Sunday, October 03, 2010

A CRISE É DUPLA

Ainda não conhecemos os detalhes, e é neles que o diabo se refugia.
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As linhas programáticas do Governo para a redução do défice em 2010 e a proposta de Orçamento para 2011 são conhecidas apenas nas suas linhas gerais. Até à aprovação do OE 2011 (também a mim não me passa pela cabeça que o OE 2011 não passe na AR com a abstenção do PSD) o executivo terá que esclarecer a derrapagem observada na despesa pública desde Julho, altura em que o PEC foi aprovado com o acordo do PSD, e conhecidos os limites das medidas anunciadas esta semana.

Admitamos que, esclarecido o que há a esclarecer, o OE 2011 é aprovado e o Governo se mantem, apesar do abanar da corda bamba pelas oposições sindicais e políticas para estatelar o funâmbulo, até meados do próximo ano, ou mesmo até ao fim da legislatura. Admitamos ainda que chegamos a 2013 e o défice não ultrapassa os miríficos 3% do PIB. Ultrapassámos o cabo das tormentas?

Não, lamentavelmente, não. Para além das responsabilidades assumidas com as PPP, que começam a vencer-se a partir de 2013, as debelidades estruturais de grande parte do tecido económico português subsistem. E acerca da dificuldade de coabitação dessa realidade, que não pode ser radicalmente alterada senão a muito longo prazo, com uma moeda forte (o euro abriu nos mercados asiáticos novamente em subida contra o dólar (1,381) e mesmo contra o franco suíço (1,346) num contexto aparentemente pouco favorável à apreciação da moeda única europeia), nenhuma medida foi ainda sequer alvitrada.

E, no entanto, como várias vezes já anotei neste caderno, se a moeda única favoreceu desde a criação do SME os sectores de bens e serviços não transaccionáveis, conduzindo inevitavelmente ao crescimento do défice e da dívida externa, se nada for alterado as consequências continuarão a ser as mesmas. 

Um dos aspectos mais salientes das medidas duras que o governo se propõe, tardiamente, executar é a redução dos salários de grande parte dos funcionários públicos. E será essa medida que provocará maiores perturbações sociais, a começar pela greve geral anunciada pela CGTP para 24 do próximo mês. 
Independentemente da razoabilidade das reacções que essas medidas vão despoletar, é inequívoco que, não podendo a economia ajustar os seus factores de custo à competitividade que os mercados lhe exigem através da depreciação da moeda, o ajustamento só pode realizar-se pelo ajustamento dos salários à evolução da produtividade. 

Dito de outro modo: É imprescindível um contrato social que estabeleça regras de uma política de rendimentos e preços que assegure a recuperação da competitividade perdida de alguns sectores da economia portuguesa. Os salários, num contexto de moeda forte, poderão subir ou descer. Mas, para além dessa mudança de paradigma, é necessário que os sectores não transaccionáveis deixem de ser dizimados e os não transaccionáveis protegidos pela moeda única.

Como é que isso se faz?, é a questão que, estranhamente, não vejo colocada nem por políticos nem por académicos.

2 comments:

António said...

Outra vez a competitividade?
Como é que você quer que meia duzia de pessoas que realmente trabalham chegue para contrabalançar as centenas de milhar que nada produzem, que não seja sacar dinheiro a essa meia duzia para se fazerem pagar em chorudos ordenados e benesses?
Esqueça a produtividade, nunca mais lá vai. Tente outra coisa.
A greve geral, vem tarde e não serve para mais nada que não seja complicar a vida à tal meia duzia atrás mencionada e poupar um dinheirão em ordenados, alguns quilos de clips, resmas e demais materiais estacionários que não serão roubados nesse dia.
Como as luzes nunca se apagam nem se desligam os computadores, nem na luz se poupa.
Se esta malta prestasse para alguma coisa, partia isto tudo, mas como conscientemente sabem que são demasiado bem pagos para o pouco que fazem (já que nada produzem)entendem que o melhor é estar quietos e calados.
Fazer uma greve um mês e tal depois de levarem no pêlo, é só um pretexto para preparem um belo farnel, umas bandeirolas e marcar viagem no autocarro.
Não serve para mais nada. Mais um pic-nic. Mas sempre se poupa no estacionário nas chamadas do telefone de secretária, alivia-se um pouco o tráfego de internet com menos mails e consulta aos blogs e sites do costume.
Mas não há azar, que no dia seguinte é tudo a dobrar, inclusive umas horitas extra para pôr as tralhas em dia.
Mas mesmo que isto melhorasse alguma coisa não ia dar em nada, que assim que isto melhore, arranja-se nova crise.Por causa dos mercados, das feiras, ou de outra coisa qualquer.
A gente acredita em tudo.
Não é verdade?

rui fonseca said...

"A gente acredita em tudo.
Não é verdade?"

Da caricatura que desenha ressaltam
muitos traços da realidade, reconheço.

Mas o meu entretenimento não são caricaturas, para as quais me falta jeito, mas uma, ainda que pobre, reflexão sobre o nosso destino colectivo.

Neste apontamento quis somente referir que, se a entrada no euro, para além das vantagens que nos trouxe, nos encaminhou também para opções que nos envididaram até ao insuportável, é forçoso que a sociedade se organize de modo a minimizar os custos da coabitação com uma moeda forte.

E admira-me que nem os políticos nem os académicos abordem o problema com a população. Porque é fundamental que a população perceba bem os motivos que nos truxeram a este beco e o modo de poder retroceder sem voltar a embicar nele.