Moramos aqui, … há quantos anos Mary? a
Mary é que tem todas as datas apontadas.
Viemos para aqui em 60, em Setembro de 60,
esteve um dia muito quente, à noite, estivemos à janela a saborear uma brisa
fresquinha antes de nos deitarmos … e era a nossa primeira noite …
A nossa primeira noite na nossa casa; já
nos tínhamos deitado algumas vezes…
E o que é que isso interessa agora? foi a
nossa primeira noite nesta casa, ponto final.
Foi a nossa primeira noite, sim senhor, a
Mary tem boa memória, antes de nos deitarmos estivemos à janela a apanhar
fresco. Viemos para aqui em Setembro de 60, portanto, portanto, chegando a Setembro, se lá chegarmos, é sempre bom pôr esta ressalva porque o bicho anda
aí por todo o lado, chegando Setembro celebraremos 61 anos na Charles Street; …
parece mentira termos chegado aqui há 61 anos …
Chegarmos, não; tu chegaste; quando eu
nasci já a minha família morava na Charles Street, noutra casa, mas na Charles
Street; eu sempre residi na Charles Street, nunca residi noutro local qualquer.
Residimos várias vezes fora …
O que é que queres insinuar com isso?
Nada, nada, foram residências ocasionais …
de turismo, por exemplo, em Paris, Londres, Roma, … viajámos muito, … mas concordo
com a Mary, residir, residir mesmo, na comum acepção da palavra, a Mary nunca
residiu noutra rua, eu é que resido aqui apenas há 60 anos, 61 em Setembro, se
lá chegar. Agora é que não saímos daqui, nem para ir à rua; o que nos vale são
as duas janelas que dão para a Charles Street; passamos grande parte dos nossos dias a
olhar para o que se passa na rua; mas agora não se passa quase nada, parece que
o mundo parou; quem a viu e quem vê agora Charles Street! Dia e noite, sempre
acordada! agora dorme e só de vez em quando parece querer mexer-se … é muito
triste.
Não se vê ninguém na rua mas mesmo assim
ele não quer ir até lá abaixo dar uma voltinha ao quarteirão, só para que as
pernas não se esqueçam como se anda …
Tenho medo, confesso que tenho medo, com a
nossa idade, se o bicho atira sobre nós é tiro e queda.
Queda nenhuma, levamos máscaras, chegando
a casa lavamos as mãos, não passa ninguém na rua, onde está o perigo?
O perigo está em ti, Mary, lamento dizer
isto, mas a Mary é um perigo …
Eu sou um perigo?
És, és, se te apanhas lá em baixo, na rua,
nunca mais te ponho a vista em cima … quero dizer, tenho receio que tu nunca
mais pares de andar em toda a zona, és mesmo muito capaz de dar a volta toda à
cidade; não seria a primeira vez.
A primeira vez, o quê?
Que daríamos a volta toda à cidade, num
dia inteiro; quantas vezes não saímos às oito e voltámos às oito, vinte quatro
horas, sem parar? levávamos sanduíches e água …
Só doze horas, eram doze horas, não exageres;
e tu, levavas cervejas.
É verdade, eu carregava com as cervejas, a
Mary com as garrafas de água; no Verão bebíamos muito, fazíamos reabastecimento
nas Deli que encontrávamos pelo caminho.
Não percebo por que é que agora não podemos
fazer o mesmo.
Não é verdade o que eu digo? se vamos até
à rua, a Mary não se fica pela Charles Street, não pára.
E qual é o perigo?
O perigo é muita gente andar sem máscara,
não respeitar as devidas distâncias, passarem os atletas urbanos a bufar para
nós, a espalhar o bicho; a Mary ainda não percebeu que há muita gente que quer
ver os velhos todos mortos;
Isso é uma perspectiva doentia, cínica, …
Será cínica por parte dos que se julgam
imortais.
E tétrica da tua parte porque, já alguém
disse, que se morre cada vez que se pensa na morte.
Tu nunca pensas?
Eu? nem parece que nos conhecemos há mais
de sessenta anos; vives aterrorizado, não vives, ainda não percebeste isso?
Fomos apenas uma vez à rua depois que tudo
isto começou …
E tu não paravas de dizer a quem passava:
Ponha a máscara! Ponha a máscara! Ponha a máscara! …
Só dizia a quem passava sem máscara. Não
disse isso a muita gente.
Já não te lembras, parece que já não te
lembras, mas um dia, foi logo ao princípio, saímos durante uma hora, se tanto, ele a
agarrar-me para voltar para trás, quase me deitava ao chão, fiquei muito
preocupada com a saúde mental dele, fiquei mesmo preocupada, eu quase a cair e
ele a continuar a gritar, ponha a máscara! ponha a máscara!
E ninguém punha …
Dois ou três tiraram a máscara do bolso ou
puxaram para cima a que tinham a cobrir-lhe o queixo; quando chegámos a casa,
estava ele nervoso e cansado, só se acalmou com um chá que lhe dei com um
calmante dissolvido sem ele saber; dormiu toda a tarde, ficou cliente do chá
desde então, mas eu agora já não dissolvo calmante nenhum, se ele quiser tomar,
toma, se não quiser não toma; quando não toma, passa a noite a voltar-se de um
lado para o outro; o que me vale é ter bom feitio e não acordar com tanto
movimento.
Lá isso é verdade, a Mary tem muito bom
feitio, sai à mãezinha dela, era uma santa paciência, a minha sogra, o meu
sogro também era a calma em pessoa; mas dinâmico, foi ele que construiu grande
parte desta zona …
Quem começou foi o meu avô, aliás, quem
começou mesmo na actividade foi o meu bisavô; já não o conheci, mas o meu pai
tinha uma enorme admiração pelo avô; muito determinado, muito organizado, muito
sem medo, acredito que saio a ele.
Não sei se ele hoje seria tão inconsciente
para descer à rua e andar por aí a desafiar a sorte de passar incólume sem
pensar na possibilidade de vir a espernear num ventilador …
Sobreviveu à pneumónica.
Muitos sobreviveram, não foi só ele, o teu
bisavô e o teu avô; muitos também sobreviverão a esta pandemia, mas há muita gente a
morrer.
Sempre houve e continuará a haver.
Não é o que eu digo? a Mary se vou na
conversa dela e descemos à rua,
desaparece-me da vista.
E então? Que mal viria ao mundo se eu
desaparecesse?
Estás a ser pouco simpática, sabes muito
bem que não conseguiria sobreviver sem ti.
Já tinha desconfiado; não é o bicho que te
assusta mas a falta que posso fazer-te; sou o teu seguro de vida.
Sempre foste; sabes bem que nunca
sobreviveria se, por um mau acaso da vida, ficasse sem ti; morreria logo de
desgosto.
Ninguém morre de desgosto.
Eu morreria de desgosto se alguma vez
deixasses de estar comigo.
É por isso que não dormes no quarto ao
lado e passas as noites às voltas na cama; só não me acordas mais vezes porque
durmo bem, tenho a consciência tranquila.
Eu também não tenho pesos na consciência,
nunca tive, mas sonho muito; tu não sonhas?
Se sonho, não me recordo do que sonho;
tanto quanto julgo saber passa-se o mesmo com as pessoas normais.
Eu durmo pouco, nunca fui grande
dorminhoco, só raramente me levanto depois das sete, mas já me tenho levantado
às nove e até às dez se a Mary está ainda a dormir a essas horas, só para não
perturbar-lhe o sono; se a insónia me
põe picos na pele, saio da cama e vou ler qualquer coisa na sala só para não a
acordar; outras vezes, deito-me a meio da noite na cama do outro quarto, e aí
alargo os braços e as pernas, fico vitruviano, e adormeço …
Devias fazer isso todas as noites; não
percebo porque não fazes isso todas as noites …
Porque me faz falta o calor da tua
companhia.
Tens medo que eu abra a porta e me ponha a
andar …
Não é bem isso …
Mas quase.
Talvez, inconscientemente, sim.
Esta noite dormiste na outra a cama; não
sentiste a minha falta.
Senti, senti muito, até porque fui
acordado por alguém que batia à porta. Tinha adormecido, talvez duas horas
antes, saí da nossa cama eram cinco e meia da manhã e ainda não tinha dormido
um minuto sequer; acordei estremunhado por aquele bater tão insólito, nunca
tinha acontecido; levantei-me. Coloquei logo uma máscara cirúrgica, made in
China já se sabe, exportaram para cá o bicho, agora fazem negócio com a
exportação de máscaras, ventiladores, gel, tudo o que é necessário mas que não
nos tira esta carga de medo que nos meteram em cima. Mal entreabri a porta
entra-me na casa, sem autorização minha, uma mulher, na casa dos oitenta, não,
não teria ainda oitenta, mas não andaria
longe. Depois de ter recuperado do meu espanto perante aquela invasão privada
perguntei-lhe qual era a ideia dela;
Venho para a vacina?
Para quê?, perguntei sem ter percebido o
que ela tinha dito.
Para a vacina, respondeu ela muito
empertigada, como quem quer dizer, venho para a vacina e o senhor não tem nada
com isso.
Deve estar enganada …
Não, estou não, recebi sms a indicar-me
que hoje é o meu dia para ser vacinada …
Talvez seja, mas não aqui.
No sms indicam o dia, a hora e o local
aonde devo dirigir-me. Quer ver? Tirou o telemóvel da mala, mensagens, mensagens,
aqui! leia.
Li … às oito a.m., Charles Street, 39,
5º., não há dúvida, é essa a indicação da mensagem, mas é erro, um erro
lamentável porque aqui não há serviço nenhum de vacinação; gostaria que
houvesse, já teria aproveitado, mas não é aqui, aqui é a minha casa, minha e da
minha mulher; lamento, faça o favor de sair.
Saio nada; quem é o senhor para me mandar
sair?
Antes de mais, ponha a máscara! Ponha a máscara! já lhe disse; sem
máscara, é muito possível que já me tenha infectado.
Eu? O senhor não deve estar bem do juízo;
Quem é o senhor para me mandar pôr a máscara?
Nesta altura, eu já estava começara perder
a estribeiras. Quem sou eu? Sou o Arnold Schwarzenegger;
diz-lhe alguma coisa o meu nome? Não, já vi que não; ponha a máscara! e
ponha-se na rua! disse e empurrei-a para a saída. Empurrei-a para a porta, mas,
eu não queria acreditar, a porta ficara aberta e, a tentar convencer a mulher
que entrara primeiro, não reparara que tinha entrado gente que me enchera a
casa, certamente, todos convocados pelo mesmo irresponsável sms.
E toda aquela multidão, sem máscara!
Ponha a máscara! o que é que o fez vir até
aqui?
Mensagem, sms, Charles Street, 39º., 5º.
Só a hora era diferente, pelos vistos teriam chegado todos ao mesmo tempo para
não perder a vez.
Ponha a máscara! e saia!
Ponha a máscara! e saia! Já!
Ponha a máscara! e saia! Já! Já! Já!
Ponha a máscara! e saia! Já! Já! Já! Já!
Estava a ficar exausto, talvez até já
estivesse infectado com tantos aerossóis a dançar no ar.
Um após outro iam saindo; é melhor irmos
saindo, ainda dá alguma coisa má ao velho e dirão que a culpa é nossa.
Quando pensava que já tinha metido aquela
invasão na rua, reparo que no sofá do canto que temos à esquerda do hall de
entrada, continuavam em amena conversa, como se nada se tivesse passado ali,
duas velhas. ... Sem máscaras!
Ponham as máscaras!
Levantaram-se, espantadas, as máscaras?
nós estamos aqui para a vacina não precisamos de máscaras para nada …
Precisam, precisam, e façam o favor de
sair porque vieram ao engano; receberam uma mensagem, eu sei que receberam uma
mensagem, mas não é aqui o local de vacinação, mensagens erradas, percebem as
senhoras? Aqui, é a minha casa.
Olharam desconfiadas para mim, só
perceberam que tinham mesmo que sair quando lhes berrei, Rua! Rua! Rua! E ponham
as máscaras! Irra!
Bati com a porta, quando me volto, reparo
que está sentado a uma secretária, um fulano, ainda jovem, alheado a bater no
teclado de um PC portátil.
O que é que está a fazer aqui?
O meu trabalho, responde ele sem olhar
para mim; vim para fazer o registo das vacinações aqui.
Já percebi. Ponha a máscara! Ponha a
máscara, quero falar consigo, mas, primeiro, ponha a máscara!
Tirou do bolso, com muito custo gravado na
cara, uma máscara, aspecto machucado, e
disse que estava ali porque recebera indicação por sms para se deslocar
à …
Charles Street, 39 … já sei, já sei, não precisa
de mostrar o sms; é engano, esta casa é minha, não está à disposição para
vacinações do público. Faça o favor de sair!
Tenho de falar para o centro de saúde …
Pois tem, mas tem de telefonar lá fora,
não quero libertação de mais aerossóis aqui. Com tantos que já entraram, penso
que já estou infectado.
Remédio santo; o escriba de serviço
agarrou no portátil e saiu parecia um foguete a caminho de Marte.
Uf! Acabou-se, finalmente, o pesadelo.
Mary! Mary!, a Mary não estava no quarto,
nem no outro, nem no outro, nem em nenhuma das quatro casas de banho do
apartamento.
Mary! Mary! Mary! A Mary não me respondia.
Oh! Céus! Que é feito da minha Mary?,
implorei, as lágrimas a soltarem-se-me, incontíveis.
A Mary aproveitou a confusão para sair e
deve andar lá em baixo a saborear o ar fresco na solidão da rua. Saltei até à
janela, estava uma manhã linda, lá em baixo não passava ninguém. Pensei, vou
também sair, tenho de encontrar a minha Mary, a força da minha vida, sem ela, o
que sou eu?
Coloquei a máscara, revesti-me o mais
possível de roupa, com óculos não haveria polegada de pele minha exposta aos
aerossóis.
Aproximei-me da porta, ouvi um alarido do
lado de lá. Discutiam.
Como é possível? Avisam-nos para vir aqui
para a vacinação e a morada está errada? Quem é que acredita nisso.
Eu não.
Nem eu.
Eu ouvia muito distintamente aquela
multidão na escada, espreitei pelo buraco da fechadura, calculei que estaria
congestionada até à entrada do prédio; tentar atravessar em sentido oposto
aquela multidão embriagada pela oportunidade de uma injecção que os livrasse da
peste seria um suicídio. Fui novamente até à janela, e a rua convidou-me; não
tinha alternativa, ou saltava e talvez me salvasse para encontrar a minha Mary
ou ficava ali a morrer de desespero se os aerossóis não me dessem o golpe de
misericórdia.
Olhei, mais uma vez para a rua; havia lá
em baixo uma vegetação rasteira que as chuvas de inverno tinham feito crescer o
suficiente para, talvez, me proporcionarem o milagre de um colchão de
amortecimento da aterragem.
Acreditando nesse milagre, lancei-me do
peitoril da janela, os pés voltados para o solo;
Oh! azar dos azares!, ocorreu-me a meio da
queda a dúvida de ter ou não ter fechado a porta e retirado a chave.
Acontece-me frequentemente: Mary!
Diz!
Recordas-te se eu terei fechado a porta e
tirado a chave?
Na dúvida, fiz a pressão possível para
inverter a queda, e acreditem, fui bem sucedido; como vinha de costas, passei o
parapeito da janela com um salto à Dick Fosbury! E caí em cima de uma multidão
que, entretanto, se apinhara na minha sala.
A verem um
fantasma, só poderia ter-lhes parecido um fantasma, a entrar do céu pela
janela, e ainda por cima de costas, fugiram aterrorizados, ficou a sala vazia
em três tempos.
Mary! Mary! Mary!
O que é que se passa Arnold?
Temos Voltaren cá em casa?
Caíste? Onde é que caíste?
Depois explico-te; agora preciso que me
ponhas Voltaren nas costas e me deixes dormir mais um pouco.