Fui esperar o Major Thompson ao aeroporto numa tarde de finais de Junho de 1975. Fazia calor de Junho em Lisboa, as alterações climatéricas, se já existiam, tinham sido completamente obnubiladas pelas alterações políticas, que estavam ao rubro.
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O Major Thompson não se chamava Thompson, mas eu já não me recordo do nome dele, que era arrevesado. Sei que, para comodidade comunicacional interna, passámos a designá-lo por Thompson, a verdade é que há muitas coisas na vida que não têm explicação plausível, e esta é uma delas.
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Chegado ao local das chegadas, coloquei-me na primeira fila para interceptar o primeiro passageiro que se apresentasse de cabelo ralo e bigode farto e ruivo, tais tinham sido as indicações recebidas do escritório da nossa associada em Londres para caracterizar o Major. Como ele viajava em executiva e transportava apenas consigo uma mala de mão, foi o segundo ou terceiro a sair, e a figura correspondia sem tirar nem pôr às especificações. Era um homem mais baixo e mais entroncado que um inglês normal, entrado nos cinquenta, a pele pintalgada por essas sardas que se acentuam com a idade e atacam mais os ruivos, como era o caso.
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A caminho do Hotel Tivoli, ele foi-me dando algumas referências do seu currículo, eu fui-lhe precisando a razão pela qual o tínhamos chamado a Lisboa. O Thompson, só então fiquei a saber, não era inglês, era sul-africano, há muito radicado no Canadá, e tinha combatido na Segunda Guerra Mundial como piloto aviador ao serviço da RAF. Nos últimos anos quinze anos vinha desenvolvendo actividades como Consultor para assuntos de Defesa, colaborando com a empresa inglesa com a qual mantínhamos uma ligação de representação em Portugal.
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Nós tínhamos sido contactados por um capitão de administração militar da Força Aérea Portuguesa para apresentarmos uma proposta de formação de oficiais superiores em PPBS (Programming, Budgetting System) e o coordenador da área tinha considerado que eu, por ter cumprido o serviço militar obrigatório na administração militar das FAP, era a pessoa indicada para desempenhar a missão. De nada me valeu argumentar repetidamente que não fazia sequer a mínima ideia do que era o PPBS, e muito menos tinha qualquer experiência de aplicação dele.
Tudo verdades irrefutáveis, mas era norma da empresa não voltar as costas ao inimigo, de mais a mais a Força Aérea. Aliás, relembrou-me o Coordenador, não há nada que não esteja nos livros.
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Vivíamos, então, em Portugal uma situação de inversão total das hierarquias, não só em órgãos do Estado mas também em muitas empresas. Na Força Aérea tinham passado a comandar os capitães e outros oficiais subalternos, obedecendo cautelosamente a generalidade dos oficiais superiores e generais. Terminadas as operações nas ex-colónias, sem missões nem massas, os capitães de administração militar tinham entendido reciclar os majores e coronéis nas artes de bem gerir sem ter dinheiro. E a algum deles terá ocorrido o PPBS como instrumento mais adequado para a ocasião.
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Tinha recorrido à Biblioteca e, o Coordenador tinha razão, havia um pequeno tratado sobre PPBS e um outro sobre assunto parecido: "Racionalization des choix budgétaires". Com eles tinha preparado uma exposição, apoiada nos mais requintados meios audiovisuais da época, acetatos retro projectados, para ser servida em quatro doses, uma por dia de segunda a quinta, na sexta-feira teríamos a competente conferência sobre o assunto de um experimentado consultor em PPBS.
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De segunda a quarta coloquei o PPBS nos píncaros perante uma audiência atenta e subjugada, constituída em parte por oficiais que eu tinha conhecido uns bons anos antes. Fui brilhante, admito-o sem modéstia. O PPBS, na pior das hipóteses, estaria a governar a nossa Força Aérea dentro de meia dúzia de meses;
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Estava a acabar o relato do que tinha ocorrido naqueles entusiasmantes quatro dias, quando chegámos ao Tivoli. O Major fez o check-in, e antes de subir para o quarto, combinámos jantar daí a uma hora no magnífico restaurante do hotel.
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Apreciada a ementa e feitas as escolhas, o Major olhou para mim alguns instantes, e disse-me:
Sr. F., ouvi com toda a atenção o que me disse e, pelo que me disse, eu não faria melhor. Sinceramente. Acontece que o PPBS, uma ideia que Mcnamara levou para o Pentágono quando foi Secretário da Defesa, foi abandonada logo que ele deixou o cargo. É, como pôde perceber durante o seu trabalho de recolha e preparação da sua exposição, uma metodologia complexa que quadra dificilmente com a realidade que passa pelas repartições e pelos quartéis.
Percebi que os seus amigos da Força Aérea se encontram em crise, mas isso acontece sempre que termina uma guerra. É natural: não se importunam os aviões por ficarem em terra por falta de missões ou de meios para pagar o combustível. Mas os homens ficam nervosos por lhes faltarem desafios. Claro que o mais normal era dispensá-los e reduzir o efectivo. No caso da Força Aérea, os pilotos não terão grandes dificuldades, antes pelo contrário, em continuar a voar. Mas os burocratas, os seus amigos da administração militar, sem pilotos a voar não têm com que se entreter, e inventam. A falta de meios de pagamento que o país defronta poderia impor uma redução, mas não impõe. Nunca nenhum país resolveu os seus problemas de sobredimensionamento da função pública cortando-lhes no orçamento. A redução vai observar-se mas a muito longo prazo, se as coisas correrem bem. Tendo em conta a actual situação política em Portugal, não me admiraria nada que se agravasse ainda por algum tempo, reclamando os militares mais meios em tempos de paz do que em tempos de guerra. Não seria inédito. A situação só se inverterá com a democratização do país e a criação de condições para definir com realismo as atribuições das vossas forças armadas em tempo de paz. Enquanto não for respondido pelo país para que quer forças armadas e que forças armadas, estas continuarão a marcar passo e a comprar material por uma questão de inércia e interesses pessoais.
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No dia seguinte apresentei-me à turma militar ao lado do Major. Feitas as apresentações, Thompson pigarreou e começou por dizer:
Venho aqui a convite dos meus amigos portugueses para vos falar da minha experiência com a aplicação do PPBS. Lamento desiludir-vos, mas não tenho nenhuma.
Depois disse-lhes a eles, temperando num ponto ou noutro, o que me tinha dito a mim na véspera. Ninguém ficou agastado. Afinal estávamos ali todos convocados por um equívoco.
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Recordei-me deste episódio, com mais de trinta anos, a propósito de uma troca de ideias acerca da melhor forma de redefinir o perímetro de atribuições do Estado.
Já me ocorrera, há tempos, a propósito dos aviões que foram vendidos sem nunca terem sido desencaixotados e, mais recentemente, de uma outra notícia acerca do custo de formação de um piloto para a Força Aérea (aproximadamente 2,5 milhões de euros) que, em muitos casos, ao fim de oito anos se mudam, sem armas nem bagagens, para a aviação civil.
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Tudo pago, directa ou indirectamente, com os impostos que pagamos.
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