Friday, December 31, 2010

SEGUNDO GOMES CANOTILHO

O Presidente da República podia ter demitido o Governo

O Presidente da República em Portugal é o cargo mais irrelevante da política portuguesa, como alguns dizem?

Não. Vendo o funcionamento do regime, o governo é parlamentar. O Presidente da República não pode muito, não é um presidente- governante, não é ele quem prepara um orçamento, ou quem individualiza ou desenvolve políticas públicas. É ao Governo que se pedem responsabilidades e tem essa obrigação.

Se não é governante é o quê?

É um Presidente com intervenção política ativa, porque tem imensos poderes políticos. E é relevante porque, primeiro, pode dissolver a Assembleia e basta ver o que fizeram os Presidentes - todos a dissolveram - e essa dissolução alterou sempre substancialmente a vida política. Basta recordarmos o último exemplo, o de Jorge Sampaio. E o mesmo aconteceu com as dissoluções promovidas por Ramalho Eanes, ou por Mário Soares. Se isto não é relevante, não sei o que é sê-lo.

Mas esse é o máximo poder do PR?

É um poder que, usando a linguagem dos politólogos, diríamos que é a arma dos fortes. Porque a arma dos fracos é o veto político e os pedidos de inconstitucionalidade.

São as armas fracas...

Exato. Portanto, este é um primeiro poder formal que, quando exercido, tem implicações substantivas no quadro político. É verdade que não tem grandes poderes de Governo ou de direção política. Mesmo nos dois casos onde há sobreposição, o das relações externas e o do comandante das Forças Armadas, a condução política é do Governo. Talvez em termos de revisão constitucional se pudesse explicitar melhores estes poderes. O que esteve na origem do livro que eu e Vital Moreira escrevemos "Sobre os poderes do Presidente da República: especialmente em matéria de defesa e política externa" (1991) foi precisamente um parecer que nos foi pedido por Mário Soares para saber se ele tinha ou não direito a conhecer as informações militares e diplomáticas, sendo ele como PR o comandante das FA e quem nessa qualidade acreditava os embaixadores. O parecer era sobre isto: quais são os meus poderes e como posso agir? Entendemos que se devia dar substantividade a estas funções do PR, que ele devia ser informado e isto tornar-se mais claro na Constituição. Ninguém contesta esta ideia da representação do Estado em termos externos, de simbolização da própria unidade do Estado e dado que a Constituição refere o PR como tendo essas competências, elas deveriam ser melhor especificadas.

O PR passou a ser informado, mas a letra da Constituição não foi alterada...

Não. É a interpretação que foi sempre sendo feita. Pergunta-me: os presidentes têm todos interpretado unanimemente a Constituição? Não há interpretação presidencial constitucional, nem pode haver. Cada Presidente transporta a sua personalidade e conforma o cargo com o seu tipo normativo. Numa pincelada muito impressiva, é esta a ideia que fiquei dos presidentes. Ramalho Eanes: Presidente com devoção militar na consolidação da democracia portuguesa. Mário Soares: Presidente de forma entranhadamente política, com paixão de Portugal em jeito de "fome sem entretém", como ele dizia citando O'Neill. Jorge Sampaio: Presidente de forma moralmente reflexiva, procurando compreender os desafios nacionais e globais das democracias e dos povos. E, finalmente, Cavaco Silva, Presidente interventivo em conformidade com a Constituição, num quadro de colisão de valores e de crise económica nacional e internacional. Tem sido essa a preocupação do atual Presidente.

Porquê um quadro de colisão de valores?

Muitos dos problemas que hoje se colocam são de colisão de valores numa sociedade plural. Exemplo disso foi a questão do veto ou não veto ao casamento entre homossexuais, ou do divórcio ou das uniões de facto. São problemas fractais

O Presidente deveria ou não ter vetado a lei?

Deveria ter vetado politicamente, sem nada. Se era essa é a convicção dele, sobretudo neste contexto de quadro de valores, a que conclusão chegamos? Que o PR diverge radicalmente do Governo e da maioria da Assembleia. Não é crime numa sociedade de diferenças. Seria melhor isso do que as objeções.

Cavaco Silva disse num dos debates presidenciais que se o PR se guiasse pelas suas próprias convicções ideológicas não podia ser o garante da unidade do Estado. Um PR deve - e pode - despir-se da ideologia?

Uma coisa é a unidade do Estado, outra o dissenso profundo na República, na sociedade. Eu defendo isto também quanto ao Tribunal Constitucional. Há um novo quadro de valores que está a desenvolver-se. Há outra constelação. Mas neste caso não está em causa a unidade do Estado, é a unidade da República, mas ela não é una, é diferente, é conflitual, é aberta. Talvez o que Cavaco queira dizer é que pode votar a favor da alteração de uma lei, não obstante as suas convicções. Isso tem razão de ser, é como discutir uma lei da liberdade religiosa. Sendo-se católico, pode-se ter algumas reticências, mas como Presidente vê o que é a sociedade portuguesa e não pode mover-se pelas suas pré compreensões religiosas, tem de promulgar a lei. Em termos políticos é complicado invocar sempre isto, mas Cavaco tem razão em algumas coisas.

Considera Cavaco Silva um Presidente interventivo?

É um presidente interventivo porque pode sê-lo em termos de utilização das suas competências formais, de dissolução da Assembleia, dissolução do Governo, veto político, veto por inconstitucionalidade. Mas ele não faz apenas isso. Ele entende que deve chamar os partidos políticos, por causa do orçamento, por exemplo, que deve convocar o Conselho de Estado para ouvir e auscultar a sua opinião quanto à situação do país e necessidade do arranjo de forças políticas, as consequências em termos da política externa.

Todos os presidentes o foram?

Todos procuraram ter intervenção mais política. Vimos o jogo de Ramalho Eanes com o PRD, dos colóquios que Mário Soares desenvolveu e que na altura foram entendidos como força de bloqueio, contra o Governo de Cavaco. Jorge Sampaio também teve as presidências abertas e fez numerosos discursos de intervenção - houve um que ficou célebre, "há mais vida para além do défice". Todos procuram ser interventivos noutros campos para além dos poderes formais, através da palavra, da mensagem, utilizando os novos esquemas de comunicação na área económica, social, cultural, todos de uma forma ou de outra tem-no feito.

E Cavaco Silva também, com os seus roteiros, numerosos e sobre temas variados...

O que eu diria é que ele pretende ser o que em linguagem política se diz a pessoa da supervisão, que faz prospetiva, procura ter visões de futuro, insinuar estratégias políticas. Nisto, Cavaco Silva tem sido interventivo.

E promete agora mais, uma magistratura ativa

Por isso sublinho aqui o interventivo. Não pode governar, mas pode intervir. O que não se pode exigir a este Presidente, ou a outro qualquer, como estão a fazer muitos candidatos, é que seja ele a deter a alavanca do poder - quase como a alavanca de Arquimedes - para resolver os problemas económicos, sociais e culturais. Não sendo um presidente-governante, pode ser um presidente interventivo. É isto que se lhe pode pedir.

É isso a magistratura ativa?

Magistratura ativa, de influência, porquê? Há uma série de palavras de que não gosto. O presidente moderador, árbitro, coordenador, regulador, equilibrador, a missão do Presidente, a autoridade do Presidente, o espírito da função presidencial, tudo isto é um pouco metafísico. São muitos adjetivos que se criam e que não adiantam nada. Porque é que um constitucionalista tem nisto uma visão diferente da de um politólogo? Porque se formos ver a Constituição portuguesa, não fala em poderes do Presidente da República, mas de competências.

À luz do nosso sistema, quais são os principais atributos ou qualidades que deve ter um Presidente?

São várias. Nunca a ideia de neutralidade. Um Presidente não é neutro, nem apenas moderador. Neste aspeto, Cavaco Silva às vezes perde, porque ele considera-se um Presidente que não é político nem partidário. Ora o cargo de Presidente da República é político e essa redução que às vezes se pretende fazer é precisamente aquilo que Mário Soares ataca. Verdadeiramente, a política é a arte mais nobre dos homens desde que seja colocada ao serviço das pessoas e dos povos e sempre foi assim desde Aristóteles. Eu penso que todos temos as mãos sujas no sentido sartriano. Desde que não sejamos corruptos e sejamos honestos, devemos exprimir isso mesmo. Estamos neste posto, há muitas dificuldades, são precisas opções políticas claras, conformadoras da nossa vida. Um Presidente tem o direito de exercer este tipo de magistratura de acordo com a sua personalidade e o crisma que empresta ao cargo - um Presidente é isto. Tem partidos a apoiá-lo, estamos no plano do debate político. Outra das qualidades fundamentais é a da integração social. Um Presidente representa a República ou o Estado em termos externos, mas além de cumprir esta função, tem também a da integração, das fracções partidárias, de ver as pessoas, o rosto e a alma das pessoas concretas. Ele é o representante de todos os portugueses, independentemente da sua classe e profissão. Mais ainda. No contexto atual, deveremos ainda ver que ele é Presidente num contexto de constelações pós-nacionais, de um país que está integrado na União Europeia, que pertence aos países de língua portuguesa, que tem muita imigração e, portanto, ele tem de ser o Presidente de todos. É preciso ter a coragem de ser um Presidente integrador também nestes contextos fractais e dizer claramente que não há terreno para a xenofobia em Portugal, que a combaterá fortemente, que Portugal foi um país de emigrantes e hoje recebe muitos e que ele é o Presidente de todos. Para dizer de forma mais atual, um Presidente da inclusão dos outros, no sentido do nosso país ser integrado, de pluralidade social e de ser um país que se pretende transportador de experiências globais desde as nossas descobertas.

O Presidente não é governante, mas o sistema é semi-presidencial?

Entendo que a forma de Governo é parlamentar, o que há é um corretivo através de um esquema que alguns dizem que é semi-presidencial, de ser um Presidente eleito, ter legitimidade democrática direta e relevantíssimos poderes formais no jogo político, dissolução da Assembleia, demissão do PM, vetos, etc. Mas estes poderes são exercidos no quadro parlamentar.

E isso que está a acontecer no país?

Nós temos uma cultura de maiorias no plano político, não temos uma cultura que nos momentos cruciais nos leve a formar coligações ou entendimentos políticos para resolver os problemas mais candentes do país. Não há muita flexibilidade para, em momentos cruciais, dizermos que é preciso uma sustentabilidade tendo em conta os conflitos, as greves, a contestação. Isto não acontece na Europa. Os problemas que por vezes queremos que o Presidente da República resolva têm de ser resolvidos no quadro parlamentar. Como é que ele os pode resolver? Forçando? Pode forçar, dissolver a Assembleia, dizer ao Primeiro-ministro (como fez Ramalho Eanes com o Governo de Mário Soares e Freitas do Amaral) que se ele não garante um Governo de maioria ou alguma sustentabilidade, o fará. Ele pode exigir apoio de maioria neste contexto complicado. O que se vê aqui é que o esquema Governo-Parlamento não funciona quando, afinal de contas, o Presidente está a fazer uma imposição razoável - que não quer num contexto destes haja um Governo de minoria.

Ele tem o poder de não dar posse, se não lhe garantirem esse apoio?

Ele pode dizer que vai insistir numa solução de sustentatibilidade maioritária. O que acontecia? Neste caso, ele tinha a arma dos fortes - se no próprio quadro parlamentar, e ele é um Presidente não-governante mas com poderes de dissolver a Assembleia, se os partidos não se entendem, então poderá dissolver a Assembleia, refrescando a legitimidade. Mas o Presidente tem também de fazer o jogo: dissolver a Assembleia passado um ano de eleições? Para eventualmente ter um resultado semelhante? É o problema do Presidente, a análise que vai fazendo, sendo certo que um Governo de minoria neste contexto é muito difícil. E ele teve essa experiência. Penso que os próprios partidos políticos estão a menosprezar o quadro parlamentar em que têm de se mover. O Presidente pode dizer ao primeiro-ministro que entende que é do bom-senso político que este esgote as possibilidades de formar governo de maioria. E que, uma vez que a Constituição permite os executivos minoritários, que estará atento e, se verificar que há sustentabilidade ou estabilidade política, dissolverá a Assembleia. Só que, na altura, não o podia fazer. Foi andando.

Embora tivesse havido uma altura em que o poderia ter feito

Sim, tinha uma janela, mas era sempre o mesmo problema, era um Governo há um ano no poder. Neste caso, a personalidade, o tipo de Presidente é importante, porque ele pode impor: "dou posse, mas vou estar vigilante, porque um Governo de minoria neste contexto para o país não dá". O que é que isto implicava? Repare-se que os outros partidos também querem ser a maioria e, portanto, há uma cultura que nos falta enquanto classe política. Parece que é tudo preto ou branco. Mas é de prever mais agitação social, mais contestação e não sei quem poderá transportar estabilidade social para enfrentar este tipo de situações. Este aspecto não pode ser identificado na Constituição. A ideia criativa, a imaginação e a experiência de um Presidente não podem ser postas em norma jurídica, mas é a partir das competências que detém, que ele pode tentar compreender o jogo e insinuar uma qualquer solução que veja como a mais razoável e politicamente mais sustentada.

Este Presidente é acusado por alguns sectores de que devia e podia ter dissolvido a Assembleia. Não o fez porque deriva da sua personalidade, da interpretação que faz das suas competências, ou da maneira como vê a política?

Penso que ele nunca teve dúvidas de que podia fazê-lo até determinado momento, Setembro. Também não tem dúvidas quanto à sustentabilidade maioritária, tem-no sugerido. O que parece é que a ponderação que faz, até como economista, entre os custos e os benefícios neste contexto de dívida, que é preciso elaborar um orçamento, convencer os mercados, suavizar um pouco as dificuldades de Governo, é no sentido de que pode guardar-se para mais tarde. O seu juízo político terá sido que o mal maior era dissolver a Assembleia e a queda do Governo, tanto mais que de eventuais eleições só resultaria um novo Governo passados alguns meses. Não é por isso que deixa de ser um Presidente atento e politicamente muito activo.

Como interpretar o discurso dos candidatos à luz dos poderes presidenciais?

Quando se trata de discutir as propostas, há uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Numa sociedade plural, com divergências e conflitualidade e com um texto fundamental programático como é o nosso, os candidatos podem fazer a interpretação dos poderes que estão na Constituição dissolvida na ideologia, nas propostas partidárias, nos programas de Governo. Daí que muitas vezes naveguem entre o messianismo e o sidonismo, um estilo Presidente Sidónio que Cavaco, reconheça-se, não quer ser e acho que bem.

Como define um candidato sidonista?

É um Presidente-rei que não foge à tentativa decisionista, aos plebiscitos e aclamações do Governo do Presidente, à aposta na pessoalização do poder. Um Presidente pode ser interventivo e não ser nada disto.

E o messianismo?

É promover promessas em termos económicos e sociais, culturais, nacionais e internacionais - muitos não têm sequer nenhuma contenção - que no plano da realização são quase uma utopia, mas que se pretendem impor como uma interpretação correta da Constituição e das funções de um Presidente. É legítimo enquanto jogo de discordância política na sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, mas não é um bom exercício de interpretação das competências constitucionais.

Os atuais candidatos são sidonistas ou messiânicos?

Há algum tom epopeico em Manuel Alegre, da resistência, da democracia e Portugal precisa de algum tom epopeico. Depois, há uma transposição do que chamávamos nos anos 60 a "política emancipatória", de esquerda, de revolução, reconstrutiva da política - tem curiosamente três apóstolos: Francisco Lopes, do PCP, a partir da ideia programática da política de uma visão marxista; Fernando Nobre, com uma ideia inovadora interessante a partir de uma experiência global, que não tem nada a ver com a formação marxista e também não põe grandes balizas nas competências do Presidente da República: e Defensor de Moura, que é o mais difícil de definir porque simultaneamente tem experiência claramente política, tanto como autarca, como dentro do PS. Aparentemente é um candidato contra o partido, como já foi Alegre, mas no jogo politico tem necessidade de atualizar uma certa ideia de intervenção presidencial nos problemas políticos, económicos e sociais. Não vejo nenhum sidonista, mas todos têm algumas dimensões messiânicas.

O próprio Cavaco tem?

Não, ele é um economista. Como dizia Keynes, dentro de 30 anos estaremos todos mortos. Tem uma visão muito mais humana e terrena das esperanças e das promessas. Como economista reflete isso bem.

No atual contexto, qual é o candidato mais indicado?

Não posso dizer nem interferirei. Mas penso que uma visão republicana das competências previstas na Constituição aponta para um exercício da magistratura presidencial em termos sustentáveis. Prefiro um Presidente que diga que cumpre a Constituição, nos termos republicanos de que somos todos iguais, um Presidente mais inteligente e arguto na interpretação das suas competências constitucionais e menos palavroso e com menos retórica. Ou seja, menos heróico nas afirmações e mais realista nas concretizações da Constituição.

Cavaco Silva tem sido conforme à Constituição?

Como constitucionalista que lida com estas ideias, competências e tarefas, acho que tem. Não concordo com as críticas que lhe têm dirigido. Em alguns casos tem sido de menos. No caso de conflitos de valores, por exemplo, se o Governo tem maioria e faz as leis, o PR pode pensar que está em sintonia com uma parte da população e vetar politicamente. E depois há o mecanismo de superar o veto na Assembleia. Nas regras democráticas a ultima palavra é da Assembleia, no fundo ele obriga que seja ela a tê-la. O jogo é este. O Presidente por vezes pode ficar valorizado com uma atitude deste tipo. Curiosamente, como Cavaco Silva é muito cauteloso, acaba por ter uma interpretação republicana do texto constitucional.

Mas este Presidente faz muita questão de salientar que nunca vetou um diploma do Governo

Sim, mas não é crime vetar.

Faz sentido alterar os poderes presidenciais no âmbito da revisão constitucional?

Relativamente à política externa e como comandante das Forças Armadas sim, no sentido de especificar quais são as suas atribuições, já que tanto a política externa como a defesa são do Governo. Não seriam grandes novidades. Sou muito cauteloso.

E quanto à moção de censura construtiva?

Quando o PS a propôs, eu e Vital Moreira considerámos que ela é contra a estrutura presidencial de poder. E ela foi sendo adiada. No fundo, é a possibilidade (de acordo com a experiência alemã) de uma moção de censura dentro do quadro parlamentar, desde que haja um candidato a primeiro-ministro com apoio maioritário. Mas, por outro lado, o PR nomeia o primeiro-ministro tendo em conta os resultados eleitorais - então como é? É um "negócio interno" da Assembleia ou é o Presidente que nomeia o primeiro-ministro? Não dá uma coisa com a outra. Talvez a quiséssemos para neutralizar a ideia de que um Governo não tem que ter uma maioria, basta não ter contra ele essa maioria, é o problema dos governos minoritários. Por outro lado, há uma lógica da "primoministerialização" - haver candidatos a primeiro-ministro, que também não é o que diz a Constituição, segundo a qual ele é nomeado pelo PR, tendo em conta os resultados eleitorais. Mas a prática já não é essa e esta ideia de candidatos a primeiro-ministro pressupõe que sejam candidatos ao Parlamento. Todavia, de acordo com o nosso sistema, pode ser um primeiro-ministro que não tenha assento parlamentar, porque são os partidos que decidem que deve ser este e não aquele. Há uma confusão grande quanto à compreensão do nosso próprio sistema. Ou seja, é preciso fazer melhor o trabalho de casa.

É preciso melhorar a Constituição?

É preciso ter ideias claras sobre o que se pretende sobretudo.

E quanto às propostas de diminuir ou eliminar o prazo de seis meses de proibição de dissolução da Assembleia logo após a sua eleição ou no final do mandato do Presidente?

Devemos distinguir a espuma do quotidiano das razões que levaram à consagração destes dois limites materiais. São três: nos últimos seis meses do mandato presidencial, nos primeiros seis da Assembleia da República e em estado de sítio e de emergência. Este último não interessa. Na altura havia o medo dos presidentes decisionistas, dos que dissolvem e nomeiam, que inventam partidos; não podíamos banalizar as eleições parlamentares - dissolver uma assembleia logo nos primeiros seis meses? Os problemas mudaram assim tanto nesse lapso de tempo para se ter uma nova Assembleia? É de desconfiar. Por outro lado, evitar o jogo à francesa, através do qual um Presidente pudesse criar uma dinâmica de vitória relativamente à sua própria força partidária com a dissolução da Assembleia. Pergunta-se: paira no ar algum esquema destes? Não estou a ver. Talvez propusesse que se meditasse no encurtamento do prazo para um trimestre antes das eleições presidenciais. Em relação à Assembleia tenho dúvidas: vamos entrar num jogo caríssimo em termos económicos e saturantes para as populações passado três meses ou um mês? Não acho que se tenha tornado uma norma obsoleta.

Mas diz que "é preciso bater na Constituição para ela ser inteligente"...

Porque nem sempre lendo a Constituição se sabe interpretá-la. No fundo, é necessário interpretar bem os princípios e regras nela contidos para assegurar uma aplicação rigorosa e correcta destas normas constitucionais. Os textos são mais inteligentes que os enunciados linguísticos insinuam. Exemplo: relativamente aos poderes do Presidente, foi preciso acontecer o caso do Iraque na altura de Jorge Sampaio, para se "bater" na Constituição e ver o que o Presidente pode fazer. Mas onde continuo a insistir é no regular funcionamento das instituições democráticas.

Que nunca nenhum Presidente invocou...

Tem havido alguma confusão na interpretação da expressão de assegurar o "regular funcionamento das instituições democráticas" no artigo 120º, que diz respeito ao Estatuto do Presidente, é uma sua atribuição. Depois, no art.195º-2, lê-se que o Presidente só pode demitir o Governo "quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições...". O Prof. Gonçalves Pereira chegou a dizer que ela era uma "norma de cortesia para com o Presidente" porque, em rigor, a revisão de 1982 praticamente neutralizou a responsabilidade política do Governo perante o PR, limitando-a a uma responsabilidade imperfeita e difusa. Como se interpreta uma responsabilidade política relativamente ao Presidente, quando este não tem poderes para conformar a orientação do Governo? Qual é o sentido deste regular funcionamento das instituições democráticas? Essa obrigação pertencia ao Conselho de Revolução e pode colocar-se quando? Em casos de estado de sítio ou de emergência (art.19º), quando o Governo não pode funcionar porque está cercado ou exilado, por exemplo. Ou seja, pode ter um sentido muito mais amplo que o jogo politico do Governo-Parlamento-Presidente da República. O enigma é o do 195º-2 - o que ele verdadeiramente quer dizer é "regular funcionamento do Governo", não das instituições democráticas. O que disse sobre o facto de não haver uma maioria, nem sustentabilidade do Governo, deste não conseguir aprovar o orçamento porque não tem apoio maioritário é gravíssimo. Perante isto, no quadro parlamentar e constitucional, o Presidente pode dizer que o Governo não funciona, que o esquema fiduciário Governo-Assembleia não funciona, que o funcionamento do Governo está num impasse. É para isto que o PR tem os poderes de demitir o primeiro-ministro.

O PR podia ter demitido o Governo ao abrigo do art. 195-2?

Era necessário aprofundar. Se o Presidente fizesse este juízo, de que um Governo minoritário no momento atual não consegue responder aos problemas da crise económico-financeiros, das duas uma: ou consegue um Governo de apoio maioritário ou, sendo isso impossível, por dificuldades inerentes ao funcionamento do próprio Governo, obriga a verificar se não é preferível demitir o Governo e refrescar a legitimação para ver se consegue um outro arranjo parlamentar, capaz de fornecer estabilidade e dar sustentabilidade a um Governo mais forte.

O problema é que as coisas podem ficar na mesma. Havendo eleições, pode continuar o mesmo espetro fracionado e o Presidente tem de fazer a mesma apreciação. É um problema em cascata, que cabe sempre a um juízo de ponderação do Presidente. Mas demitir o Governo neste âmbito não é trágico nem ofensivo da democracia. É da governabilidade e do regular funcionamento do Governo que se está a tratar e essa ideia é clarificadora.

É uma proposta de revisão?

Poderíamos clarificar melhor. Sugeria meditarmos sobre o facto que o "regular funcionamento das instituições democráticas" previsto no art. 195º-2 não é a mesma coisa que está no art. 120º, que o que se pretende referir é o regular funcionamento do Governo da República. O que tem estado na opinião pública é esta confusão. Numa situação de manifesta e reiterada incapacidade governamental para obter apoio minimamente relevante na AR, dificultando insuperavelmente negócios de Estado (legislação, aprovação de orçamento), não sendo possível a demissão parlamentar do Governo, dada a impossibilidade de conjugar uma maioria absoluta de censura contra ele, o que pode um Presidente fazer? Assegurar o regular funcionamento do Governo demitindo o primeiro-ministro ou dissolvendo a Assembleia

Isso daria mais poder ao Presidente?

Clarificava. Demite-se um Governo porque está a ser traidor à pátria, porque o PR discorda dele no plano político? Não. Mas se o primeiro-ministro não consegue conversar com o resto do Parlamento, senão são possíveis coligações, como vamos governar? É a situação atual, ninguém as quer. Então talvez legitimasse não só a demissão do primeiro-ministro como a da Assembleia da República. O problema está confuso - por isso é preciso bater no texto e torná-lo mais inteligente.

Estas eleições presidenciais podem ser definidoras?

Só relativamente a um projeto político que abranja partido, presidente da República e maiorias. Pode não resultar, mas é um projeto antigo. Mas basta que o PSD tenha apenas uma maioria relativa para não haver um novo ciclo político. Vai ter estas medidas à mesma e vai acrescentar outras, que vão ter mais contestação.

São indispensáveis as actuais medidas de austeridade?

Devíamos aproveitar para fazer o trabalho de casa em relação à classe política. A Assembleia passar para 200 ou 180 deputados, mudar o mapa eleitoral para assegurar o princípio da proporcionalidade juntando distritos, corrigir as grandes disparidades de proporcionalidade existentes nas assembleias regionais, ir às Câmaras Municipais, juntas de freguesia. Tudo isto são muitos milhões e a classe política ainda não fez o exercício. Eu sei o que é a austeridade, mas não é isto que estamos a fazer, é cortar de forma cega os salários.

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