O Ricardo chegou entusiasmado a casa. Vinha do jantar do costume, às sextas, com os amigos, e tinham-lhe aprovado ideia de reabilitação das tradições populares em vias de extinção. É tão imperioso, tinha argumentado ele, lutar pela sobrevivência das tradições como pela conservação das espécies. E deu exemplos: é tão essencial recuperar a matança do porco como repovoar a Malcata de lince ibérico.
Na minha terra, pelo Natal, cada um matava o seu porquinho. Porquê no Natal, Ricardo? Ora porquê, porque não havia frigoríficos naquele tempo e aproveitavam os povos o tempo mais frio do ano para conservarem a carne na salgadeira até à chegada do calor.
De modo que tinha ficado combinado que ele arranjava o porco e pelo Natal iriam todos para a aldeia fazer pela sobrevivência da matança. Pelo Natal, Ricardo? Tem de ser. Foi a única data que se arranjou. Vai ser uma festa em famílias, vais ver.
O Ricardo é um tímido emotivo típico, se lhe dão corda sonha alto até tropeçar. O sogro diz que ele é um produto semi acabado, com um ano de gestação teria saído mais equilibrado.
E o porco? Já tens porco? Perguntaram-lhe no almoço seguinte das sextas quando ele relembrou o compromisso à mesa. O porco arranja-se. E matar? Sabes matar? Matar e fácil, difícil é criar, respondeu o Ricardo e ninguém pôs em dúvida.
Mas a pergunta deixou-o inquieto, pelos vistos não tinha ainda pensado nela. De modo que, logo que chegou a casa, ligou o computador e guglou: Como matar um porco. Desde que a mulher passara a diversificar os cozinhados e a preparar remédios caseiros, o Ricardo passara a contar com a Internet como uma universidade alcançável com uns golpes de teclado.
Havia informação mais que suficiente. Tomou notas, imprimiu fotografias, desenhou esquemas, traçou um plano, atribuiu tarefas, definiu tempos, pela primeira vez na vida o sogro teria de reconhecer que o Ricardo era homem para acabar o que começara.
No almoço seguinte ficaram todos a saber o que competia a cada um. A começar pelo mata-bicho, uma matança que antecede a matança do porco, porque o bicho é outro.
Mas, Ricardo, o dia de Natal não é apropriado, continuava a protestar a mulher. OK, mata-se na véspera.
E a missa do galo? Há quantos anos não vais à missa do galo? Nunca fui. Mas as tradições não se cumprem a meio. Era o sogro a falar pela boca da filha. Concedeu em antecipar para a antevéspera se os outros estivessem de acordo. Estiveram, mas não foi fácil convencê-los. Amarrou-os o compromisso de haver já um porco comprado por conta de todos.
Um fim-de-semana reuniram-se para a lição final tirada pelo Ricardo a power point. Dúvidas? Quem tem dúvidas? Ninguém tinha mas um deles perguntou: Oh! Ricardo, alguma vez mataste um porco?
Matar, não matei, mas vi matar, e a forma convencida como respondeu não deixou dúvidas a ninguém que entre uma coisa e outra a diferença, a haver, não seria grande.
Alugaram um autocarro e sairam de manhã cedo, excitados miúdos e graúdos com a aventura. Chegados á aldeia, onde é que está o porco? Não estava. O Ricardo tinha-se esquecido de prevenir o vendedor da antecipação da data de entrega. E, mais uma vez, a técnica desenrascou o Ricardo. Não se matava nesse dia, matava-se no dia seguinte, logo manhã cedo, como, aliás, manda a tradição. Antes de almoço estava a matança arrumada, teriam toda a tarde para almoçar e conversar, ninguém faltaria à missa do galo por culpa do organizador.
Aproveitaram para montar o teatro das operações, uma mesa antiga a que cortaram as pernas de modo a poder o matador trabalhar sem estar de cócoras nem pendurado no animal. Noutros tempos, explicava o Ricardo, aproveitava-se a manta do carro para deitar o porco, prender-lhe o focinho ao toice e as pernas a um fueiro. Com tanto detalhe empinado, se a confiança no Ricardo só não convencia o sogro é porque o sogro não sabia o genro que tinha.
Na manhã seguinte, depois de uma noite mal dormida porque a excitação continuara elevada, levantaram-se os homens para iniciar as operações mal o sol nascesse. Mataram o bicho com passas de figo, nozes e bagaceira, e foram-se ao porco que já estava a grunhir no páteo da casa, amarrado a uma estaca, desde as cinco da manhã.
Entendeu o Ricardo que a corda era insuficiente para amarrar o bicho à mesa e começou por lhe amarrar as pernas com uma corda mais comprida. Fiasco. O porco, desenvencilhado da corda que o amarrava à estaca, depressa se livrou da amarração feita ao fueiro, depois de terem suado como nunca para o montar em cima da mesa, e fugiu para a rua.
Correram atrás dele, e só conseguiram trazê-lo de volta em peso, que ele, pelo seu pé, recusava-se.
Dá-se-lhe um tiro, e fica o assunto arrumado!
Que barbaridade! Isto é uma matança não é um fuzilamento, ponderou Ricardo. O animal não fez mal a ninguém.... Verdade incontestável.
Reposto na mesa, de tanto balanço a mesa baloiçava à cadência do estrebuchar do porco, ou porque Ricardo não lhe acertou com a lâmina onde devia, ou, como lera na Internet, talvez o porco tivesse o coração em sítio errado, nem o sangue esguichava como previsto nem o animal deixava de rabiar. Ao fim de meia hora lá sossegou. Está morto?
Desceram o porco da mesa e avançaram para a chamusca com caruma. Ricardo tinha rejeitado, por imprópria da tradição, a queima com maçarico a gás, e confirmou a distribuição de tarefas. Tu, aqui no focinho, tu nas pernas da frente, tu nas detrás, tu queimas no trazeiro, ele tratava do resto.
Esfregou Ricardo as mãos de satisfação, o mais difícil estava feito, agora era uma questão de tempo e paciência, ainda que a sabedoria popular previna que o mais difícil é descascar o rabo.
Estava tudo preparado para a segunda fase, quando, por razões que o Ricardo não conseguiu até hoje encontrar na Internet, mal o encarregado do focinho lhe chegou com a caruma, o animal deu um ronco absurdo, pôs-se de pé e cavou dali, outra vez para a rua. Mas não fugiu rua fora. Saltou para um quintal em frente e afogou-se numa ribeira bem cheia que corria apressadamente ali a vinte metros da rua.
Eu, disse o sogro, nunca esperei outra coisa. Mas não conseguiu explicar porquê.
De modo que tinha ficado combinado que ele arranjava o porco e pelo Natal iriam todos para a aldeia fazer pela sobrevivência da matança. Pelo Natal, Ricardo? Tem de ser. Foi a única data que se arranjou. Vai ser uma festa em famílias, vais ver.
O Ricardo é um tímido emotivo típico, se lhe dão corda sonha alto até tropeçar. O sogro diz que ele é um produto semi acabado, com um ano de gestação teria saído mais equilibrado.
E o porco? Já tens porco? Perguntaram-lhe no almoço seguinte das sextas quando ele relembrou o compromisso à mesa. O porco arranja-se. E matar? Sabes matar? Matar e fácil, difícil é criar, respondeu o Ricardo e ninguém pôs em dúvida.
Mas a pergunta deixou-o inquieto, pelos vistos não tinha ainda pensado nela. De modo que, logo que chegou a casa, ligou o computador e guglou: Como matar um porco. Desde que a mulher passara a diversificar os cozinhados e a preparar remédios caseiros, o Ricardo passara a contar com a Internet como uma universidade alcançável com uns golpes de teclado.
Havia informação mais que suficiente. Tomou notas, imprimiu fotografias, desenhou esquemas, traçou um plano, atribuiu tarefas, definiu tempos, pela primeira vez na vida o sogro teria de reconhecer que o Ricardo era homem para acabar o que começara.
No almoço seguinte ficaram todos a saber o que competia a cada um. A começar pelo mata-bicho, uma matança que antecede a matança do porco, porque o bicho é outro.
Mas, Ricardo, o dia de Natal não é apropriado, continuava a protestar a mulher. OK, mata-se na véspera.
E a missa do galo? Há quantos anos não vais à missa do galo? Nunca fui. Mas as tradições não se cumprem a meio. Era o sogro a falar pela boca da filha. Concedeu em antecipar para a antevéspera se os outros estivessem de acordo. Estiveram, mas não foi fácil convencê-los. Amarrou-os o compromisso de haver já um porco comprado por conta de todos.
Um fim-de-semana reuniram-se para a lição final tirada pelo Ricardo a power point. Dúvidas? Quem tem dúvidas? Ninguém tinha mas um deles perguntou: Oh! Ricardo, alguma vez mataste um porco?
Matar, não matei, mas vi matar, e a forma convencida como respondeu não deixou dúvidas a ninguém que entre uma coisa e outra a diferença, a haver, não seria grande.
Alugaram um autocarro e sairam de manhã cedo, excitados miúdos e graúdos com a aventura. Chegados á aldeia, onde é que está o porco? Não estava. O Ricardo tinha-se esquecido de prevenir o vendedor da antecipação da data de entrega. E, mais uma vez, a técnica desenrascou o Ricardo. Não se matava nesse dia, matava-se no dia seguinte, logo manhã cedo, como, aliás, manda a tradição. Antes de almoço estava a matança arrumada, teriam toda a tarde para almoçar e conversar, ninguém faltaria à missa do galo por culpa do organizador.
Aproveitaram para montar o teatro das operações, uma mesa antiga a que cortaram as pernas de modo a poder o matador trabalhar sem estar de cócoras nem pendurado no animal. Noutros tempos, explicava o Ricardo, aproveitava-se a manta do carro para deitar o porco, prender-lhe o focinho ao toice e as pernas a um fueiro. Com tanto detalhe empinado, se a confiança no Ricardo só não convencia o sogro é porque o sogro não sabia o genro que tinha.
Na manhã seguinte, depois de uma noite mal dormida porque a excitação continuara elevada, levantaram-se os homens para iniciar as operações mal o sol nascesse. Mataram o bicho com passas de figo, nozes e bagaceira, e foram-se ao porco que já estava a grunhir no páteo da casa, amarrado a uma estaca, desde as cinco da manhã.
Entendeu o Ricardo que a corda era insuficiente para amarrar o bicho à mesa e começou por lhe amarrar as pernas com uma corda mais comprida. Fiasco. O porco, desenvencilhado da corda que o amarrava à estaca, depressa se livrou da amarração feita ao fueiro, depois de terem suado como nunca para o montar em cima da mesa, e fugiu para a rua.
Correram atrás dele, e só conseguiram trazê-lo de volta em peso, que ele, pelo seu pé, recusava-se.
Dá-se-lhe um tiro, e fica o assunto arrumado!
Que barbaridade! Isto é uma matança não é um fuzilamento, ponderou Ricardo. O animal não fez mal a ninguém.... Verdade incontestável.
Reposto na mesa, de tanto balanço a mesa baloiçava à cadência do estrebuchar do porco, ou porque Ricardo não lhe acertou com a lâmina onde devia, ou, como lera na Internet, talvez o porco tivesse o coração em sítio errado, nem o sangue esguichava como previsto nem o animal deixava de rabiar. Ao fim de meia hora lá sossegou. Está morto?
Desceram o porco da mesa e avançaram para a chamusca com caruma. Ricardo tinha rejeitado, por imprópria da tradição, a queima com maçarico a gás, e confirmou a distribuição de tarefas. Tu, aqui no focinho, tu nas pernas da frente, tu nas detrás, tu queimas no trazeiro, ele tratava do resto.
Esfregou Ricardo as mãos de satisfação, o mais difícil estava feito, agora era uma questão de tempo e paciência, ainda que a sabedoria popular previna que o mais difícil é descascar o rabo.
Estava tudo preparado para a segunda fase, quando, por razões que o Ricardo não conseguiu até hoje encontrar na Internet, mal o encarregado do focinho lhe chegou com a caruma, o animal deu um ronco absurdo, pôs-se de pé e cavou dali, outra vez para a rua. Mas não fugiu rua fora. Saltou para um quintal em frente e afogou-se numa ribeira bem cheia que corria apressadamente ali a vinte metros da rua.
Eu, disse o sogro, nunca esperei outra coisa. Mas não conseguiu explicar porquê.
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