Tuesday, October 20, 2009

CONFUSÕES IDEOLÓGICAS


Ideologia, o que é?
Questão colocada aqui.

Tentei, há já algum tempo, abordar o tema, de forma breve, em dois comentários aqui e aqui.

Por ter lido, recentemente, From Socrates to Sartre: The Philosophic Quest de Thelma Z. Lavine, socorro-me agora fundamentalmente desta obra para confrontar os meus apontamentos de há mais de dois anos com o que escreve Thelma Z. Lavine a propósito deste conceito, hoje, ambíguo.
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Terá sido Destutt de Tracy (1754-1836), um aristocrata francês preso durante o Reino do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, quem propôs ideologia como uma ciência fundada nos parâmetros do materialismo iluminista, prevalecente na época, e que atribui a origem das ideias humanas às percepções sensoriais do mundo externo. As ciências naturais, que Destutt de Tracy tinha abordado mas abandonado para recolher à prisão, onde as experimentações acabam mas o cérebro continua a funcionar, tinham-se desenvolvido e influenciado os filósofos (Voltaire, Diderot, d´Alambert, entre outros) a um ponto que comprometera irremediavelmente a superioridade divina do Rei e da Igreja e fizera resvalar a cabeça do monarca para a guilhotina e a filosofia dominante para a igualdade dos cidadãos. Exportada para o outro lado do Atlântico, forjara a independência dos EUA. A Revolução Francesa aconteceria poucos anos mais tarde.
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Para os filósofos (les philosophes, que na terminologia da época não eram profissionais, não eram académicos, portanto) durante toda a história da humanidade os grupos dominantes (a Igreja, o Estado) tinham utilizado ideias filosóficas e religiosas para promover os seus próprios interesses.

Ideologia, enquanto conceito fundado no conflito de interesses de classes viria a ser retomado por Karl Marx, e significava, então, o conjunto de ideias convincentes mas ilusórias através das quais uma sociedade dominava o pensamento de outra, com o objectivo de a explorar: a classe capitalista dominava o pensamento dos trabalhadores.

Para Marx, (From Socrates to Sartre: The Philosophic Quest , pgs 295/296, 318) "uma ideologia é um sistema de ideias determinado pelo conflito de classes que reflecte e promove os interesses das classes dominantes". "Todas as invocações de verdade filosóficas, religiosas, jurídicas, políticas, morais, feitas ao longo da história são, para Marx, ideologias)". "Marx entende a história cultural da humanidade como a história da ideologia, de religiões persuasivas, de filosofias e sistemas legais, que se pretendem universal e eternamente verdadeiros mas que representam apenas a classe dominante e a legitimação da sua autoridade e do seu poder".
"Assim, por exemplo, a teoria política da ascenção da burguesia francesa, apelando para a liberdade e a igualdade, que aparentemente benificiaria toda humanidade, realmente garantiu primordialmente à classe burguesa o poder que lhe faltava".
"A perspectiva marxista da teoria da ideologia prevaleceu na vida intectual de todo o séc. XX e atingiu todos os sectores culturais - romances, filmes, revistas, nos mass media, nas organizações sociais, nas universidades, nas publicações académicas e técnicas. Todos estes elementos culturais são hoje geralmente vistos como ligados ao interesses de um qualquer grupo social identificável. Por exemplo, quando subscrevemos a assinatura de uma revista pensamos imediatamente nos pontos de vista do grupo social que aquela revista representa."
"Não há saída para a ratoeira ideológica? Não é o marxismo também uma ideologia que falsifica os factos da realidade social em benefício dos interesses do proletariado?"
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Ideologia é, portanto, o conceito suporte da doutrina marxista, entendido como o veículo de dominação de uma classe sobre outra, dominação que o marxismo pretende eliminar promovendo a revolução proletária. Entre aquele veículo (ideologia, enquanto sistema de ideias perversas) e a forma de o combater (doutrina, enquanto sistema de ideias libertadoras) a diferença é maniqueísta, depende do observador.
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Hoje, nas sociedades democráticas, onde a liberdade de expressão dá completo consentimento total à discussão das ideias, o conceito de ideologia no sentido marxista deixou de fazer sentido. Não se extinguiram as diferenças entre classes dominantes e dominadas que agora se mantêm por meios mais subtis. Segundo a concepção marxista, uma ideologia é um anátema.
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E, no entanto, o apagamento das lutas ideológicas a seguir à implosão da União Soviética foi geralmente lamentado porque o conceito sofreu uma involução: de arma de opressão evoluiu para emblema de posicionamento político social, económico, moral.
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Há dias, Marcelo Rebelo de Sousa reivindicava para o PSD (ou PPD/PSD) uma ideologia própria, admitindo que as divergências correspondem a sensibilidades. Acrescentava que no PS, mais do que sensibilidades, há divergências ideológicas profundas. O que vale por dizer que, onde é difícil detectar um filão ideológico diferenciado, MRS vê pelo menos três.
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Fora destas ocasiões, em que cada um procura demarcar terreno ideológico próprio, ningém fala em ideologias nem diz o que são. Todos falam em programas.
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As ideologias, até os chineses já deixaram de saber o que são.
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Ideologia: "sistema de ideias, de opiniões que constituem uma doutrina política ou social, e que inspira os actos de um governo, de um partido, de uma classe social, etc. : Seguramente, uma das marcas mais nítidas de um homem de acção, é a tendência a não se deixar submergir em teorias, a desvalorizar as ideologias (Lanson). Em sentido pejorativo: doutrina fundada sobre ideias sem qualquer adesão à realidade que procuram um ideal irrealizável. " (enc. Larousse)

4 comments:

aix said...

Parabéns pela clareza e oportunidade (lembro o caso "Caim") desta entrada. A questão é muito complexa e dá para Tratados. A definição de ideologia da Larousse é naturamente abrangente, pois até começa por identificá-la com "opinião" («sistema de ideias ou opiniões»), conceitos que, desde Platão, são distintos. O Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, de André Lalande, regista 5 significados diferentes ao termo «ideia» ao longo da História da Filosofia, enquanto atribui 3 a «ideologia»
(incluindo 1 pejorativo). Termo realmente criado por Destutt de Tracy significando «ciência que tem por objecto o estudo das "ideias"(no sentido geral de factos de consciência), dos seus caracteres, das suas leis, da suas relação com os signos que as representam e sobretudo da sua origem».
A crítica de Thelma Lavine a K Marx é vulgar e conhecida mas inconsistente.O erro dos intérpretes de Marx é classificar a sua filosofia como dogmática quando ela não se inscreve na categoria das filosofias sistemáticas. Não se trata por exemplo de "ratoeira ideológica" porque simplesmente nesta matéria Marx não cria ideologia mas faz interpretação (de que se pode discordar). O materialismo histórico poderá ser ideologia não o materialismo dialéctico.É erro primário classificar o "marxismo" como ideologia unitária: há vários marxismos.Mas sobre Marx,"hélas",
as discordâncias ideológicas são mil vezes superiores às de Saramago.

Luciano Machado said...

Olá Rui
Mais um pouco obrigava-te a ir ler Marx e até acho que na "a ideologia alemã" terias recebido uma boa achega para o estudo deste tema.
É um facto que conceito de ideologia ocupa uma posição determinante na arquitectura do materialismo histórico.
Dada a extraordinária influência exercida por Marx nos mais diversos campos das ciências humanas, este termo adquiriu um estatuto de transversalidade da qual decorreu forçosamente alguma erosão do conceito daí a ambiguidade que referes.
Confesso que ainda não li a Thelma Lavine embora já tenha contactado com algumas referêncis ao livro que citas e à sua análise filosófica da história pelo que presumo tratar-se de uma análise que desagua na tese hegeliana do Fukuyama sobre o fim da história, tese que presumo tu tambem partilhares quando referes que a questão de hoje se resume ao perímetro da intervenção do estado.
Não será isto ideologia?
Abç
L

Rui Fonseca said...

Caro Francisco,

Obrigado pelo teu contributo.

Quando escreves "A crítica de Thelma Lavine a K Marx é vulgar e conhecida mas inconsistente" não penso que te refiras às transcrições que fiz.

Em "From Socrates to Sartre", que foi publicado pela primeira vez em 1984, portanto antes da implosão da União Soviética, Thelma Lavine remata assim o capítulo dedicado a Marx:

" Marx morreu em 1883. Sobre a sua sepultura há uma grande escultura da cabeça de Karl Marx olhando Londres e o mundo, no qual em seu nome, o Marxismo Comunismo alastrou da Russia para os países seus satélites, para a China, a Indochina,África, e agora para a América Latina. Qual o poder do marxismo? É o poder de uma ideologia para os oprimidos que explica a história do mundo como exploração económica e aponta o caminho da libertação através de uma revolução necessáriamente altamente destruidora e o aprisionamento dos opressores do mundo e das suas riquesas, após o que a humanidade será redimida e voltará ao paraíso. Uma aparição está a ocupar a Europa, a Ásia e a América Latina. Uma aparição está a tomar conta do mundo."

A haver inconsistência nesta história de Thelma ela não decorre, certamente, de falta de admiração pelo protagonista.

Que te parece?

Rui Fonseca said...

"presumo tratar-se de uma análise que desagua na tese hegeliana do Fukuyama sobre o fim da história, tese que presumo tu tambem partilhares"

Caro Luciano,

Não partilho.

Podes confirmar isso mesmo aqui:

http://aliastu.blogspot.com/2005/11/o-prximo-homem-e-prxima-histria.html

"referes que a questão de hoje se resume ao perímetro da intervenção do estado."

Não sou eu quem o diz mas o protagonistas políticos. Ouve-os e diz-me o que ouves.