Saturday, August 08, 2009

A JUSTIÇA SEGUNDO GAROUPA

Aproxima-se o final da legislatura. Em 2005, a Justiça era uma das áreas prioritárias de qualquer programa reformista. Em 2009, continua a ser. O Governo diz que a situação não se agravou. A oposição diz que sim. Pouco interessa. O que é claro é que não existem, nem se vislumbram, melhorias significativas que tenham qualquer impacto na vida das empresas e do cidadão. No cenário mais optimista, a crise da Justiça não se agravou. Sabe a pouco. Isso mesmo confirma o estudo da SEDES publicado na semana passada.Em abono da verdade, parece-me que o actual Governo tem o mérito de ter, pela primeira vez, enfrentado o problema da Justiça como ela se encontra, em verdadeira crise. Algumas das medidas tomadas foram positivas, e nem tudo são fracassos. Mas, na minha perspectiva, o Governo errou no diagnóstico. Continua a partilhar da ideia do que o nosso ordenamento jurídico e a nossa organização judiciária são essencialmente adequados, necessitando, isso sim, de correcções na sua gestão e na sua aplicação.Acontece que o problema é estrutural. O nosso modelo não funciona nem aqui, nem em lado nenhum. Simplesmente, o modelo judiciário e judicial de tradição francesa é incapaz de adequar-se ao mundo económico e social em que vivemos hoje. Em Portugal, em Espanha, em Itália ou em França. É um modelo caduco e ineficaz, gerador de ineficiência, de iniquidade e de aberrações. Infelizmente, o Governo inspirou-se precisamente naquelas experiências que tentam mitigar a actual crise sem enfrentar o problema estrutural. E os resultados ao fim de uma legislatura não são diferentes do que podemos observar naqueles países que adoptaram as mesmas soluções. Muito pouco ou nada. Resolver o estado verdadeiramente dramático em que se encontra a Justiça portuguesa, agora também em descrédito absoluto como mostra o estudo da SEDES, implica abandonar o modelo tradicional. Temos de olhar para a Holanda, para os países escandinavos, para o Japão ou para a Coreia. Não se trata apenas de ideias e soluções novas. É reformar as estruturas e os fundamentos do nosso ordenamento jurídico e da nossa organização judiciária. Para além de mudanças muito profundas na feitura das leis (que o actual Governo nem conseguiu dar os primeiros passos), deixo três prioridades já bem experimentadas e com resultados muito positivos em países que, partindo de uma tradição civilista como a nossa, enfrentaram a situação calamitosa em que estamos. Comecemos pela separação entre a progressão na carreira judicial e hierarquia dos tribunais. Isso permitira, entre outras coisas, reduzir a prazo, e de forma muito significativa, o número de magistrados nos tribunais superiores (para um terço do actual) sem prejudicar as expectativas legítimas de progressão na carreira.A segunda ideia seria introduzir uma organização e governança da judicatura inspirada nos holandeses ou nos escandinavos. Inevitavelmente, teria de existir um compromisso de encerrar o CEJ num prazo relativamente longo para permitir a transição para o novo sistema. Poder-se-ia, por exemplo, limitar o acesso às magistraturas com formação do CEJ a 50% dos novos magistrados judiciais no final da próxima legislatura, e o encerramento do CEJ no final da seguinte legislatura. A "contaminação" da judicatura pelos "vícios" da advocacia e de outras profissões jurídicas deixaria de ser um problema para passar a ser uma virtude a cultivar. Ao mesmo tempo, finalmente seria uma realidade a total separação da magistratura do Ministério Público (deixando a prazo de ter o estatuto oficial de magistratura para ter o equivalente ao que existe naqueles países). Finalmente, num Estado moderno, democrático e responsável, parece-me interessante propor o fim da jurisdição administrativa. Desde logo, a curto prazo, eliminar os tribunais superiores administrativos e fiscais, passando a secções de contencioso administrativo e fiscal nos tribunais superiores ordinários. Também eliminar o Conselho Superior desses tribunais. Em contrapartida, poderia fazer sentido um tribunal semelhante à Audiência Nacional espanhola para certos delitos graves.Muitos vão insistir que estas propostas violam todos os fundamentos constitucionais e jurídicos do nosso ordenamento. Evidentemente que sim. Pretende-se um novo modelo. Mudar de vida na Justiça requer uma revisão constitucional que definitivamente ponha à prova quem diz que quer realmente fazer a reforma da Justiça. O pior que nos pode acontecer é o próximo governo aplicar mais do mesmo. E se andam convencidos de que o novo mapa judiciário resolve tudo, cá estaremos para ver os brilhantes resultados dentro de cinco ou dez anos.Para quem persiste no actual modelo, com os remendos que achem necessários, fica o desafio. Onde andará um exemplo, um que seja, onde o nosso modelo actual seja eficiente, justo, equitativo e com credibilidade? Onde não haja excessiva morosidade, onde a qualidade dos tribunais seja a norma, e onde a cidadania e os agentes económicos sintam que a Justiça corresponde às suas necessidades?
Nuno Garoupa - Professor de Direito da University of Illinois / JNegócios online

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