Saturday, December 25, 2010

CONTO DO NATAL CONTEMPORÂNEO

Por mim, minhas amigas, não havia prendas para ninguém. Toda a gente fala deste consumismo desenfreado mas nada nem ninguém consegue alterar os hábitos que o comércio impinge. Agora é o Natal, daqui a uns dias o São Valentim, ainda há pouco tempo ninguém por cá tinha ouvido falar nele, depois a Páscoa, enfim, ocasiões não faltam para se gastar o que se ganha e o que se pede emprestado. Dizem que é bom para a economia, qual economia?, só se for bom para os chineses, agora, qualquer trapo ou missanga vem da China. O ano passado disse lá no escritório, meninas, vamos acabar com as prendas, não tem jeito nenhum, andamos um mês a correr para as lojas à hora de almoço, gastamos um balúrdio para oferecermos umas pinderiquices umas às outras. Falei com uma de cada vez, está visto, e, estavam todas de acordo. Aliás, uma confidenciou-me que já tinha o problema resolvido: guardava as que recebia de uns para os outros e reciclava-as, só precisa de estar atenta de quem tinha recebido o quê. E mais, tinha prova provada que não era só ela a reciclar. Só a Júlia se mostrou mais renitente. A Júlia adora prendas. Sonha com o Natal todo o ano. Quando lhe falei no assunto, concordou com os argumentos mas não se deu por convencida da bondade da proposta. Afinal, dizia-me ela, andamos um ano inteiro a ratar uma nas outras, o Natal é uma trégua nesta guerrilha miudinha do dia a dia. Custa umas massas? Pois custa. Mas descomprime. Por momentos somos amigas outra vez.
Para falar verdade, a Júlia é a mais belicosa e desconfiada da sala. Mas no Natal, fransfigura-se, é outra.
Se lhe desse para depilar o buço, pelo menos pelo Natal, ficaria irreconhecível, para muito melhor. Mas não senhora. Agarrada a um qualquer preconceito que ninguém percebe, a Júlia não se desfaz do buço.
Enfim, para tornar curta uma história longa, este ano, mais uma vez, apesar da crise, ninguém deixou de correr para as lojas à hora do almoço e a dar conta disso, alto e bom som, não fosse alguma tresmalhada esquecer-se das suas obrigações. Tive, também, de embarcar. Mas reciclei bem mais de metade do que me tinham dado o ano passado, aproveitando a dica da outra.
Mas a coisa este ano deu bronca. Fomos almoçar juntas, todos os anos almoçamos juntas pelo Natal, com o saco das prendas, embaladas com papel decorado e fitinha a condizer. Há uns três anos passámos a colocar todas as prendas num saco maior de onde  a chefe as vai tirando ao calhas e distribui à volta da mesa. Pode acontecer, é verdade, que se receba também alguma coisa que se entregou, mas acabou-se aquilo que já começava a estragar a festa com cada uma a comparar o que valia o que recebia desta e daquela e o valor do que lhes oferecia. Em contrapartida, passámos a levar para casa um saco de cheio de tralha cada vez mais inútil.
Estava toda a gente excitada, e eu cheguei a páginas tantas a arrepender-me da proposta que tinha feito.Tivessem elas ido na minha conversa e aquele almoço seria um frete a caminho da extinção.
Ia a extracção da nossa lotaria privativa a meio, quando a Júlia deu um murro na mesa, não a voltou ao avesso porque era pesada, deu um salto da cadeira, e fugiu pela porta fora. À tarde não foi vista no escritório. Telefonou-se toda a tarde para casa dela, ninguém atendeu.
Quando cheguei a casa contei isto ao meu marido. Disse ele: Pode ser um problema de saúde. Não ligaram para o hospital? Não. Ninguém se tinha lembrado dessa. Liguei para o hospital. Não tinha entrado. Liguei para a polícia. Nenhum rasto. Voltei a telefonar para casa dela. Nada. Estou preocupada. Desde que conheço a Júlia, tentei sempre perceber o que estava por detrás daquela cortina que só se abre pelo Natal. O que é que teria, subitamente, feito explodir e desaparecer a Júlia, e logo no único dia em que a víamos feliz?
Sinto-me bloqueada. Quero perceber e não percebo, quero ajudar e não sei como.
Estou nisto, e o meu marido, insensível como sempre,  lá dentro a chamar-me.
- Sempre me compraste as lâminas?
- As lâminas? Quais lâminas?
- Tinha-te pedido que me comprasses lâminas quando fosses comprar o papel para embalar as prendas, recordaste? Não compraste, não faz mal. A que tenho aqui ainda dá para hoje.
...
Fiquei sem pinga sangue.

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A seguir: "Conto do Natal Antigo"

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