Wednesday, February 01, 2012

UMA LUZ AO PRINCÍPIO DO TÚNEL

"Alô a todos! Para dizer que a Rosa tem um dentinho!
Também começou a "gatinhar" na semana passada!"
 
Setenta anos! Quantos anos são setenta contados pelos registos ainda não apagados dos ficheiros?  A Rosa não vai recordar-se deste incómodo da alegria do primeiro dente nem do contentamento inocente de ter chegado além pela primeira vez. Contar-lhe-ão como foi  e esse registo será mais ou menos perdurável consoante a densidade da gravação na memória que o acto de contar lhe transmitiu. Qual a mais longínqua recordação que perdurará até aos setenta anos? Improvavelmente, o registo de ter ouvido contar o acontecimento do seu primeiro dente e das suas primeiras braçadas em seco.

*
- E se ele acorda antes de chegarmos?
- Não acorda. Antes das nove estamos de volta.
- Das nove?!! 
- Talvez mais cedo até. Não leva mais que três horas. E tu podes voltar mais cedo.
- E se o levasse?
- Acordava. É melhor deixá-lo dormir.   

Ele não podia ter ouvido isto, estava a dormir, mas é bem provável que este tenha sido o diálogo às cinco e meia de uma manhã de Agosto, mergulhada numa neblina cerrada antes de o Sol a derramar e aquecer o dia como uma fornalha.

Que idade teria? Dois, três anos. Não menos de dois, porque com essa idade tinham mudado de casa, não mais de três porque aos quatro havia outra história, outro marco na sua memória.

Às nove horas já o sol nascente tinha subido por detrás da neblina, e entrava coado no quarto. Quando ele abriu os olhos, deu-se conta que a cama era imensa e medonhamente alta, e, logo depois, apareceu a miar de rabo alçado, a gata. Não estava só no mundo e esse conforto instintivo fê-lo respirar fundo. A janela tinha cortinados que o impediam, mesmo de cima da cama, ver a rua; ainda mal acordado, quando se pôs de pé na cama, porque os pés eram ainda redondos, porque o colchão era mole, regressou à posição inicial e a gata miou e saltou do chão para a cama, junto dele. A gata era grande, qualquer que fosse o termo de comparação que se tomasse: para a sua espécie, para o tamanho do puto que, deitado, a olhava fraterno de baixo para a cima; malhada a preto retinto, branco impecável e laranja sedoso, era linda. O Pai costumava dizer que tinha em casa um pequeno tigre, às vezes dizia que era um leopardo, talvez não distinguisse um tigre de um leopardo e, por inerência, um gato de qualquer outro bicho com bigodes. A Mãe achava tais comparações completamente descabidas e insistia, qual leopardo qual carapuça, é uma gata real sem tirar nem pôr, digna, altiva e bela como uma marquesa. Após um momento de mútua observação a gata posicionou-se em esfinge e iniciou mais uma sessão de limpeza do pêlo, o puto, atento a seguir-lhe os movimentos, adormeceu de novo. O calor do sol, que entretanto inundara o quarto, acordou-os; primeiro a gata, espreguiçou-se, abriu a boca, ensaiou nova limpeza sumária e saltou da cama, rabo alçado, cortando à direita à saída do quarto; depois o puto, despertado pelo calor e pelo salto da gata. Enquanto a gata miava e acelerava o passo cadenciado no corredor que dava para as traseiras, em direcção da saída, o puto, após espreguiçar-se, olhou demoradamente à volta e, progressivamente desperto, quando o miar da gata deixou de se ouvir, concluiu que estava só no mundo, e desataram-se-lhe nos olhos inquietos lágrimas silenciosas e convulsivas. A chorar, escorregou-se da cama sem olhar à distância da queda, e seguiu no encalço da gata. Desse lado da casa, as janelas estavam fechadas e só alguns fios de claridade atravessam pelas frinchas das portadas. Na porta, em baixo junto à soleira, a claridade desenhava o contorno de uma gateira por onde a marquesa tinha livre trânsito. O puto já várias vezes tentara, sem sucesso, seguir a sua amiga passando por aquele túnel de liberdade, questão que o intrigava porque, sendo ele pequeno e ela enorme, ela atravessava a fronteira displicentemente, ele se passava um braço não passava o segundo. E porque quanto mais aquela impossibilidade o intrigava mais o mobilizava o puto acocorou-se, daquela vez, junto à porta e ensaiou outra alternativa: sair de cabeça, afinal de contas a solução primordial. Por tentativas chegou à posição de bruços, rodou a portinhola e espreitou para fora. A passagem da obscuridade no interior da casa para a luminosidade intensa no exterior cerrou-lhe as pestanas e levou-o a recuar. Nesta altura, a concentração exigida pela aventura tinha-lhe secado as lágrimas e sem dispêndio de lágrimas redobrou-se-lhe o ânimo. Espreitou de novo, mais uma vez foi obrigado a cerrar os olhos, abriu-os de novo a pouco e pouco, conseguiu adaptar-se às circunstâncias e pôs-se a descobrir o mundo livre à sua frente. Nunca, como naquele momento, o quintal das traseiras lhe tinha parecido tão bonito nem tão surpreendente, apesar do incómodo da posição de observação. Havia no quintal várias árvores onde cresciam frutos que os pássaros, logo que os viam a começar a madurar, debicavam nas ausências do dono. Debaixo das árvores a gata aguardava com toda a paciência e atenção máxima que algum voador mais distraído passasse a menos de um metro dos seus bigodes. Quando isso acontecia, a gata voava ao encontro do amigo da fruta alheia e chamava-lhe um figo. Com tão fino gosto da gata regozijavam-se os ratos e atormentava-se a Mãe entre a elegância do bicho e a sua inépcia para a função que lhe tinha sido atribuída. O puto, entusiasmado com as façanhas da malhada, esticou mais o pescoço de modo que metade da cabeça já estava fora da gateira quando as dores do esforço começaram a superar o interesse da visão. Quis voltar para trás mas ninguém nasce ensinado e aprender por conta própria leva o seu tempo e impõe sacrifícios. O puto que o diga: naquela posição a tendência normal levava-o a levantar a cabeça para iniciar o recuo à custa dos braços; mas não podia, a gateira era ampla, porque o habitual utente tinha bom arcaboiço, mas não tanto que permitisse ao puto efectuar daquele jeito a manobra de marcha atrás. A incapacidade de livrar-se da ratoeira em que se metera provocou-lhe a perda dos sentidos. Quando recuperou, a gata tocava-lhe o cabelo, gentilmente, a dizer, posso entrar? e, ao erguer a cabeça para se levantar, já não esbarrou com a abóbada da gateira, conseguiu sentar-se, a gata entrou, rabo sempre alçado, a miar, e sentou-se em frente dele. Estiveram assim a mirar-se mutuamente um tempo infinito, a gata cuidando, displicente, do pelo, o puto sem saber como entabular conversa. O Pai costumava, à noite, se o humor andava por perto, conversar com a gata para entretenimento do puto, mas era uma conversa anódina, de pergunta com resposta incluída, ou um monólogo, invertido, da gata pela boca do Pai, eram meios de comunicação que não ajudavam naquela ocasião. A olhar a gata, o puto perguntava-lhe ansioso quando iriam sair dali; a olhar o puto, a gata mantinha imperturbável a sua rotina. Depois o puto começou a chorar e a gata começou a rodar e a miar aflita à volta de uma mesa numa sala ao lado. A movimentação da gata distraiu transitoriamente o puto, que deixou de chorar. A gata, supondo a questão resolvida, voltou de novo a sentar-se diante dele, cuidando do pelo de vez em quando, abrindo a boca se o puto bocejava, bocejando o puto se bocejava a gata. Escoava-se o tempo sem vislumbre de esperança e a gata entendeu que tinha mais que fazer, talvez tivesse interrompido a caça e precisava retomá-la se não lá se ia o turno da manhã, talvez precisasse de fazer lá fora o que não lhe consentiam que fizesse em casa, e o puto, outra vez sozinho no mundo, voltou a chorar convulsivo.

Quando a gata voltou a atravessar a fronteira encontrou em casa o silêncio apenas perturbado pelo chilrear dos pardais no telhado e começou a miar às voltas pela casa, excitada. O puto tinha saído.
Como? Quem sabe?

Andou pela estrada fora, de macaco de alças, com abertura à frente e atrás, para todas as emergências, até que alguém disse para alguém: Onde é que ele vai?  Ele está perdido!

Pois estava.
- Vem comigo, vem.
A porta estava fechada, ninguém ainda em casa, esperaram na soleira da porta, a gata chegou de rabo a dar a dar, a miar contentamento, ficaram ali os três à espera, à espera, à espera que, com o subir do Sol, chegasse a Mãe de volta.

2 comments:

Anonymous said...

Que o túnel se ilumine de muita luz para a Rosinha o poder percorrer em liberdade e felicidade.

Quanto ao menino da história, com o tempo encontrou certamente o modo de fugir dos fantasmas que o preocuparam na infancia, e de abraçar o mundo em pleno.

Desejos de felicidades
Roberto

rui fonseca said...

Bem observado.

Obrigado.