Thursday, April 14, 2022

LE PEN E O GOLPE DE ESTADO EM FRANÇA

Marine Le Pen brinca ao “golpe de Estado”. 
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Notas de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Se fosse eleita no dia 24, Marine Le Pen inauguraria a sua presidência com uma “pequena” medida simbólica: retiraria a bandeira europeia da fachada de todos os edifícios públicos franceses. Mas não se ficaria pelos símbolos, nem pela Europa.

Marine prefere, como todos os populistas, o referendo à democracia representativa e, através de um referendo, faria incluir na Constituição a discriminação dos estrangeiros, como a “preferência nacional”: conceder aos nacionais a prioridade nos empregos, nas prestações sociais na habitação social ou a possibilidade de acesso a determinadas profissões. A xenofobia passaria a ser um princípio constitucional.

Há muito que Marine trocou o discurso agressivo pelas “falas mansas”. Desistiu de tirar a França do euro, chave da sua falida campanha nas presidenciais de 2017. E deixou também de falar em “Frexit”. Em vez da saída da União Europeia, proposta impopular, propõe coisas que a paralisariam ou tornariam impossível a manutenção da França na comunidade. Por isso submeterá a referendo a superioridade das leis francesas sobre as comunitárias.

Marine quer uma União à la carte de modo a rejeitar os pontos que lhe desagradam, como os tratados de livre-comércio, o alargamento, o Frontex ou a Europa da Defesa. A inscrição da própria prioridade nacional na Constituição violaria o direito europeu. Está próxima da Hungria de Viktor Orbán.

A mola central do seu modelo institucional é o recurso maciço ao referendo como meio de contornar o parlamento. Quer generalizar o “referendo de iniciativa cidadã” sobre todos os assuntos para, entre outras coisas, anular leis aprovadas no parlamento. Era uma das reivindicações dos “coletes amarelos”. Mas reserva-se o direito de bloquear uma proposta de referendo aprovada no parlamento se entender que é contrária aos “interesses vitais do país”.

O problema constitucional de Le Pen começa logo com o seu imaginário referendo inaugural, onde quer incluir a superioridade da lei francesa, a mudança da lei na nacionalidade e da política de imigração. A nacionalidade deixaria de reconhecer o histórico jus solis francês para adoptar o jus sanguinis: a nacionalidade deixaria de poder ser adquirida pelo nascimento em França e apenas pela filiação.

Há duas vias para o referendo. A sua convocação deve ser aprovada pelos deputados e pelos senadores. Mas, em matéria de leis ordinárias, o Presidente pode recorrer ao artigo 11 e convocar um referendo sem visto prévio do parlamento. Excepto sobre revisão constitucional, que, com base no artigo 89, exige a aprovação prévia das duas câmaras do parlamento. Marine sabe que o parlamento rejeitaria o seu projecto e, por isso, à revelia do Direito Constitucional, quer usar o artigo 11. Ela nega também legitimidade ao Conselho Constitucional para se pronunciar tanto sobre a constitucionalidade tanto do referendo com base no artigo 11, como sobre a “preferência nacional”

Ela invoca um precedente. Em 1962, o general De Gaulle impôs uma alteração constitucional — a eleição directa do PR — com base no artigo 11, o que provocou uma tempestade jurídica. Mas o Conselho Constitucional da época recusou pronunciar-se sobre o assunto. Daí em diante, nunca tal se repetiu.

A iniciativa de Marine Le Pen é, assim, “uma espécie de golpe de Estado contra o estado de Direito”, sintetiza o constitucionalista Dominique Rousseau. O seu programa é incompatível com a União e com os tratados europeus.

“A estratégia de doçura [de Marine Le Pen] mascara um projecto brutal de destruição das instituições da República e de divórcio com a União Europeia”, escreve Phillippe Bernard, editorialista do Monde. Põe em causa a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o preâmbulo da Constituição de 1946 marcada pelo fim do nazismo e, enfim, da Constituição gaullista de 1958, que os preserva.

Se Marine fosse eleita no dia 24 de Abril, a crise europeia seria imediata e a França a primeira vítima. Haveria um alto risco de “guerra” nas instituições e na rua. Em Moscovo, Vladimir Putin rói as unhas: depois de dois meses de desaires, teria o seu primeiro sucesso.

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