O Presidente da República tem estado ultimamente na berlinda por algumas declarações públicas polémicas que, segundo as sondagens à opinião pública, terão sido geralmente mal acolhidas.
A crise com que o país se confronta tem raízes profundas mas agudizou-se de tal forma que, agora, qualquer intervenção pública menos acertada dos principais responsáveis políticos tem o efeito do alcool etílico sobre uma ferida aberta: arde mas não cura.
Para além destes deslizes recentes, uma das críticas mais comuns feitas a Cavaco Silva enquanto PR é a sua quota parte na gestação da crise enquanto primeiro-ministro. Um dos pontos de referência é o artigo "O Monstro", publicado há doze anos no DN, era primeiro-ministro António Guterres, e Pina Moura ministro das Finanças e da Economia.
Relendo "O Monstro", o alerta de Cavaco Silva não seria susceptível de grandes controvérsias, se ele não tivesse sido primeiro-ministro até Outubro de 1995, isto é, cinco anos antes de redigir "O Monstro". Mas foi. E essa condição não pode ser descartada de uma leitura do artigo e da evolução subsequente da situação. Ainda que, com toda a pertinência, se possa argumentar que os erros passados, se os houve, e houve certamente, não podem inibir ninguém de continuar a intervir no sentido de corrigir o caminho do futuro. Miguel Cadilhe abandonou o governo em Janeiro de 1990, tendo declarado, posteriormente, o seu desacordo com Cavaco Silva quanto a um novo sistema que este preconizava de retribuição da função pública.
Em Janeiro de 1990, Miguel Beleza é nomeado ministro das Finanças, sucedendo a Miguel Cadilhe, e as despesas com pessoal eram, nessa altura, computadas em valores equivalentes, 3.432 milhões de euros, a Receita 10579, a Despesa 13036, o défice (negativo) 2456, equivalente a 7,2% do PIB.
Miguel Beleza é substituído por Braga de Macedo em Outubro de 1991, é introduzido o "novo sistema de retribuição da função pública", as despesas com pessoal sobem para 4425 milhões de euros, o que significou um crescimento de quase 29%, relativamente ao ano anterior, a Receita sobe 22% para 12904, a Despesa 24% para 16259, o défice agravou-se em quase 37% para (negativo) 3355 ou seja 7,6% do PIB. Mais do que as variações em termos absolutos importa olhar para as variações dos quatro indicadores entre si. Claramente, começara a gestação do "O Monstro". Uma política coerente com o princípio do equilíbrio das finanças públicas recomendaria que fosse dado início à sua interrupção involuntária. E foi, mas por pouco tempo.
Em 1992 o défice agravou-se ligeiramente mas melhorou francamente a sua relação com o PIB: 4,6%.
Em 1993, o crescimento económico abranda significativamente, Braga de Macedo enfrenta problemas na colecta do IVA, as receitas fiscais contraem-se e o défice situa-se no nível mais elevado dos governos de Cavaco Silva: 8,1%.
Em Dezembro de 1993, é nomeado Eduardo Catroga, as despesas com pessoal continuam uma progressão de crescimento linear, a Receita recupera, o défice em 1994 reduz-se, ligeiramente, para 7,7% do PIB, o governo de Guterres toma posse em no fim de Outubro de 1995, a Catroga sucede Sousa Franco, e o défice de 1995, contrai-se para 5,5% do PIB, ainda em consequência da gestão de Catroga.
Com Sousa Franco nas Finanças, e a ajuda da conjuntura externa, o défice reduz-se em 1996 para 4,8% do PIB, mas hélas!, em 1997 a forte entrada de novos funcionários públicos, e a integração de tarefeiros e contratados aumenta o défice real para 7,6% do PIB, reduzido para 4% com receitas extraordinárias. Em 1998 o défice é o mais baixo de sempre, 3,2%, mas ainda assim com recurso a medidas extaordinárias de idêntico montante, por exigências da entrada de Portugal no euro. Em 1999 (Sousa Franco saiu em Outubro desse ano) o défice real (sem medidas extraordinárias) atinge o valor mais baixo (2,8% do PIB), em 2000, ano da publicação de "O Monstro", o défice real voltou a subir para 6% do PIB, 3,2% com o recurso a medidas extaordinárias. Era Pina Moura ministro das Finanças e da Economia (agregação que Cavaco Silva considerou um erro).
Em 2001, observa-se um abrandamento da economia , Oliveira Martins substitui Pina Moura em Julho de 2001, o défice contrai-se para 4,4% do PIB.
Durão Barroso toma posse como primeiro ministro em Abril de 2002, Ferreira Leite é nomeada para as Finanças, o IVA é aumentado de 17% para 19% com o objectivo de colmatar os efeitos da conjuntura recessiva, o défice real sobe para 6,8% do PIB, oficial de 4,1%, com receitas extraordinárias e, em 2003, para 8,3% (real) e 5,4% oficial, com recurso a medidas e receitas extaordinárias (congelamento dos salários da função pública, transferência de fundos de pensões, vendas de património, etc). Santana Lopes substitui Durão Barroso em Julho de 2004, nomeia Bagão Félix para as Finanças, o défice real nesse ano é de 8,1% do PIB reduzido a 5,2% com receitas extaordinárias. Em Março de 2005 toma posse o governo de Sócrates, a despesa aumenta 14% ( subsídio de desemprego, pensões, vencimentos dos funcionários públicos) relativamente ao ano anterior.
O que há de comum durante todo o período que precede o governo de Sócrates e o deflagar imparável da crise financeira? Nenhum governo, decididamente, abortou "O Monstro". Antes, pelo contrário, a partir de certa altura passaram a alimentá-lo sistematicamente com recursos extraordinários que, por natureza, não são renováveis.
Com o acentuar da concorrência decorrente da globalização, as vantagens decorrentes de uma moeda forte para os sectores não transaccionáveis, as desvantagens para os não transaccionáveis, as desorçamentações, as parcerias público privadas, os investimentos públicos sem racionalidade económica, numa palavra, a demagogia política, engordaram "O Monstro" até à monstruosidade com que hoje nos confrontamos.
Cavaco Silva tem algumas culpas no cartório, como primeiro-ministro, sem dúvida, por mais atenuantes que possam juntar-se-lhe ao processo. E como Presidente da República? Cavaco Silva declarou um dia que se sente confortável no exercício das suas funções com os poderes constitucionais que lhe estão cometidos e que ele jurou cumprir.
Não sei se continua a pensar do mesmo modo. Dos efeitos da crise nem o Presidente da República está resguardado mesmo que não cometa os deslizes nas suas declarações públicas que tem cometido.
Em tempos de guerra não é confortável a posição de um desarmado.
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Col.- Em 2009 Portugal reportou uma dívida pública de 76% do PIB, em 2011 ela passou para 107% do PIB. Trinta e um pontos em dois anos?! Não, em muitos anos, estavam escondidos. Em parte, por esquemas generosamente providenciados pela banca. Noutros, pelos fornecedores. aqui
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Em tempos de guerra não é confortável a posição de um desarmado.
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Col.- Em 2009 Portugal reportou uma dívida pública de 76% do PIB, em 2011 ela passou para 107% do PIB. Trinta e um pontos em dois anos?! Não, em muitos anos, estavam escondidos. Em parte, por esquemas generosamente providenciados pela banca. Noutros, pelos fornecedores. aqui
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O Monstro
Cavaco Silva, Diário de Notícias, 17 de Fevereiro de 2000
Na ciência económica há um modelo explicativo do crescimento das despesas públicas em que o estado é visto como um monstro de apetite insaciável para gastar mais e mais. É o modelo do Leviatão. São várias as razões apresentadas para justificar o apetite do monstro:
- os ministros estão convencidos de que mais despesas públicas trazem-lhes mais popularidade e votos, porque assim podem distribuir mais benesses e ser simpáticos e generosos com os grupos que comem à mesa dos orçamentos dos seus ministérios;
- os burocratas, os directores da Administração Pública, lutam pelo aumento das despesas controladas pelos seus departamentos, porque isso lhes dá poder, influência e estatuto;
- os grupos que beneficiam directamente com os gastos do Estado estão melhor organizados do que os contribuintes que pagam os impostos e pressionam os políticos para mais despesa pública;
- muitas pessoas pensam que os serviços fornecidos pelo Estado não custam nada, porque sofrem de ilusão fiscal e não se apercebem de que as despesas têm sempre de ser financiadas com impostos, presentes ou futuros.
Há indicações de que hoje, em Portugal, o monstro anda à solta, atinge um tamanho alarmante e está incontrolável. O orçamento para o ano 2000, em discussão na Assembleia da República, é a prova disso. As despesas públicas apresentam um crescimento enorme e correspondem a mais de metade da produção nacional no ano. Pensa-se, contudo, que a dimensão do monstro é ainda maior que a retratada no orçamento apresentado pelo Governo. Com efeito, muitas despesas públicas fogem ao orçamento votado pela Assembleia da República, Esta parte escondida do monstro não é desprezível, devendo atingir centenas de milhões de contos.
Por outro lado, é amplamente reconhecido que o crescimento das despesas do Estado tem alimentado desperdícios e não se tem traduzido em melhoria dos serviços públicos prestados à população. Repare-se, por exemplo, nos relatórios do Tribunal de Contas que têm sido divulgados, onde sobressaem as ineficiências e fraudes na utilização dos dinheiros públicos. O aumento da despesa pública tem servido, acima de tudo, para satisfazer o apetite voraz do monstro e alargar a sua camada de gordura.
Quer isto dizer que mais de metade da produção que os Portugueses realizam é hoje desviada para alimentar o monstro. Os benefícios do aumento das despesas do estado que resultam dos serviços públicos (como educação, saúde ou segurança) ou da redistribuição do rendimento são claramente inferiores aos custos que os indivíduos suportam através do pagamento de impostos.
Durante algum tempo, as forças políticas mais à esquerda apoiaram o crescimento das despesas do Estado, convencidas de que daí resultava uma redução das desigualdades. Essa ilusão foi destruída pelo fenómeno da globalização e da integração económica e financeira. A liberdade dos movimentos de capitais com o exterior e a concorrência fiscal entre os países fizeram com que o crescimento das despesas seja financiado principalmente com impostos sobre o trabalho e não à custa dos rendimentos do capital. Hoje não há dúvidas de que o crescimento do monstro destrói riqueza e agrava as desigualdades na distribuição do rendimento. Penso que o Ministério das Finanças está consciente de tudo isto e está cheio de medo do monstro. Já o anterior Ministro das Finanças, no final do seu mandato, confessava, desalentado, que não tinha conseguido controlar o crescimento das despesas correntes do estado, porque dentro do Governo havia fortes lobbies a favor do monstro. A própria Comissão Europeia, no seu «Relatório sobre a Situação em Matéria de Convergência e respectiva Recomendação com Vista à Terceira Fase da União Económica e Monetária», salienta que Portugal foi o único país da União em que o monstro cresceu na caminhada para o euro. Não tenho dúvidas de que alguns membros do Governo do actual Ministério das Finanças conhece bem o perigo que o monstro representa para a economia nacional e é provável que o seu silêncio e olhar triste seja não só um sinal de medo, mas também um apelo para que os ajudem a enfrentar a besta. O próprio ministro confessou há dias que tinha adiado para o próximo ano o combate ao monstro. Não me surpreende esta atitude, porque eu próprio a tinha antecipado num artigo que tinha publicado no DN no início da presente legislatura, em que me pronunciava contra a decisão de reunir sob o comando de um só ministro as áreas das finanças e da economia. O retrato do monstro que emerge do orçamento para o ano 2000 é a demonstração inequívoca de que foi uma decisão errada.
Mas o apelo mais lancinante chega-nos da Senhora Ministra da Saúde: «Mais dinheiro para a saúde só piora a situação do sector.» A Senhora Ministra sabe do que fala, conhece o monstro, pois foi Secretária de Estado do Orçamento e é uma reputada especialista de finanças públicas.
No ponto em que nos encontramos, só os partidos da oposição podem responder a estes apelos angustiantes, mas igualmente corajosos, e ajudar o Ministério das Finanças a enfrentar o monstro. Não devem deixar de fazê-lo, porque a situação é grave. Os interesses meramente partidários devem ficar de lado. Deixar o monstro continuar à solta é contribuir para destruir a riqueza nacional, prejudicar o crescimento económico do País, agravar as injustiças e impedir que o nível de vida dos Portugueses se aproxime da média europeia. A urgência em conter o crescimento das despesas do Estado sobreleva tudo o mais.
Há três contributos que a oposição pode dar para ajudar o Ministério das Finanças:
- votar contra o aumento da carga fiscal que o orçamento para o ano 2000 inclui, por forma a reduzir o fluxo de combustível que alimenta a fúria do monstro;
- impedir que as receitas das privatizações sejam utilizadas para financiar as despesas públicas, não tanto porque isso seja ilegal face à legislação portuguesa e comunitária, mas para impedir que o monstro, para além de devorar mais de metade da produção nacional, engula também património acumulado ao longo dos anos.
- pedir ao Senhor Ministro das Finanças que elabore um novo orçamento, dando-lhe a garantia de que pode contar com o apoio dos partidos da oposição no combate pelo emagrecimento do monstro. O ministro sentir-se-á então com mais força para desembainhar a espada e cortar-lhe a camada de gordura, eliminando alguns desperdícios nos gastos do Estado. Deve exigir-se que seja um novo orçamento, mas verdadeiro, sem artifícios contabilísticos e défices ocultos.
É perigoso adiar este combate. Se no primeiro ano da legislatura, e sem que ocorram eleições autárquicas, o Governo prevê que as despesas correntes do Estado aumentem a uma taxa dupla da do produto, o que não será quando nos aproximarmos das eleições?
Receio bem que o monstro atinja uma tal dimensão que o combate, depois, não se faça sem muitos feridos quer do lado do Governo, quer do lado dos partidos da oposição, sem falar nos estragos causados à economia nacional e ao bem-estar dos Portugueses.
c/p aqui
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