A primeira imagem que me ocorre quando penso na Páscoa é o renque frondoso de estrepeiros que bordejavam os terrenos que ficavam em frente da nossa casa. Por esta altura do ano debulhavam-se em flores de uma perfeição infinita e de um perfume ameno imperecível. Havia quem de passagem cortasse um ou outro ramo, uma colheita que eu considerava, calado e desesperado, um roubo descarado duma peça daquele quadro lindo que a natureza anualmente nos oferecia. Não perduravam muito as flores dos estrepeiros: após uns breves dias, se o vento levantasse, esperava que o Verão pintasse de vermelho as suas bagas. Pelo São João, cresciam à sua frente as alcachofras e à noite bailavam no ar nuvens de pirilampos ao som da música dos grilos e dos ralos.
Crataegus laevigata é uma árvore da família Rosaceae. Sinonímia: corníolo, cratego-pirliteiro, escalheiro, escambrulheiro, escrambulheiro, espinha-branca, espinheiro-alvar, estrepeiro, pilriteira, pilrito, pirliteiro, carrapiteiro. Sinonímia botânica: Crataegus oxyacantha
No Domingo de Páscoa, abria-se a porta ao Senhor e a parte da comitiva pascal: o sacerdote, o sacristão que transportava o Crucificado, ficavam à porta dois ou três ajudantes para recolherem a côngrua. A Mãe atapetava o acesso entre a rua e a casa de ramos de alecrim e loureiro, e quando a sineta brandida pelo Sacristão se ouvia por perto, os filhos eram convocados, o Pai não comparecia mas entregava aos ajudantes o tradicional.
O Pai nascera quando os ventos da República varriam muitos dos privilégios do clero, era temente a Deus mas "não podia com a padralhada" e recusava idolatrar "santos de pau carunchoso". Mas, por paradoxal que pareça, havia entre o Pai e o Padre Praça, uma grande empatia que eu atribuia à medida de honradez com que cada um deles avaliava o carácter do outro. O Padre Praça andaria na casa dos sessenta anos, com uma estatura física e moral impressionante. O Pai, apesar da aversão à classe eclesiástica em geral, estimava o Padre Praça pela sua cordialidade e coerência com os votos. Nele, nunca poderia ter Camilo forjado prosa para um dos seus romances.
Por outro lado, o Pai, não sendo um artista no arco era um amador apaixonado pelo seu baixo, adorava tocar nos jubileus, designação local para todas as celebrações litúrgicas com acompanhamento musical. Nessas ocasiões entrava para o coro com a maior alegria na alma desde que a orquestra do Ateneu se tinha dissolvido e o baixo ficara sem outra oportunidade para se fazer ouvir.
Entre o Padre Praça e o Pai havia apenas um pequeno contencioso : o Pai não era casado pela Igreja, uma situação que a benevolência do Padre Praça não repreendia mas que ia, sempre que a ocasião proporcionava, avisando:
- António, tens de te casar se não vais para a moirama! O António ouvia, ria e respondia:
- Sou casado, Padre. Sou casado pelo civil, mas sou casado. Vale o mesmo, não?
- Não vale, não. Assim, vais para a moirama.
Naquele Domingo de Páscoa, cumpriu-se a tradição da casa. Compareceram a Mãe e os filhos, o Pai entregou a côngrua aos ajudantes, e convidou o padre para entrar na adega e beber um copito.
- Tinto, não, António, só se for um cálice de jeropiga, mas mal cheio.
Bebida a jeropiga, voltou o Padre Praça à carga: Tens de te casar, António, se não, vais para a moirama.
- E onde é que isso fica, Padre?
O Padre Praça olhou o ar inocente do rebelde, sorriu, e saiu para se incorporar no cortejo que já estava atrasado.
2 comments:
Rui,parabéns por este belo texto,recheado de emoção e também de compreensão.Boa Páscoa
Muito obrigado, Francisco.
Um forte abraço
Rui
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