobreviventes, ou a fonte se terá esgotado,
hipótese possível porque os lençóis de água capricham por vezes em mudar de
cama, ou o negócio tornou-se desinteressante, e já, então, ninguém sabia quem
era o homem nem bebia a sua água engarrafada.
Quanto ao sítio deserto, disse o vogal da
junta, tinha sido escolhido por ser ali que começava o limite da sua
propriedade. Simbolicamente, o homenageado terá sido instalado junto a um imaginário portão,
quase cem anos depois de entrar para um governo, que ameaçava cair em qualquer momento, como anfitrião de quem entrar no
pinhal, que ninguém sabe, e muito menos o busto, a quem a propriedade pertence agora.
Parece-lhe bem que a junta tenha gasto uns
largos milhares do orçamento para colocar lá aquele despropósito?
Muitos apoiaram a obra do autarca, muitos
ignoraram, poucos contestaram e discutiram, defendendo ou atacando, em
privado, o busto.
Desaparecido o busto, quem antes batera palmas
no descerramento com a presença do presidente da câmara e outras individualidades paroquiais, ria-se depois com o facto
rocambolesco do roubo de uma coisa que, afinal, não lhes interessava
minimamente.
Quando cheguei para o almoço, já os meus
compinchas tinham entrado na sobremesa.
Desculpem o atraso, fui chamado à polícia,
acusam-me de ser autor material ou moral do furto do busto; saí de lá constituído arguido.
(Gargalhada geral)
Nenhum de nós acredita que tenhas sido
capaz de ter roubado aquilo; mas foi bem roubado, penso eu.
Pensas tu porque não valorizas o
investimento cultural; o capitalismo não valoriza o investimento público, sobretudo na cultura, se
não vê escorrer-lhe lucro para o bolso.
Fala o apoiante do autarca...
Com muita honra.
... com ligação directa ao presidente da câmara,
com ligação directa ao chefe do governo; é assim que se consomem os dinheiros
públicos, em obras de oh pacóvio olha o balão; como o dinheiro não lhes sai
directamente dos bolsos, qualquer obra, mesmo que seja obra de caca, merece
palmas dos tansos.
Fala a dor de cotovelo; se a obra tivesse
sido feita por autarca do teu partido, seria boa e prestigiante para a
freguesia.
Prestigiante? Mas que prestígio traz um
busto de um fulano que ninguém sabe quem foi, que já desapareceu há quase meio
século sem cá deixar rasto, colocado num sítio por onde ninguém passa?
É um símbolo cultural; nós defendemos o
investimento na cultura.
Nós também, mas nós sabemos como se deve
investir na cultura; e sabemos que o investimento no busto foi um investimento
do autarca nele mesmo, querendo passar sub-liminarmente a mensagem de que a
autarquia investe na cultura; é um logro!
Nós, o que vemos no busto é uma disfarçada
homenagem ao capitalismo; contribuiu a riqueza do latifundiário para o
desenvolvimento económico da região, para a melhoria das condições de vida das pessoas que aqui viviam na altura? estou informado que
naquele tempo todos os terrenos nas imediações do pinhal pertenciam a pequenos
proprietários, eram hortas onde cultivavam milho, centeio, batata, feijão,
nabo, cenoura, couve, alface, toda a espécie de legumes porque o terreno era
fértil nas várzeas, onde corria e ainda correm ribeiros; nas encostas havia vinhedos e pomares; hoje o que há à
volta, num diâmetro de quilómetros, do sítio onde meteram o busto do político ricalhaço?
silvas, mato, a dominar tudo por abandono daqueles que foram obrigados a emigrar;
onde antes se via gente a criar riqueza
hoje não se vê ninguém.
Fala o comunista que continua a ver
capitalismo monopolista em todo o lado; até aqui, onde a propriedade, mesmo a maior,
nunca teve tamanho suficiente para enriquecer ninguém; e a água, pelos vistos,
sumiu-se do mesmo modo que apareceu.
Já cá faltava o anti-comunismo primário; quando é
que esta gente é capaz de ver o mundo com olhos de ver e perceber que o liberalismo económico só tem
conduzido ao crescimento galopante da desigualdade em todo o mundo? às alterações climáticas que estão a destruir o planeta; o do busto
fez, no seu tempo, parte da elite que manteve este país ignorante durante décadas.
Estás confundido; o homem não foi ministro
durante a ditadura; era ministro quando os militares fizeram o golpe do vinte
oito de maio; ainda assim, sobreviveu dois dias como ministro; foi um
sobrevivente da primeira república; deve ser esse o mérito que mereceu o busto.
Só agora?
Mais vale tarde que nunca.
Mais valia nunca do que agora; se, durante dezenas de anos, gerações seguidas não se lembraram do indivíduo, esqueceram-se completamente dele, porque carga de água, ocorreu a este autarca gastar dinheiro com obra despropositada? só há uma resposta, óbvia: esta e outras obras sem mérito cultural ou económico, servem para os autarcas distraírem os basbaques e caçar-lhe os votos enquanto os mantém de boca aberta: dinheiro em mãos da ignorância não serve a cultura mas a ganância de poder a todo custo;
Ele foi um dos lançaram o país na bancarrota,
depois de quarenta e cinco governos em dezasseis anos de bagunça, que
conduziram à ditadura; um tipo destes merece um
busto, aqui, onde, que se saiba, nunca fez nada para além de só tirar
proveito próprio das suas terras a vender água engarrafada?
Isso são águas passadas, passe o
trocadilho; o que mais importa agora é saber como se permite um autarca, que por ignorância
ou vaidade cega derrete milhares num busto, como se esses dinheiros não
fizessem falta em investimentos realmente importantes para a população desta
terra; o que lá vai, lá vai, se há alguma coisa a aprender com o passado é a
lição de que a má política no uso dos dinheiros públicos corrói a democracia ...
Continua a corromper ...
... tentar passar ideia de que uma homenagem, despropositada no tempo e no espaço,
a um ministro da primeira república numa terra onde poucas vezes terá posto os
pés, é um acto de serviço à cultura é uma desavergonhada burla.
Para quem desvaloriza a cultura, qualquer
investimento cultural é um desperdício com intuitos demagógicos.
Nós também queremos que o investimento na
cultura seja reforçado mas concordamos que este investimento não valoriza a
cultura desta freguesia; há muitos investimentos à espera de verbas que, esses
sim, podem contribuir para a valorização das populações; não se valoriza a
cultura com homenagens a quem não serviu o povo, para além de ter sido
irrelevante a sua intervenção política há quase um século; trata-se do
investimento numa obra, a todos os títulos, despropositada; esta aldeia, …
Agora é vila.
... agora é vila mas é menos vila que antes;
noutros tempos …
Queremos falar do passado ou do futuro?
... falamos do presente; esta vila é sobretudo
um dormitório dos que trabalham fora dos seus limites; há casas desertas
há anos, e as ruas são de travessia automóvel da freguesia; não há agricultura
mas também não há indústria, há escolas mas os professores residem na sede do
concelho e o mesmo acontece com os médicos do posto de saúde; a população residente
decresceu, as actividades culturais locais estão em extinção; e, no meio deste
contexto, de que se lembra a junta? encomendar um busto a um escultor e a
peanha a um canteiro para celebrar um fulano que cá não deixou nem rasto.
Devemos apoiar os artistas, os artistas
plásticos; o mesmo é dizer que devemos apoiar a cultura.
Não para a concepção e execução de um
busto que nada diz ao povo desta terra.
Diz, diz;
Diz nada; o povo bate palmas se vê bater
palmas, desde que não lhe peçam dinheiro para isso.
Pedir, não pedem, tiram-lho sem que ele se
aperceba; tiram-lhe em impostos e taxas em número incalculável...
Incalculável, porquê? é só contar, não?
... experimenta contar e diz-me quando
souberes;
Mas, afinal, que fizeste tu para te
chamarem à polícia e te constituírem arguido por suposto larápio do busto?
foste apanhado em flagrante delito?
(Gargalhada geral)
Há meses encontrei o Valter, que insiste
em tornar o seu semanário, o único do concelho, mais interventivo e menos paroquial;
é uma aposta perdida mas ele insiste; quando o jornal noticiava nascimentos,
casamentos, funerais e chegadas de emigrantes nas férias, o jornal vendia-se,
até muito no estrangeiro, assinado pelos emigrantes; foi chão que deu uvas,
disse-me ele, e quis dar uma volta ao jornal; convidou gente dos partidos,
alguns dos quais, que muito respeito, se sentam aqui à volta desta mesa, e o
jornal tornou-se campo de lutas ideológica; com cada qual a opinar para o seu
lado, as assinaturas caíram redondamente, ninguém quer ler jornal que dê
guarida a baboseiras de políticos de outros quadrantes, palavras do Valter; convidou-me
para, também palavras dele, temperar o ambiente, com perspectivas menos
radicalizadas para recuperar alguns leitores moderados, que também há, não é
verdade? perante a insistência do Valter de manter o jornal mesmo continuando a
perder dinheiro porque a publicidade também convive mal com disputas
partidárias, passei a enviar pequenos comentários, o mais apartidários possível;
e o que é que o eu enviei, e foi publicado há uma semana, que provocou engulhos ao
presidente da junta para me denunciar como muito provável autor material do
furto ou, pelo menos, autor moral? simplesmente mais ou menos isto: o busto
descerrado há quinze dias no casal dos cágados motivou polémica e eu não
poderia ignorar isso; e escrevi ...
... escrevi notícia da colocação em local
quase deserto de uma escultura a homenagear quem tinha sido, há quase um século, ministro de três governos durante quase nove meses, sendo dono, na altura, de relativamente extensa mancha florestal, onde durante alguns anos engarrafou
água nascida nos seus terrenos, provavelmente por nela existir alguma virtude
que, no entanto, lamentavelmente se esgotou cedo.
Como a escultura, um busto, foi colocada
em local distante da área residencial da vila, parece-nos, alertava eu, que a probabilidade de a obra vir a ser vandalizada e até derrubada, ser elevada.
Por estas razões, afigurava-se-nos
recomendar à junta a vedação do espaço com rede de arame farpado
suficientemente alta para desanimar possíveis tentações de vandalização da obra.
Foi só isto; o comentário saiu no jornal na quinta-feira, o roubo foi praticado na noite de domingo para segunda; às oito da manhã de hoje tinha
a polícia a bater-me à porta, levaram-me para a esquadra para interrogatório. Saí
de lá meia hora antes de chegar aqui, com intimação de me a apresentar amanhã
no tribunal para ser ouvido por um juiz; atribuem-me a autoria material ou pelo menos a
autoria moral do furto por tornar pública uma ideia que, de outro modo, não
ocorreria a mais ninguém.
Só a mim, uma mente perversa.