ALOJAMENTO LOCAL
… Saiu, agora mesmo, daqui; admira-me como não te tenhas cruzado com ele no caminho; quero dizer, admira-me e não me admira, para quem não esteja habituado a circular nestes corredores pode ter voltado à esquerda quando devia ter voltado à direita, e agora anda à procura da saída habitual …sim, tem cá vindo todos os dias desde que fui internado; chega, continua a trazer-me o mesmo, sempre bananas, meia dúzia, só como uma, ele come outra, tem mais fé nas bananas que no rol de medicamentos que os médicos lhe receitam; deixa as quatro que sobram, insisto que as leve, não leva, que as coma eu se quero ficar fino e sair daqui; mas logo acrescenta que o melhor não é sair daqui mas ficar fino e ficar aqui: tratamento de luxo, hotel de cinco estrelas, assistência permanente, refeições bem melhores do que as que temos nos sítios do costume…
- E pode-se entrar facilmente? Se eu viesse para aqui teríamos todo o tempo para conversar, que te parece?
- Parece-me bem, mas tens de ter em conta que isto é caro … sei que tens uma massas mas também sei que nunca entraste em despesas sem saber a quanto monta cada uma…
Estávamos neste ponto da conversa quando a enfermeira apareceu para o registo da situação clínica, e ficou de boca aberta com tanta banana que viu à frente …
- Tanta banana!
- O meu amigo tem uma fé inabalável na posologia de quatro bananas por dia;
(ela riu-se)
- Não quer provar uma senhora enfermeira?
- Hum! penso que não devo, não gosto de coisas doces, tenho de manter a glicose em níveis normais; o senhor come quatro por dia!, não tem a glicose aumentada?
- Não, não, faço caminhada diária de dez mil passos, queimo as calorias em excesso; quanto ao resto sinto-me bem, não sei se estou bem, mas sinto-me bem …
Depois da enfermeira sair voltámos à conversa de sempre, recordando em revista amigos e conhecidos e os tempos antigos.
… esse está bem, continua rijo, quantos é que ele vai fazer? oitenta e sete ou oitenta e oito, não estou certo …
… oitenta e oito vai fazer oitenta e oito, disse ele, (afinal sabia mais que eu), é mais velho cinco anos que eu, vai fazer oitenta e oito, não há dúvida; se lá chegar, disse eu para dizer alguma coisa; vai chegar com certeza, naquele nada se pega, já o nosso amigo major anda cada vez mais encalacrado, o … enfim, passamos quase uma hora naquilo, em cálculos de probabilidade de cada um poder continuar a dizer o mesmo à hora em que os que sobram do grupo se encontram para almoçar…
… é um chato, somos amigos há tanto tempo que nem sei quanto, gosto que venha, é bom sempre ter aqui alguém com quem conversar, mas conversas sobre doenças deste e daquele para que servem? para nada, o que é que eu ganho ficar a saber que a ele, ou a qualquer outro, lhe doem os joelhos ou que eu lhe diga que me acontece o mesmo, sobretudo se está frio ou a cair humidade, ficamos mais confortados porque ficamos empatados ou mais deprimidos?, eu fico mais deprimido se me dizem que aquele ou outro amigo, ou conhecido, foi parar ao hospital e partiu um braço, não posso fazer nada senão condoer-me, nem me alivia uma dor se outro souber e se condoer …condoer, um estado de alma que não transfere nem distribui as dores que cada um sente; pode atormentar outro e a soma é sempre negativa … é o que eu penso …mas o que mais me confunde é a pergunta, Tudo bem contigo? O que é que posso dizer? Que estou bem, quando não estou?, se estivesse não estava aqui, no hospital. Se não corto logo, e minto, Tudo bem, obrigado, tenho de contar as minhas dores, que não são poucas…fico mais dorido que antes, e quem me pergunta, gostou de ouvir? Às vezes fico com a impressão que sim, que a humanidade também é cruel, ... com o mal dos outros vivo bem, ouve-se a cada passo, eu vivo mal com o mal dos outros …
… não, não, desta vez não falou da filha, penso que já está tão resignado, talvez porque vêm ao seu encontro cada vez mais notícias de situações semelhantes, e a banalização cicatriza a ferida aberta pelo choque provocado pelo conhecimento de um facto que nunca teria pensado poder acontecer-lhe também a ele; o crescimento de divórcios continua a exceder o número de casamentos formais e as uniões de facto; depois, já temos falado nisso, agora sou eu que volto ao mesmo, há divorciados, mas sobretudo divorciadas … …pois deve ser o mesmo número, mas há mais divorciados a voltarem a casar, penso eu, não li isto em parte nenhuma … elas, as divorciadas, passam a ir mais à igreja, penso eu, talvez porque encontram na igreja, só elas sabem porquê, um lugar de refúgio onde possam recuperar a necessidade de partilha perdida; não. não me parece que, pelo menos neste caso, que mais do que a igreja é o clérigo, obrigado ao celibato, que a atraiu, pelo menos é essa convicção do pai, uma convicção que o anima e evita continuar a atormentar-se…
O tema forte da conversa de hoje foi outro, aliás não foi só um, foram vários, tantos que às tantas me pareceu ver todo o azar do mundo a desabar sobre ele, … começou pelos quadros; sim, ele continua a pintar desenfreadamente, para quê?, é pergunta desnecessária; viveu e conviveu sempre com gente do teatro, da televisão, com artistas plásticos poucos bem sucedidos e muitos à procura de fama sem proveito nenhum desse lado; … ah! sim, ele safou-se sempre bem, a pintura descontrai-o, intelectualmente preenche-lhe a vida, do resto não sobrou nada, quero dizer, sobrou apenas o mais importante, que lhe permite viver financeiramente desafogado, o problema dos quadros é não ter lá em casa mais espaço para tantos quadros, em número sempre crescente …de vez em quando lá sai um ou outro, há sempre quem lhe fique com um ou dois, o Vasco, que nada em massas, sempre que ele se queixa com falta de espaço para os quadros fica-lhe com meia dúzia, não faço ideia do que lhes faz, também nunca perguntei, penso mesmo que nunca ninguém perguntou, seria indiscrição a mais sem proveito para ninguém, não achas? Ele despacha alguns quadros, abre-se lá em casa espaço para outros tantos, e é tudo para ambas as partes ficarem satisfeitas; agora imagina que algum demasiado curioso perguntava ao Vasco que faz ele a tantos quadros e ele respondia que os acumulava na cave, um espaço suficientemente grande para albergar os quadros que compra, só para ser simpático com o amigo pintor, que pensaria o pintor? Ficava triste, ninguém gosta de viver de esmolas, pode ser obrigado, mas não gosta, e um artista muito menos; para o artista, qualquer que seja a sua arte, o que mais conta é o gosto, o encanto, que o objecto que realiza ou produz, suscita a quem o vê, mesmo que não compre; temos conversado muito sobre isto …
…mas o que mais o preocupa neste momento são as dificuldades que agora tem de suportar na casa onde vive há sessenta e tal anos…e que só hoje ele contou o que eu desconhecia completamente. É difícil entender que uma questão, que agora o incomoda tanto, nunca tenha vindo à conversa durante tantas conversas que temos tido, geralmente, diga-se mais voltadas para as questões de saúde, que é que mais atormenta os velhos que outros assuntos mais angustiantes. O caso de um amigo meu, por exemplo, tu não o conheces e, por não conheceres, te conto o drama que ele enfrenta, que não afecta apenas a ele e a banalização gera indiferença em quem não conhece a pessoa atingida; é como as notícias ou imagens de destruição, ruína, bestialidade, estupidez da espécie humana que não nos perturbam nem à hora de jantar…
…pois esse meu amigo, de há longos anos, recebeu um dia a notícia, para ele, da maior felicidade possível quando já não tinha nenhuma ideia de a receber: o nascimento de um neto, do único neto, um rapaz. Como vai o teu neto? A alegria chegava-lhe ao rosto antes das palavras, estava a crescer, muito saudável, felizmente sempre muito saudável, anos depois disse-me que o neto tinha entrado no ensino superior, não tinha mais nenhum neto, aquele era o seu rebento, prometedor de um relacionamento entre avô e neto que ele esperaria perdurasse enquanto o avô fosse vivo. Até ao dia em que soube que o neto informara os pais e estes informaram o avô que o rapaz decidira submeter-se a uma operação que o transformasse em mulher, em consequência de alterações biológicas prenunciadas há muito tempo mas sempre sofridas em silêncio. Há palavras que possam restabelecer a imagem que aquele avô tinha criado e amado após tomar conhecimento da ruptura dessa imagem que o encantara? Se há, não me ocorreu outra senão o forte abraço que lhe dei. Poderia ter dito, meu querido amigo, são as leis da natureza, há, relativamente, muitos casos semelhantes, mas essas palavras saber-me-iam a sal em carne ferida…
…voltando às causas, que eu totalmente desconhecia, da amargura do nosso amigo, disse-me ele, que vive na mesma casa há sessenta anos, sessenta anos não são sessenta semanas nem sessenta meses, são sessenta anos, uma vida!
Alugou pelo preço corrente naquela zona da cidade, o vendedor, que era também tinha sido o construtor do edifício, reservando para ele o último andar, o oitava, com uma vista extraordinária que chega rio, perguntou-lhe,
- E o que senhor recebe mensalmente não excede os trinta por cento da renda que me vai pagar? Ninguém deve pagar de renda mais do que trinta por cento dos seus rendimentos mensais … Sim, ganho mais que os trinta por cento da renda e a minha mulher também trabalha, - Pois muito bem, arrendo-lhe o andar. E com um aperto de mão selaram o contrato que o vendedor já tinha recebido dactilografado do seu advogado. Enfim, tudo feito como deve ser.
Entretanto, aumentaram os rendimentos mas as rendas muito menos. O senhorio, contudo, nunca pôs em causa o valor constante do contrato acrescido dos aumentos decididos pelos governos. Até ao dia em que o senhorio se reformou, foi viver para Tomar, ele era de Tomar e entregou o oitavo andar a uma filha, por sinal a mais velha dos seus quatro filhos. E, pouco tempo, depois começaram os problemas. Primeiro, com o elevador, que avariou e a senhoria, que passa a maior parte do tempo numa quinta que tem ali para o lado de Colares, e quando vem a Lisboa, vem com motorista que lhe carrega o que ela tem para a carregar até ao oitavo andar, entende que não recebendo renda para reparar o elevador, o elevador não funciona.
E o nosso amigo, que já está à beira dos noventa, e que arrendou no terceiro andar, quando o elevador era novíssimo e funcionava com deve ser, não tem alternativa, nem ele nem a mulher, quase da mesma idade dele, senão subir a pé e carregado, oito andares … Sim, já se queixaram em toda a parte onde pensavam eles, que podiam resolver a questão, mas nada resolvido, o elevador continua estacionado no primeiro andar… É revoltante, pois é, mas há mais … A subir e a descer as escadas de pedra, já polida nas dobras, até ao terceiro andar, duas ou três vezes por dia, consoante as necessidades de mercearia, de farmácia, ou, simplesmente dar uma passeata nas redondezas porque a casa é pequena, mesmo para apenas dois habitantes, um dia passou pelo nosso amigo uma garota, para um quase nonagenário toda a mulher com menos de quarenta anos era uma garota, muito perfumada e apertada num vestido cremim e sapatos de alto lá com eles, que pega nos dois sacos cheios de mercearia que ele levava, desde o rés-do-chão até ao terceiro andar. Agradeceu o nosso amigo ajuda da garota, e ficou a admirar-lhe as formas até ela desaparecer ao virar para o lanço de escada no andar de cima.
De onde aparecera aquele anjo da ajuda naquele momento? – Tens ideia quem seja?, perguntou ele à mulher. – Não me digas que não tens ouvido durante a noite um reboliço no andar de cima? – Eu não!, e durmo quase nada de noite. – Ouves mal, tu sabes que ouves mal, há muito que já devias ter comprado um aparelho. Vou comprar, desta semana não passa; falaste em reboliço, que reboliço? – Que pergunta! Que reboliço pode acontecer onde dormem homens e mulheres às tantas da noite?- Hum!, que pode ser? Tu sabes? – Se sei? Claro que sei porque é claro que no quarto andar está instalado um bordel; percebes ou precisas de provas? – E a senhoria sabe? – Se sabe? Não sabe como permite porque recebe mais rendas do aluguer do quarto andar que do resto do edifício todo. – E ninguém protesta? – Protesta, como? – Alguém ali paga tem contrato de aluguer e ninguém a pode proibir que ela e amigas dela recebam amigos, ou entendes que pode? Se entendes que alguém pode acabar com o arrendamento naquelas condições, mexe-te para veres se consegues acabar com o reboliço nocturno no andar de cima; mas, antes, compra o aparelho para ouvires melhor …
…Estava o nosso amigo nesta elucidativa conversa com a mulher, quando tiniu a campainha.- Quem é, quem não é, será um desses que batem à porta para entrarem e roubar? Quem tocara na campainha, insistiu duas … três vezes …abrimos, não abrimos, quem podia estar a tocar aquela hora? – É a primeira vez que isto acontece? – Não é. Ouço, não sei quem toca, por isso não abro, tu não ouves porque não ouves, e a estas horas já estás a dormir.
…Voltou a campainha tinir, desta vez, o nosso amigo naquele momento não havia dúvidas, mesmo sem aparelho auditivo, que a companhia voltara a tinir e, porque, caramba ele era o homem da casa, foi abrir a porta, a mulher atrás dele. Porta aberta, quem estava a tocar era um fulano na banda dos cinquenta, que procurava a Bibi, tinha combinado com ela estar naquela porta aquela hora… Olhou o nosso amigo para a mulher interrogando-se, até que o nosso amigo tomou uma decisão: está enganado na porta.
- Mas esta é a porta que a Bibi me indicou a 4D.
- Ah! Aqui é o 3C. Tem de subir mais um lanço de escada.
Estás ou não, agora convencido do que te disse? É uma pouca vergonha, pois é, mas parece que não há nada a fazer. Ou pensas que há?
E tu, perguntou-me o nosso amigo, o que pensas que devo fazer?
Não sei. Mas se alguma das vossas vizinhas vos continua a ajudar a levar os sacos das compras até ao terceiro andar, o melhor é aproveitar a ajuda e tu, meu caro amigo, disse-lhe, compra o aparelho auditivo mas deixa-o desligado durante a noite.
- Estás a falar a a sério?
- Estou a dizer o que me parece que será o melhor para ti.
- E a minha mulher? Ela ouve bem …
- Compra-lhe uma caixa de tampões para os ouvidos. É coisa barata.
O que é que ele pode fazer melhor?
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