Thursday, June 26, 2014

AQUELA RUA

Aquela foi a rua da minha infância feliz, despreocupada. Aos quatro, cinco anos, saía de casa dos avós, à tardinha, e ia até nossa casa, a um quilómetro de distância. A avó recomendava-me "vai sempre pela bordinha", que, naquele tempo, queria dizer caminhar pela berma direita da rua. O trânsito era reduzido e lento, a minha confiança ilimitada. Tanto, que um dia olhava para uns telheiros derrubados de uma velha vizinha, que morava no outro extremo da aldeia, e perguntei-lhe por que razão não arranjava ela os muros caídos. Respondeu-me, sorrindo, sempre a conheci com um sorriso no rosto rosado, que não tinha dinheiro para as obras. Eu já tinha ouvido que o homem dela tinha emigrado para a Venezuela, soube mais tarde que trabalhava no porto de La Guaira, deixando-lhe a responsabilidade de criar e educar quatro filhos menores. Após um ou dois meses de espera por notícias, começaram a chegar alguns parcos dinheiros para sustento da casa num fluxo irregular que secaria três ou quatro anos depois. Na altura, era tanta a minha ingenuidade quanta a curiosidade, à resposta da velha senhora (deveria ter ela, então, quarenta e poucos anos...) correspondi eu com uma garantia de peso.
- Eu arranjo o dinheiro!
Ela deu uma gargalhada, e, naturalmente, quis saber onde iria eu desencantar os recursos. Mas eu tinha fisgado toda a estratégia e respondi de imediato:
- Vou à Venezuela!
 Nova gargalhada.
- À Venezuela? Que vais tu fazer à Venezuela?
- Vou ter com o seu homem e pedir-lhe o dinheiro para as obras.
- Boa!, disse ela. E como vais tu até à Venezuela, meu querido?
- Vou sempre pela bordinha.

Hoje, sempre que passo por aquela rua, desperta-se-me a curiosidade e a ingenuidade dos meus cinco a olhar as casas caídas, abandonadas.
- Quantas pessoas habitam ainda aqui?
- Deste lado da rua, somos sete. Daquele lado, há um casal de velhos, aqui em frente mora F., mas está acamada, ali mais para cima já não mora ninguém. Ao todo já não chega à dúzia.
- Mas há muita construção nova, não há?
- Muita, não digo. Alguma há, mas nos extremos da terra. As pessoas não querem casas velhas e constroem fora daqui, onde há terrenos à venda.
- E, no entanto, há aqui casas que foram casas boas... Com quintais bem bonitos ...
- Então, não há?! A melhor de todas é essa aí em cima, um palacete abandonado há dezenas de anos.
- Pertenceu, não sei se ainda pertence, a um senhor que foi presidente da Assembleia da República.
- Nunca o vi por cá.
- E aquelas duas, ali?
- Aquelas duas estão encravadas com problemas de partilhas. Uma situação que não devia acontecer.
- Pois não. Deveriam os herdeiros ser obrigados a resolver a partilha da herança dentro de um prazo razoável, um ano deveria chegar, se o não fizessem deveriam os prédios ser vendidos pelos tribunais a quem mais desse e distribuido o produto da venda, deduzidos os custos da intervenção oficial, a quem provasse ter direito a ele.
-  Ui! Ui! Nessa não caem eles. Já não dão conta dos recados que agora têm. E daria trabalho sem dar votos.
-  E aquela, ali em baixo, a quem pertence agora?
- Foi comprada por um comerciante de móveis aqui há uns anos atrás. Comprou aquela e a outra ao lado. Disse-se na altura que iria ali construir uns armazéns. Mas não fez nada.
- E não há quem esteja interessado naquelas casas?
- Talvez. Mas parece que o dono actual não está interessado em vendê-las. Pelo menos é o que consta.
- Por quê?
- Sabe-se lá porquê!
-  E parece-lhe bem?
- Parece-me mal. Quem não habita deveria deixar habitar. Haverá sempre quem esteja interessado. Tudo depende das condições. Falam tanto em reabilitação urbana e veja o que por aí vai. É horrível que nos condenem a viver entre ruínas.
- Aquela que foi a principal rua da aldeia é hoje a rua mais abandonada da vila, porque agora a aldeia passou a vila, sabia?
- Sei, então não sei?! Caganças é o que não falta na nossa terra. 

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